Com agenda lotada de compromissos de segunda a sexta, o filósofo Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), generosamente recebeu a reportagem de PÁGINA22 em sua casa, em pleno sábado, para falar sobre “valor”, tema central da edição 89, de outubro. Nesta entrevista, ele nos leva por um passeio pela história do pensamento desde a Grécia Antiga até a era moderna para mostrar as transformações na forma como atribuímos valor às coisas e à conduta humana. Parte deste conteúdo foi aproveitada na reportagem O que é valioso, afinal.
Como definir “valor” filosoficamente?
Toda vez que eu penso sobre valor – e quando vou apresentar uma discussão sobre o tema para os meus alunos – eu penso em uma atividade tipicamente professoral que é o de atribuir valor ao aluno para aprová-lo, ou não. Sempre me perguntei como eu faço para pegar seis meses de performance do aluno e converter em um número de zero a dez. Como se opera essa mágica?
Concretamente, o professor aplica uma prova e conclui que o aluno vale 8. De onde o professor tirou esse número? A resposta é: existe um protocolo, um procedimento. O professor compara a prova do aluno com o gabarito e conclui que tem 80% de coincidência. Então o aluno vale 8.
O que essa historinha nos permite concluir? Que não existe nenhuma forma de valor no mundo que não tenha uma referência. No caso do aluno, é o gabarito do professor. Mas em qualquer outra situação de vida, toda vez que você vai atribuir valor é porque você identificou coincidências com uma referência. Se Neymar é um grande jogador, é porque você tem na cabeça uma referência de jogador de futebol fantástico. Então, Neymar é um grande jogador porque ele é parecido com Pelé, ou Maradona ou com alguém ainda melhor. Se Isis Valverde é uma linda mulher é porque você tem na cabeça uma referência de linda mulher e assim por diante. Você compara, vê o que é parecido e o que não é parecido e atribui um valor em função dessa comparação.
E para avaliarmos o valor de uma vida feliz?
Na hora de pensar sobre a vida e condutas humanas, de identificar qual é a melhor forma de viver, você esbarrara na necessidade de pensar em valores ditos morais. Aí você encontra uma dificuldade. É que para a vida, diferentemente da prova do professor que só tem um gabarito, são muitos gabaritos. Fazer comparação fica quase impossível, ou não é tão simples. Se você imaginar que no Exército o primeiro valor é a disciplina, isso significa que a melhor vida é a mais disciplinada. Para o Exército, isso resolve o problema. Toca-se a corneta às 5 horas da manhã e o soldado se levanta. Mas em um asilo de idosos não há a menor razão de o valor primeiro ser a disciplina. O valor primeiro poderia ser o repouso e a melhor vida, a mais repousante. Não tem o menor sentido levantar às 5 da manhã. Você percebe, então, que o que é valor para o Exército é menos valioso para o asilo e vice-versa.
Essa constatação é perturbadora porque você é obrigado a considerar que não existe uma grade de valores que se imponha universalmente. A grade fica a mercê das circunstâncias que você vive. [O antropólogo, sociólogo e filósofo francês] Edgar Morin chama isso de valores complexos. A complexidade está no fato de a “disciplina” ser valor e o “repouso” ser valor também. E um desmente o outro.
Cite, por favor, outro exemplo dessa complexidade?
Um exemplo bem característico do mundo das corporações é a transparência. Uma espécie de valor ético recente. Quando estudei no Ensino Médio, transparência era o atributo do vidro ideal. Conceito da ótica. De dez anos para cá, esse conceito foi importado para a ética. Foi importado via os [norte-]americanos. James Grunig [teórico da área de Relações Públicas] criou o conceito de “casa de vidro” para identificar uma empresa regida pela transparência, ou seja, todo mundo sabe de tudo e de todos a todo tempo e em qualquer lugar. A transparência é um valor? Claro que é. Com a transparência, a convivência pode melhorar. Diminuem os privilégios, o cinismo, a maracutaia, a mentira e muita coisa que é ruim na convivência.
