Eles entendem de mato e de vida selvagem. De Norte a Sul, mostram como o dom de resistir a condições adversas na natureza pode ser usado para conservá-la
Depois de perder o irmão caçula acidentado pelo disparo de uma arma quando caçavam juntos na fazenda da família, no município de José de Freitas, Piauí, o empresário João Freitas Filho, 62 anos, decidiu mudar radicalmente de vida. Primeiro, abandonou de vez a espingarda. Depois, protegeu mais da metade da propriedade como reserva legal; criou a ONG Mais Vida para defesa da causa ambiental e recentemente lançou uma ideia inovadora capaz de redimir, pelo menos em parte, os hábitos do passado. No projeto “Caçadores de Fotografias”, homens hábeis em alvejar animais silvestres por tradição cultural trocam armas de fogo por câmeras fotográficas que os ajudam a descobrir um novo modo de se relacionar com a natureza.
Motivados por concursos nas redes sociais para escolha das melhores imagens, ex-caçadores passam a valorizar os animais mantidos vivos e trabalham para conservar a floresta. “O conhecimento transmitido de pai para filho e a adrenalina de entrar na mata atrás de bichos agora se direcionam para uma finalidade nobre”, ressalta Freitas, dono de um grupo empresarial piauiense que fatura R$ 700 milhões por ano. A Nazareth Eco, reserva mantida por ele com 1,6 mil hectares, abriga espécies em extinção e uma infinidade de aves – alvo das lentes de Luiz Ribeiro da Silva, conhecido como Compadre Romão, um misto de fotógrafo e mateiro, especialista em achar o esconderijo do animal e aproximar-se dele no melhor ângulo para o click.
A iniciativa valoriza o papel de quem conhece atalhos e segredos da mata como ninguém. Sim, os mateiros são figuras cada vez mais indispensáveis a expedições científicas, levantamentos para criação de parques nacionais, ecoturismo, produção de documentários, uso de produtos da biodiversidade por indústrias e obras de infraestrutura que chegam a grotões desconhecidos. No sudoeste do Piauí, em São Raimundo Nonato, o guarda-parque João Leite trocou a vida de encrencas na cidade pelo convívio com a Caatinga. O rapaz aprendeu truques de sobrevivência na mata com ex-caçadores e hoje, como vigilante do Parque Nacional Serra da Capivara, é requisitado por cientistas para o trabalho de campo voltado para a descrição de novas espécies da fauna e flora. Seu maior feito foi a descoberta de sítios arqueológicos com pinturas rupestres que contam a história da ocupação do continente pelo homem primitivo. “Descobri um por acaso quando fazia rapel com uma bióloga para coletar fezes de roedores nas rochas”, conta Leite.
De Norte a Sul, o ofício dos mateiros vira profissão. Se no sertão de Pernambuco eles trabalham ao lado dos biólogos no resgate da fauna durante a obra dos canais da transposição do Rio São Francisco, no litoral sul da Bahia a tarefa é escalar árvores para coleta de sementes destinadas ao reflorestamento da Mata Atlântica. “São como ninjas; sabem onde andar e pisar”, compara a pesquisadora Francismeire Gomes, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, ao destacar a importância de tê-los na equipe que estuda doenças transmitidas por insetos na floresta. Eles entendem de mato e de vida selvagem. Mas também os desafiam, os subjugam e, aos poucos, o dom de enfrentar perigos e resistir a condições adversas na natureza é utilizado para conservá-la. Em Mogi das Cruzes (SP), na região do Vale do Paraíba, os irmãos Alexandre e Marcos Prado derrubavam palmeiras nativas para extrair palmito-juçara, assim como faziam os avós. Hoje a situação se inverteu. O know-how é empregado na proteção do Parque das Neblinas, da empresa Suzano. A dupla fiscaliza a área, faz reflorestamento e orienta a comunidade para obter renda com os frutos da palmeira, sem necessidade de cortá-la.
