Entenda a crise que está por trás da crise hídrica e quais outros dilemas a falta d’água revela
Passado mais de um ano das primeiras manchetes sobre a crise hídrica em São Paulo, as esperanças de que se trate de um problema passageiro se esgotam mais rápidas do que as águas do Sistema Cantareira. Com tantos alertas dados por especialistas e pela mídia, é difícil compreender como deixamos a situação chegar a esse ponto. O cenário das Unidades Hidrográficas de Gestão de Recursos Hídricos do Alto Tietê e de Piracicaba, Capivari e Jundiaí – principais unidades de abastecimento do Estado de São Paulo – já era crítico em 2010, considerando-se a disponibilidade hídrica versus as demandas pelo perfil demográfico da região, segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo 2012-2015.
Um levantamento feito pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e o Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam-IEE/USP) sobre notícias relacionadas à crise hídrica nos principais jornais do País revelou que a estiagem é citada como a principal causa para a crise hídrica, em 72% das notícias. Problemas como a má gestão ou falta de planejamento (21%), alterações climáticas (9%), desperdício ou perda de água (8%) e falta de investimento (7%) não são tão explorados pela grande imprensa [1]. Provavelmente porque a mídia reproduz o posicionamento do poder público em 80% dos casos.
[1] Os motivos não somam 100%, pois algumas reportagens citam mais de uma causa para a crise hídrica. O levantamento considerou os jornais: Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, no período entre 31 de janeiro e 15 de outubro de 2014. Veja os infográficos aqui.
O estudo indicou ainda que quase metade das soluções apontadas pela imprensa compõe-se de saídas urgentes e imediatas, como a transposição e integração de sistemas, redução de consumo e de desperdício e uso do volume morto.
No entanto, a falta d’água nas principais reservas que abastecem o estado mais rico do País não é um fator isolado e revela a ponta do iceberg de um grande desequilíbrio ambiental e político.
Problemas interdependentes
Não há lugar para soluções isoladas em um mundo interligado como atualmente. Erradicar a pobreza, alcançar a segurança hídrica e energética e assegurar alimentos para todos são ações que devem ser entendidas como um objetivo único. É o que propõe a Nexus – uma abordagem proposta pela International Conference on Sustainability in the Water-Energy-Food Nexus de 2014 para a gestão integrada e intersetorial dos recursos água, energia e alimentos. Afinal, a tomada de ações relacionadas a esses sistemas pode afetar uma a outra simultaneamente, já que precisamos de água para produzir alimentos e gerar energia e também de energia para produzir alimentos e tratar e distribuir água [2].
[2] Acesse publicação sobre a Nexus
O físico e escritor Fritjof Capra, em seu livro A Teia da Vida, lembra que os principais problemas enfrentados pela humanidade na virada do século XX para o XXI não podem ser compreendidos isoladamente. São questões sistêmicas, ou seja, estão interligadas e são interdependentes. “Esses problemas precisam ser vistos como diferentes facetas de uma única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, em especial nossas grandes instituições sociais, concorda com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta, uma percepção da realidade inadequada para lidarmos com o mundo superpovoado e globalmente interligado”, escreveu Capra.
Fenômeno mundial
O mau uso da água é um fenômeno mundial e as expectativas de consumo tendem a aumentar. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o uso da água cresceu a uma taxa duas vezes maior que o aumento da população ao longo do último século. Até 2025, o consumo de água deve subir 50% nos países em desenvolvimento e 18% nos países desenvolvidos, em um mundo onde 2 bilhões de pessoas viverão em regiões de absoluta escassez de água.
Mas não é apenas o aumento de demanda que ameaça o acesso à água. O desperdício, com perdas no sistema de abastecimento em todo o País, é preocupante. Calcula-se que 37% da água tratada para consumo é perdida antes de chegar às torneiras da população. Em casos extremos, essa taxa pode chegar a 77%, como no Estado do Amazonas. Falhas nas tubulações, fraudes e ligações clandestinas também afetam esses números, segundo dados do Relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades.
Outro problema é a poluição dos mananciais, que compromete a qualidade da água e pode impedir seu uso para fins de consumo humano. Atualmente, 2,5 bilhões de pessoas vivem sem acesso a saneamento básico, de acordo com a UN-Water. Segundo o Instituto Trata Brasil, 82% dos brasileiros são atendidos com abastecimento de água tratada. Mas somente 49% da população tem acesso à coleta de esgoto e apenas 39% dos esgotos coletados são tratados.