Porém, como todo valor, este pode ser problematizado em função da sua complexidade. Se você imaginar em um jogo de cartas, verá que a primeira lição é o sigilo ou a confidencialidade. O sigilo é o contrário da transparência. O jogo pressupõe a busca da vitória. Vitória essa que exclui a [vitória] do opositor. Então é preciso esconder as cartas. Sendo o mercado um jogo como qualquer outro – dado que os americanos chamam os gestores de players – é evidente que o valor maior do mercado não é transparência, é o sigilo. Vamos supor que você trabalhe no banco. Você mostra um projeto do banco em que você trabalha ao banco concorrente. Apesar de o gesto respeitar a transparência, você será demitido por justa causa pela ruptura do sigilo. Falta gravíssima. Portanto, o sigilo, que é o contrário da transparência, é um valor preponderante nos negócios. Se você não respeitar a transparência, provavelmente ninguém notará.
É aqui que chegamos ao tema “moral”?
Sim. É muito comum que as pessoas esperem uma grade de valores, uma espécie de fórmula de conduta pronta e aplicável a qualquer lugar e qualquer situação e, ainda, que seja exaustiva e hierarquizada. Se tiver conflito entre um e outro, prepondera o de cima. De fato, seria tranquilizador. Seria redutor de angústia. Mas, feliz ou infelizmente, os valores se contradizem e se anulam, razão pela qual você continua livre para escolher que valor vai querer respeitar. E a isso chamamos moral.
Moral não é uma verdade sobre a conduta. É um conjunto de princípios que livremente decidimos respeitar. É um conjunto de imperativos que livremente decidimos usar para pautar a nossa vida. É aquilo que você não faria de jeito nenhum. Poderia citar o exemplo do anel de Giges, de Platão. Giges era um cara muito legal que descobriu um anel que o deixava invisível. Mas Giges era uma pessoa excelente porque era fiscalizado por todos. Uma vez invisível, escapou da fiscalização e tornou-se um canalha. E aí está o conceito de moral. É controle sobre si mesmo. O eu que julga o eu. Na Suíça, certa vez me deparei com uma banca de jornal sem a presença do jornaleiro. Pagar ou não pagar pelo jornal passou a ser uma questão moral. Quando tem um jornaleiro, deixa de ser uma questão moral, pois ele está lá para fiscalizar que você vai pagar pelo jornal.
Mas a forma como atribuímos valor às condutas muda ao longo do tempo?
Posso fazer uma espécie de passeio pela história do pensamento para mostrar que tipo de referência o homem usou para poder decidir o que é bom e o que não é bom.
Começando pelo pensamento grego, afinal eles que inventaram tudo isso. Eles imaginavam que o Universo fosse finito e ordenado, como uma máquina. Acreditavam que tudo o que estava no Universo tinha uma finalidade. Esse Universo que funcionava como uma máquina, eles chamavam de Cosmos. Qual era a maneira grega de atribuir valor às coisas? A referência era a participação harmoniosa no Cosmos. Esse era o gabarito da vida. Se você participa da máquina universal com excelência, a sua vida tem um valor excelente. Se isso não acontece, a vida é uma droga.
Mas como eu sei o meu lugar no Cosmos? Partindo do princípio de que não tem nada de bobeira na natureza. Se você tem um talento, uma habilidade, um potencial, um dom natural, isso é um indicativo do que o Cosmos espera que você faça. Porque um cara desenha bem? Porque do ponto de vista cósmico, isso indica a ele um tipo de vida. A natureza e seus talentos são indicativos da expectativa que o Cosmos tem de sua inserção nele. A partir daí, tem uma grade de valores possíveis. O que é bom? É bom aquilo que me ajuda a buscar a excelência na minha atividade, que é cósmica por excelência. Pensando como um grego: eu, Clóvis, tenho talento explicativo. Pego ideias complexas e transformo em ideias simples. Isso indicaria que a natureza espera de mim explorar esse talento. Para mim, o que seria uma coisa de alto valor? Buscar a excelência nessa atividade que corresponde a esse talento.
