A Odisseia de Homero conta as aventuras de Ulisses no retorno para casa após a guerra de Troia. Ao se aproximar de uma ilha de sereias que, com seu canto, atraem os marinheiros e fazem com que os navios colidam com rochedos e afundem, Ulisses tem os pés e mãos amarrados ao mastro do navio para não sucumbir ao seu chamado. Economistas chamam o artifício utilizado por Ulisses de um “dispositivo de compromisso”, estratégias adotadas por nós no presente para restringir ou direcionar nossas ações futuras.
Saul Griffith é inventor e fundador de diversas iniciativas pró-sustentabilidade, sobretudo ligadas à geração e consumo de energia elétrica. Anos atrás fundou a WattzOn, um serviço que ajuda pessoas a mensurar e reduzir sua pegada energética.
Olhando para trás, Griffith hoje considera irrelevantes os vários cálculos feitos por aquela ferramenta para subsidiar decisões individuais diante das transformações que precisaríamos fazer para gerar um impacto profundo e significativo em nossa pegada. Para ele, não faremos isso substituindo lâmpadas incandescentes pelas de LED e nossos carros de combustão pelos elétricos.
Esse modelo de substituição traz ao menos dois problemas. O primeiro diz respeito ao “efeito ricochete” ou “rebote” (ver matéria “Efeito cilada” na edição 55): os ganhos de eficiência podem ser mais do que compensados pelo aumento do consumo, expiada a “culpa” por meio do uso de um produto “ecologicamente correto”. Segundo, a “redenção pelo consumo” não ajuda a superar a lógica do consumo — reforça-a. Substituir significa produzir mais e descartar ou transferir a propriedade do que já existia — mantendo-o, portanto, em atividade —, o que não elimina o problema — e, no caso do descarte, cria novos.
Para Griffith, a mudança profunda e significativa da nossa pegada depende de decisões sobre o que chama de “a infraestrutura da nossa vida”: grandes decisões tomadas de maneira relativamente infrequente e que “travam” o perfil de nossa pegada por longos períodos (ver palestra). Assim, onde escolhemos morar em relação a nosso trabalho e lazer definirá o tamanho dos nossos deslocamentos pela cidade, se eles poderão ser realizados de forma não motorizada etc.; o tamanho de nossa habitação guarda relação direta com a necessidade de iluminação e aquecimento (sobretudo nos países com maior amplitude térmica); uma dieta vegetariana elimina a pegada causada pela fermentação entérica etc.
Governos, entretanto, não precisam esperar passivamente que as pessoas tomem essas grandes decisões da maneira que mais beneficie a coletividade. O Estado dispõe de diversos mecanismos de arquitetura da escolha, e pode dar “empurrõezinhos” que levem as pessoas a tomar melhores decisões. Muitas vezes restrito ao imediatismo dos ciclos político- eleitorais, talvez o Estado também precise de um “dispositivo de compromisso” com as gerações futuras.
*Doutor em Administração Pública e Governo[:en]OLHA ISSO!
A Odisseia de Homero conta as aventuras de Ulisses no retorno para casa após a guerra de Troia. Ao se aproximar de uma ilha de sereias que, com seu canto, atraem os marinheiros e fazem com que os navios colidam com rochedos e afundem, Ulisses tem os pés e mãos amarrados ao mastro do navio para não sucumbir ao seu chamado. Economistas chamam o artifício utilizado por Ulisses de um “dispositivo de compromisso”, estratégias adotadas por nós no presente para restringir ou direcionar nossas ações futuras.
Saul Griffith é inventor e fundador de diversas iniciativas pró-sustentabilidade, sobretudo ligadas à geração e consumo de energia elétrica. Anos atrás fundou a WattzOn, um serviço que ajuda pessoas a mensurar e reduzir sua pegada energética.
Olhando para trás, Griffith hoje considera irrelevantes os vários cálculos feitos por aquela ferramenta para subsidiar decisões individuais diante das transformações que precisaríamos fazer para gerar um impacto profundo e significativo em nossa pegada. Para ele, não faremos isso substituindo lâmpadas incandescentes pelas de LED e nossos carros de combustão pelos elétricos.
Esse modelo de substituição traz ao menos dois problemas. O primeiro diz respeito ao “efeito ricochete” ou “rebote” (ver matéria “Efeito cilada” na edição 55): os ganhos de eficiência podem ser mais do que compensados pelo aumento do consumo, expiada a “culpa” por meio do uso de um produto “ecologicamente correto”. Segundo, a “redenção pelo consumo” não ajuda a superar a lógica do consumo — reforça-a. Substituir significa produzir mais e descartar ou transferir a propriedade do que já existia — mantendo-o, portanto, em atividade —, o que não elimina o problema — e, no caso do descarte, cria novos.
Para Griffith, a mudança profunda e significativa da nossa pegada depende de decisões sobre o que chama de “a infraestrutura da nossa vida”: grandes decisões tomadas de maneira relativamente infrequente e que “travam” o perfil de nossa pegada por longos períodos (ver palestra). Assim, onde escolhemos morar em relação a nosso trabalho e lazer definirá o tamanho dos nossos deslocamentos pela cidade, se eles poderão ser realizados de forma não motorizada etc.; o tamanho de nossa habitação guarda relação direta com a necessidade de iluminação e aquecimento (sobretudo nos países com maior amplitude térmica); uma dieta vegetariana elimina a pegada causada pela fermentação entérica etc.
Governos, entretanto, não precisam esperar passivamente que as pessoas tomem essas grandes decisões da maneira que mais beneficie a coletividade. O Estado dispõe de diversos mecanismos de arquitetura da escolha, e pode dar “empurrõezinhos” que levem as pessoas a tomar melhores decisões. Muitas vezes restrito ao imediatismo dos ciclos político- eleitorais, talvez o Estado também precise de um “dispositivo de compromisso” com as gerações futuras.
*Doutor em Administração Pública e Governo