A poluição pode também ser agravada pela má disposição do lixo que produzimos. Dos resíduos sólidos urbanos gerados no País, 42% têm destinação final inadequada, totalizando 29 milhões de toneladas jogadas em aterros que, do ponto de vista ambiental, mesmo quando controlados, pouco se diferenciam dos lixões, pois não possuem o conjunto de sistemas necessários para a proteção do meio ambiente e da saúde pública. Os episódios de enchentes nas cidades, uma espécie de contraponto à seca, são o reflexo da falta de planejamento para drenagem da água da chuva. E, assim como o esgoto não tratado e a má destinação dos resíduos, as inundações sobrecarregam ainda mais os corpos hídricos, levando lixo aos rios e lagos.
O desmatamento é outro fator de interferência sobre a disponibilidade dos recursos hídricos. A Mata Atlântica, principal bioma das bacias hidrográficas do Estado de São Paulo, já teve 76% de sua área desmatada [3]. Mas a destruição da Amazônia e do Cerrado também interfere no abastecimento de água dos paulistas. A Amazônia detém a maior quantidade de água doce do Brasil de acordo com dados do Instituto Trata Brasil e, além disso, a floresta responde pela maior parte dos mananciais superficiais do País (mais na reportagem “Ação e reação“). Já a vegetação nativa do Cerrado possui longas raízes para levar a água da superfície aos aquíferos. Mas, com a substituição dessa vegetação por plantações de soja e milho desde a década de 1970 e a perda de 48% desse bioma no País, a capacidade de recarga dos aquíferos está ameaçada, o que pode levar até ao desaparecimento de rios como o São Francisco [4].
[3] Os dados são do Estudo de Monitoramento da Mata Atlântica do Ministério do Meio Ambiente. Acesse aqui.
[4] Leia entrevista do professor Altair Sales Barbosa, da PUC Goiás, ao portal Jornal Opção
Com tantos fatores de pressão sobre os sistemas hídricos, não resta muito a não ser uma adaptação a um cenário de pouca água. Mas economizar água é mais que fechar a torneira de casa ao escovar os dentes ou outras medidas domésticas. Escolhas de consumo mais conscientes têm muito a contribuir. Uma refeição à base de carne gasta tanto quanto 15 banhos de banheira [5].
[5] Saiba mais.
Uma pesquisa do Data4Good avaliou a pegada hídrica de alguns alimentos e a recomendação é que, sempre que possível, produtos vegetais sejam privilegiados em detrimento dos de origem animal.
Segundo a ONU, aproximadamente 70% de toda a água potável disponível no mundo é utilizada na produção de alimentos pela agricultura. As atividades industriais consomem 22% e o uso doméstico 8%. Diferentemente do perfil de consumo global de água, no Estado de São Paulo, devido à densidade demográfica, o consumo urbano é o mais representativo (41%). Mas quando se avalia a principal unidade de abastecimento do Estado – o Alto Tietê, que abrange parte do Sistema Cantareira – a demanda industrial por água chega a representar 37% do total [6].
[6] Os dados são do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo 2012-2015
O Brasil é signatário de uma resolução da ONU de 2010, segundo a qual o acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial. E quem deve assegurar isso é o governo, conforme explicitado na Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997.
No entanto, a situação atual mostra que esses compromissos não se refletem na realidade. “Isso é um direito no papel, muito longe de ser efetivado. Podemos ver essa crise como uma oportunidade para transformar o acesso à água num direito real, mudando completamente os mecanismos de gestão e a consciência das pessoas para que isso não se repita jamais”, comenta Pedro Telles, coordenador da campanha de clima e energia do Greenpeace Brasil.
O direito à água potável e ao saneamento básico são essenciais para garantir o direito à vida, à saúde, à alimentação e à habitação. Mas é claro que, para a crise hídrica chegar a esse ponto, muitas regras do jogo já foram quebradas, inclusive pelo próprio governo. Uma vez que a situação chegou a esse nível, é hora de apresentar um plano de ação que mostre claramente novas regras de uso da água. “A crise [de abastecimento] chegou e deve durar uns três ou quatro anos até estar realmente resolvida. Pela primeira vez, fica evidente como os recursos naturais são escassos e também o impacto social gravíssimo que teremos se ultrapassarmos os limites da natureza. Essa crise escancara a relação entre questões ambientais e sociais”, afirma Pedro Telles.