Pelos gregos, então, todos deveriam fazer só aquilo que gostam?
Uma sociedade à moda dos gregos é a que permite às pessoas uma oportunidade de descobrir qual é a sua “praia” e buscar a excelência naquilo. Assim serão felizes e colaborarão adequadamente com o cosmos. Uma sociedade regida pelo mercado poderia ser condenada? O mercado da arte talvez fosse mais respeitador da excelência de um talento. Assim como o mercado do futebol talvez fosse mais respeitador do talento de driblar. Mas, grosso modo, o mercado raramente quer saber das habilidades de cada um. Tem vagas a preencher. Tem necessidades de abundância de mão de obra. Trabalha com uma pasteurização das práticas e espera uma participação mediana das pessoas na realização dos seus afazeres. Nesse sentido, estaria prestando um desserviço, uma forma pífia de organização da produção dentro de uma sociedade. Essa é uma referência possível que foi alvejada em pelo voo quando o homem percebeu que o universo não era finito como queriam os gregos.
Quando foi isso?
A ideia de Cosmos desaparece no século XVII, quando o homem passa a acreditar no Universo infinito. A partir daí, desaparece o Cosmos como referência para a melhor conduta. Nada mais tem propriamente uma função no Universo.
Logo em seguida dá-se a emergência do pensamento cristão. Jesus de Nazaré passa a ser a grande referência. Surge outra maneira de atribuir valor às coisas e às condutas e a palavra-chave é o “amor”. O que é a vida boa? É a vida regida pelo amor. Quando você faz de tudo para que o amado sorria, triunfe, vença etc. Dentro dessa perspectiva, vai surgir no pensamento cristão uma ideia absolutamente consagrada na questão dos valores até hoje, que é a ideia de igualdade. Para o pensamento grego não existe igualdade. As pessoas valem em nome da sua competência natural, que eles chamavam de virtudes. São os atributos que definem o valor das pessoas. Para os gregos existe superioridade e inferioridade. Tanto assim que Aristóteles falava de escravidão sem o menor problema – achava isso uma obviedade, pois um sujeito inferior tinha que ser escravo do superior.
Com a emergência do pensamento cristão, a virtude moral deixa de se relacionar com os talentos naturais. É a famosa parábola dos talentos. Não importa se você é muito bonito, muito ágil, muito talentoso. O que importa é o que você vai fazer com isso, o uso que você vai fazer dos seus talentos. Você pode ser meio burrinho, mas utilizar essa pouca inteligência para o bem. Pode ser um gênio e ser um gênio canalha. Em vez do talento natural, a referência maior passa a ser o livre arbítrio, que é a liberdade que eu tenho para decidir o que eu vou fazer com os meus talentos. É a igualdade de todos perante Deus. Se diante da natureza não somos todos iguais, o pensamento cristão passa a régua na desigualdade ao dizer: pouco importa se o outro é mais inteligente do que você, o que vai valer a partir de agora é o que você vai fazer com isso. Há um deslocamento da referência do valor do cosmos para a liberdade do indivíduo.
Esse pensamento predomina ainda no modo como atribuímos valor às coisas?
Ainda no pensamento moderno surgem pelo menos duas maneiras conflitantes de atribuir valor que eu diria que disputam a primazia e o monopólio das ideias até hoje. Há o que podemos chamar de pensamento utilitarista, com enorme aceitação no mundo anglo-saxônico, e o pensamento intencionalista, com enorme aceitação no mundo romano-germânico. O grande nome do utilitarismo é o do inglês John Stuart Mill e o grande nome do intencionalismo é Immanuel Kant. A ideia central do utilitarismo para atribuir valor às condutas humanas está na maior ou menor capacidade dessas condutas proporcionarem felicidade. Esse é o critério. Se você perguntar qual é o valor de um livro. A resposta é: está na sua capacidade de proporcionar felicidade a quem o ler. Essa relação entre o livro e a felicidade de quem lê é denominada de utilidade, por isso utilitarismo. Mas claro que a pergunta mais interessante é: e essa felicidade, o que vem a ser? A resposta é: a felicidade é uma equação entre prazer e dor. É o máximo de prazer possível e é o mínimo de dor possível.