No litoral do Paraná, em Guaraqueçaba, Pedro Morais, 60 anos, mateiro velho de guerra, de tanto trabalhar com botânicos aprendeu a chamar plantas pelo nome científico. Em retribuição, ensinou-lhes um pouco do saber tradicional sobre quais frutos cada um dos diferentes pássaros come. Como resultado, a Reserva Natural do Salto Morato, mantida pelo Grupo Boticário, é hoje palco de estudo sobre os efeitos do desmatamento para a extinção das aves. Graças a esses homens, calejados como eles só, a busca pelo conhecimento sai dos gabinetes com ar condicionado e chega ao mundo real que todos queremos conservar
*Jornalista
[:en]Eles entendem de mato e de vida selvagem. De Norte a Sul, mostram como o dom de resistir a condições adversas na natureza pode ser usado para conservá-la
Depois de perder o irmão caçula acidentado pelo disparo de uma arma quando caçavam juntos na fazenda da família, no município de José de Freitas, Piauí, o empresário João Freitas Filho, 62 anos, decidiu mudar radicalmente de vida. Primeiro, abandonou de vez a espingarda. Depois, protegeu mais da metade da propriedade como reserva legal; criou a ONG Mais Vida para defesa da causa ambiental e recentemente lançou uma ideia inovadora capaz de redimir, pelo menos em parte, os hábitos do passado. No projeto “Caçadores de Fotografias”, homens hábeis em alvejar animais silvestres por tradição cultural trocam armas de fogo por câmeras fotográficas que os ajudam a descobrir um novo modo de se relacionar com a natureza.
Motivados por concursos nas redes sociais para escolha das melhores imagens, ex-caçadores passam a valorizar os animais mantidos vivos e trabalham para conservar a floresta. “O conhecimento transmitido de pai para filho e a adrenalina de entrar na mata atrás de bichos agora se direcionam para uma finalidade nobre”, ressalta Freitas, dono de um grupo empresarial piauiense que fatura R$ 700 milhões por ano. A Nazareth Eco, reserva mantida por ele com 1,6 mil hectares, abriga espécies em extinção e uma infinidade de aves – alvo das lentes de Luiz Ribeiro da Silva, conhecido como Compadre Romão, um misto de fotógrafo e mateiro, especialista em achar o esconderijo do animal e aproximar-se dele no melhor ângulo para o click.
A iniciativa valoriza o papel de quem conhece atalhos e segredos da mata como ninguém. Sim, os mateiros são figuras cada vez mais indispensáveis a expedições científicas, levantamentos para criação de parques nacionais, ecoturismo, produção de documentários, uso de produtos da biodiversidade por indústrias e obras de infraestrutura que chegam a grotões desconhecidos. No sudoeste do Piauí, em São Raimundo Nonato, o guarda-parque João Leite trocou a vida de encrencas na cidade pelo convívio com a Caatinga. O rapaz aprendeu truques de sobrevivência na mata com ex-caçadores e hoje, como vigilante do Parque Nacional Serra da Capivara, é requisitado por cientistas para o trabalho de campo voltado para a descrição de novas espécies da fauna e flora. Seu maior feito foi a descoberta de sítios arqueológicos com pinturas rupestres que contam a história da ocupação do continente pelo homem primitivo. “Descobri um por acaso quando fazia rapel com uma bióloga para coletar fezes de roedores nas rochas”, conta Leite.
De Norte a Sul, o ofício dos mateiros vira profissão. Se no sertão de Pernambuco eles trabalham ao lado dos biólogos no resgate da fauna durante a obra dos canais da transposição do Rio São Francisco, no litoral sul da Bahia a tarefa é escalar árvores para coleta de sementes destinadas ao reflorestamento da Mata Atlântica. “São como ninjas; sabem onde andar e pisar”, compara a pesquisadora Francismeire Gomes, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, ao destacar a importância de tê-los na equipe que estuda doenças transmitidas por insetos na floresta. Eles entendem de mato e de vida selvagem. Mas também os desafiam, os subjugam e, aos poucos, o dom de enfrentar perigos e resistir a condições adversas na natureza é utilizado para conservá-la. Em Mogi das Cruzes (SP), na região do Vale do Paraíba, os irmãos Alexandre e Marcos Prado derrubavam palmeiras nativas para extrair palmito-juçara, assim como faziam os avós. Hoje a situação se inverteu. O know-how é empregado na proteção do Parque das Neblinas, da empresa Suzano. A dupla fiscaliza a área, faz reflorestamento e orienta a comunidade para obter renda com os frutos da palmeira, sem necessidade de cortá-la.
No litoral do Paraná, em Guaraqueçaba, Pedro Morais, 60 anos, mateiro velho de guerra, de tanto trabalhar com botânicos aprendeu a chamar plantas pelo nome científico. Em retribuição, ensinou-lhes um pouco do saber tradicional sobre quais frutos cada um dos diferentes pássaros come. Como resultado, a Reserva Natural do Salto Morato, mantida pelo Grupo Boticário, é hoje palco de estudo sobre os efeitos do desmatamento para a extinção das aves. Graças a esses homens, calejados como eles só, a busca pelo conhecimento sai dos gabinetes com ar condicionado e chega ao mundo real que todos queremos conservar
*Jornalista