O modelo brasileiro de gestão de bacias prevê a participação social, fundamental para lidar com problemas complexos como a falta d’água, para auxiliar na tomada de decisão. Mas na prática isso não tem funcionado
Arcabouço ultrapassado
Para além dos diversos aspectos ambientais e políticos que contribuíram para o agravamento da crise hídrica, há um problema ainda mais estrutural: o descompasso entre a velocidade que os desafios da sustentabilidade exigem e o tempo necessário à tomada de decisão de forma democrática, mesmo na era da Tecnologia da Informação. Com isso, tem crescido o número de iniciativas que buscam criar mecanismos baseados na ideia de participação política em rede. “A tecnologia está tornando possível uma abordagem bottom-up [de baixo para cima, vinda da sociedade até o governo]”, comenta Mair Williams, pesquisadora da DemocracyOS, uma iniciativa para democracia em rede.
A participação social na formulação de políticas públicas é pré-requisito para lidar com dilemas tão grandes como a crise da água. O modelo brasileiro de gestão descentralizada dos recursos hídricos prevê a participação da sociedade por meio dos comitês de bacia. Baseado no modelo francês, esses comitês seriam o principal organismo decisório para mediar conflitos e assegurar o equilíbrio entre oferta e demanda a longo prazo. Mas, em vez de serem usados como fontes de subsídios para decisões do governo, os comitês têm figurado como peças decorativas (mais na reportagem “Conta Vencida”).
Mais ainda que a falta de participação, incoerências entre o que é esperado de algumas decisões e o que acontece na prática também é um ponto de atenção. “O governo faz uma política horizontal, sem entender direito como isso será implementado no âmbito local, mas cada município tem uma particularidade.
Por isso, hoje existem muitos estudos sobre indicadores locais, uma forma de conseguir entender melhor o impacto dessas políticas”, comenta o professor João Paulo Candia, do Departamento de Ciência Política da USP.
A preocupação de Fritjof Capra com o pensamento linear que perpassa diversos níveis de organização da nossa sociedade encontra justificativa na situação que vivemos. O físico reconhece que a prática da visão sistêmica não passa de sonho nos dias de hoje e que as decisões tomadas pelos homens têm gerado mais problemas que soluções. “Nossos líderes não só deixam de reconhecer como diferentes problemas estão inter-relacionados; eles também se recusam a reconhecer como suas assim chamadas soluções afetam as gerações futuras”, critica Capra.[:en]Entenda a crise que está por trás da crise hídrica e quais outros dilemas a falta d’água revela
Passado mais de um ano das primeiras manchetes sobre a crise hídrica em São Paulo, as esperanças de que se trate de um problema passageiro se esgotam mais rápidas do que as águas do Sistema Cantareira. Com tantos alertas dados por especialistas e pela mídia, é difícil compreender como deixamos a situação chegar a esse ponto. O cenário das Unidades Hidrográficas de Gestão de Recursos Hídricos do Alto Tietê e de Piracicaba, Capivari e Jundiaí – principais unidades de abastecimento do Estado de São Paulo – já era crítico em 2010, considerando-se a disponibilidade hídrica versus as demandas pelo perfil demográfico da região, segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo 2012-2015.
Um levantamento feito pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e o Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam-IEE/USP) sobre notícias relacionadas à crise hídrica nos principais jornais do País revelou que a estiagem é citada como a principal causa para a crise hídrica, em 72% das notícias. Problemas como a má gestão ou falta de planejamento (21%), alterações climáticas (9%), desperdício ou perda de água (8%) e falta de investimento (7%) não são tão explorados pela grande imprensa [1]. Provavelmente porque a mídia reproduz o posicionamento do poder público em 80% dos casos.
[1] Os motivos não somam 100%, pois algumas reportagens citam mais de uma causa para a crise hídrica. O levantamento considerou os jornais: Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, no período entre 31 de janeiro e 15 de outubro de 2014. Veja os infográficos aqui.
O estudo indicou ainda que quase metade das soluções apontadas pela imprensa compõe-se de saídas urgentes e imediatas, como a transposição e integração de sistemas, redução de consumo e de desperdício e uso do volume morto.
No entanto, a falta d’água nas principais reservas que abastecem o estado mais rico do País não é um fator isolado e revela a ponta do iceberg de um grande desequilíbrio ambiental e político.
Problemas interdependentes
Não há lugar para soluções isoladas em um mundo interligado como atualmente. Erradicar a pobreza, alcançar a segurança hídrica e energética e assegurar alimentos para todos são ações que devem ser entendidas como um objetivo único. É o que propõe a Nexus – uma abordagem proposta pela International Conference on Sustainability in the Water-Energy-Food Nexus de 2014 para a gestão integrada e intersetorial dos recursos água, energia e alimentos. Afinal, a tomada de ações relacionadas a esses sistemas pode afetar uma a outra simultaneamente, já que precisamos de água para produzir alimentos e gerar energia e também de energia para produzir alimentos e tratar e distribuir água [2].