Qual o valor de uma obra de arte? É o prazer que ela proporciona e a dor que ela evita. A primeira constatação é que, como não existe o prazer absoluto, nem a dor absoluta, o valor é uma questão de grau. Essa forma de entender o prazer e a dor, sobretudo, tendo o prazer como referência, faz alusão a um pensamento dito hedonista. E muitas vezes há uma crítica na hora em que você diz que o valor tem a ver com o prazer que algo proporciona, ou seja, o homem fica reduzido à mais estrita animalidade. Mas a graça do utilitarismo é estabelecer uma espécie de hierarquia de prazeres. Há prazeres coincidentes com a animalidade, ditos inferiores, como os prazeres genitais e os gastronômicos, e há prazeres ditos superiores, restritos ao homem. Estes são os que combinam a sensorialidade com alguma atividade intelectiva, que é o que acontece quando se ouve uma sinfônica, quando se lê uma obra de literatura, quando eventualmente se dá uma aula. E quando se tem prazer corporal mesclado com atividade do pensamento. Mas é a partir da atividade do pensamento que se sente prazer.
E qual foi a crítica ao pensamento utilitarista?
Um primeiro questionamento é: porque cargas d’água os prazeres que têm a participação do intelecto são superiores aos prazeres de atrito? A segunda pergunta é: por que uma coisa que alegra a maioria é melhor do que uma coisa que alegra a minoria? Será que valemos em função do tamanho do grupo a que pertencemos? Outra crítica que se costuma fazer a esse tipo de proposta é que quando o valor das coisas está na felicidade que proporciona, ele não está nele mesmo. E seus efeitos não acabam mais. As coisas do mundo ficam encadeadas em uma rede que não termina mais.
Por exemplo?
Uma aula julgada na base do utilitarismo: será que a maioria dos alunos teve prazeres ditos superiores ao assistir? Se, sim, então a minha aula é boa. Reflexão tipicamente utilitarista. A aula passa a integrar o repertório do aluno. A partir daquela aula, tudo o que ele pensar minimamente terá que considerar a minha aula. Todo o futuro dele terá a minha aula participando. Essas coisas não terminam mais e a internet ajuda a visualizar isso. Aquilo produz efeitos em cadeia. Então o questionamento é: até quando eu tenho que esperar para saber se aquela aula foi boa ou ruim? O efeito 30 é tão efeito quanto o efeito 1. Por isso, a teoria muito pouco prática.
Esse é o principal argumento de (Imannuel) Kant (filósofo alemão). Como quase nada que acontece tem uma causa só, Kant critica essa condição consequencialista do utilitarismo. Poderia dar o exemplo do Steve Jobs. Na autobiografia ele diz que as pessoas o julgam pelo que aconteceu com a empresa dele. Mais perto do final da vida e ele disse: não deveriam porque eu nunca pensei em chegar onde cheguei. Se cheguei é porque houve um erro para cima. Um erro para baixo ou para cima é só uma circunstância. Na verdade ele decidiu pensando em muito menos do que alcançou. Isso é fantástico. Porque é mesmo sempre assim. As consequências do que você decide são resultado de muitas outras causas e variáveis que você não controla. É exatamente por isso que Kant vai dizer que o valor não está na felicidade, não está nos efeitos. O valor está nas próprias coisas e, portanto, na conduta humana quando se trata do valor moral. Uma ação pode ser boa mesmo que entristeça o mundo inteiro.
Quando se diz que não se deve mentir, não é porque a mentira causa efeitos nefastos. Não se deve mentir simplesmente porque não se deve pretender que os outros mintam. Se todos começarem a mentir como você está mentindo a sua mentira mesmo será ineficaz. Todo mundo vai saber que todo mundo mente e a mentira não vai obter a eficácia que pretende obter. No intencionalismo, você faz de tal maneira a desejar que a máxima que preside a sua conduta possa se universalizar.