[2] Acesse publicação sobre a Nexus
O físico e escritor Fritjof Capra, em seu livro A Teia da Vida, lembra que os principais problemas enfrentados pela humanidade na virada do século XX para o XXI não podem ser compreendidos isoladamente. São questões sistêmicas, ou seja, estão interligadas e são interdependentes. “Esses problemas precisam ser vistos como diferentes facetas de uma única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, em especial nossas grandes instituições sociais, concorda com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta, uma percepção da realidade inadequada para lidarmos com o mundo superpovoado e globalmente interligado”, escreveu Capra.
Fenômeno mundial
O mau uso da água é um fenômeno mundial e as expectativas de consumo tendem a aumentar. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o uso da água cresceu a uma taxa duas vezes maior que o aumento da população ao longo do último século. Até 2025, o consumo de água deve subir 50% nos países em desenvolvimento e 18% nos países desenvolvidos, em um mundo onde 2 bilhões de pessoas viverão em regiões de absoluta escassez de água.
Mas não é apenas o aumento de demanda que ameaça o acesso à água. O desperdício, com perdas no sistema de abastecimento em todo o País, é preocupante. Calcula-se que 37% da água tratada para consumo é perdida antes de chegar às torneiras da população. Em casos extremos, essa taxa pode chegar a 77%, como no Estado do Amazonas. Falhas nas tubulações, fraudes e ligações clandestinas também afetam esses números, segundo dados do Relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades.
Outro problema é a poluição dos mananciais, que compromete a qualidade da água e pode impedir seu uso para fins de consumo humano. Atualmente, 2,5 bilhões de pessoas vivem sem acesso a saneamento básico, de acordo com a UN-Water. Segundo o Instituto Trata Brasil, 82% dos brasileiros são atendidos com abastecimento de água tratada. Mas somente 49% da população tem acesso à coleta de esgoto e apenas 39% dos esgotos coletados são tratados.
A poluição pode também ser agravada pela má disposição do lixo que produzimos. Dos resíduos sólidos urbanos gerados no País, 42% têm destinação final inadequada, totalizando 29 milhões de toneladas jogadas em aterros que, do ponto de vista ambiental, mesmo quando controlados, pouco se diferenciam dos lixões, pois não possuem o conjunto de sistemas necessários para a proteção do meio ambiente e da saúde pública. Os episódios de enchentes nas cidades, uma espécie de contraponto à seca, são o reflexo da falta de planejamento para drenagem da água da chuva. E, assim como o esgoto não tratado e a má destinação dos resíduos, as inundações sobrecarregam ainda mais os corpos hídricos, levando lixo aos rios e lagos.
O desmatamento é outro fator de interferência sobre a disponibilidade dos recursos hídricos. A Mata Atlântica, principal bioma das bacias hidrográficas do Estado de São Paulo, já teve 76% de sua área desmatada [3]. Mas a destruição da Amazônia e do Cerrado também interfere no abastecimento de água dos paulistas. A Amazônia detém a maior quantidade de água doce do Brasil de acordo com dados do Instituto Trata Brasil e, além disso, a floresta responde pela maior parte dos mananciais superficiais do País (mais na reportagem “Ação e reação“). Já a vegetação nativa do Cerrado possui longas raízes para levar a água da superfície aos aquíferos. Mas, com a substituição dessa vegetação por plantações de soja e milho desde a década de 1970 e a perda de 48% desse bioma no País, a capacidade de recarga dos aquíferos está ameaçada, o que pode levar até ao desaparecimento de rios como o São Francisco [4].
[3] Os dados são do Estudo de Monitoramento da Mata Atlântica do Ministério do Meio Ambiente. Acesse aqui.
[4] Leia entrevista do professor Altair Sales Barbosa, da PUC Goiás, ao portal Jornal Opção
Com tantos fatores de pressão sobre os sistemas hídricos, não resta muito a não ser uma adaptação a um cenário de pouca água. Mas economizar água é mais que fechar a torneira de casa ao escovar os dentes ou outras medidas domésticas. Escolhas de consumo mais conscientes têm muito a contribuir. Uma refeição à base de carne gasta tanto quanto 15 banhos de banheira [5].
[5] Saiba mais.
Uma pesquisa do Data4Good avaliou a pegada hídrica de alguns alimentos e a recomendação é que, sempre que possível, produtos vegetais sejam privilegiados em detrimento dos de origem animal.
Segundo a ONU, aproximadamente 70% de toda a água potável disponível no mundo é utilizada na produção de alimentos pela agricultura. As atividades industriais consomem 22% e o uso doméstico 8%. Diferentemente do perfil de consumo global de água, no Estado de São Paulo, devido à densidade demográfica, o consumo urbano é o mais representativo (41%). Mas quando se avalia a principal unidade de abastecimento do Estado – o Alto Tietê, que abrange parte do Sistema Cantareira – a demanda industrial por água chega a representar 37% do total [6].
[6] Os dados são do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo 2012-2015
O Brasil é signatário de uma resolução da ONU de 2010, segundo a qual o acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial. E quem deve assegurar isso é o governo, conforme explicitado na Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997.
No entanto, a situação atual mostra que esses compromissos não se refletem na realidade. “Isso é um direito no papel, muito longe de ser efetivado. Podemos ver essa crise como uma oportunidade para transformar o acesso à água num direito real, mudando completamente os mecanismos de gestão e a consciência das pessoas para que isso não se repita jamais”, comenta Pedro Telles, coordenador da campanha de clima e energia do Greenpeace Brasil.
O direito à água potável e ao saneamento básico são essenciais para garantir o direito à vida, à saúde, à alimentação e à habitação. Mas é claro que, para a crise hídrica chegar a esse ponto, muitas regras do jogo já foram quebradas, inclusive pelo próprio governo. Uma vez que a situação chegou a esse nível, é hora de apresentar um plano de ação que mostre claramente novas regras de uso da água. “A crise [de abastecimento] chegou e deve durar uns três ou quatro anos até estar realmente resolvida. Pela primeira vez, fica evidente como os recursos naturais são escassos e também o impacto social gravíssimo que teremos se ultrapassarmos os limites da natureza. Essa crise escancara a relação entre questões ambientais e sociais”, afirma Pedro Telles.
O modelo brasileiro de gestão de bacias prevê a participação social, fundamental para lidar com problemas complexos como a falta d’água, para auxiliar na tomada de decisão. Mas na prática isso não tem funcionado
Arcabouço ultrapassado
Para além dos diversos aspectos ambientais e políticos que contribuíram para o agravamento da crise hídrica, há um problema ainda mais estrutural: o descompasso entre a velocidade que os desafios da sustentabilidade exigem e o tempo necessário à tomada de decisão de forma democrática, mesmo na era da Tecnologia da Informação. Com isso, tem crescido o número de iniciativas que buscam criar mecanismos baseados na ideia de participação política em rede. “A tecnologia está tornando possível uma abordagem bottom-up [de baixo para cima, vinda da sociedade até o governo]”, comenta Mair Williams, pesquisadora da DemocracyOS, uma iniciativa para democracia em rede.
A participação social na formulação de políticas públicas é pré-requisito para lidar com dilemas tão grandes como a crise da água. O modelo brasileiro de gestão descentralizada dos recursos hídricos prevê a participação da sociedade por meio dos comitês de bacia. Baseado no modelo francês, esses comitês seriam o principal organismo decisório para mediar conflitos e assegurar o equilíbrio entre oferta e demanda a longo prazo. Mas, em vez de serem usados como fontes de subsídios para decisões do governo, os comitês têm figurado como peças decorativas (mais na reportagem “Conta Vencida”).
Mais ainda que a falta de participação, incoerências entre o que é esperado de algumas decisões e o que acontece na prática também é um ponto de atenção. “O governo faz uma política horizontal, sem entender direito como isso será implementado no âmbito local, mas cada município tem uma particularidade.
Por isso, hoje existem muitos estudos sobre indicadores locais, uma forma de conseguir entender melhor o impacto dessas políticas”, comenta o professor João Paulo Candia, do Departamento de Ciência Política da USP.
A preocupação de Fritjof Capra com o pensamento linear que perpassa diversos níveis de organização da nossa sociedade encontra justificativa na situação que vivemos. O físico reconhece que a prática da visão sistêmica não passa de sonho nos dias de hoje e que as decisões tomadas pelos homens têm gerado mais problemas que soluções. “Nossos líderes não só deixam de reconhecer como diferentes problemas estão inter-relacionados; eles também se recusam a reconhecer como suas assim chamadas soluções afetam as gerações futuras”, critica Capra.