Com porte grave, James Inhofe tomou a palavra em sessão no Senado norte-americano no último dia 26 disposto a contestar da forma mais efetiva possível a ideia de que o planeta Terra esteja vivendo algum tipo de “aquecimento”. No meio de seu discurso, para um plenário relativamente vazio, Inhofe repentinamente desembala uma bola de neve e a levanta, mostrando-a para seus colegas. A constatação: como podemos estar no meio de um processo de aquecimento global, com as temperaturas médias globais subindo radicalmente nas últimas décadas, se está frio pra c… lá fora! Afinal, pelo segundo ano consecutivo, o norte dos EUA e o Canadá vivem invernos com recordes de temperaturas baixas. No ano passado, essa região ficou praticamente congelada por causa do chamado vértice polar. Ainda assim, para incômodo de Inhofe e de seus parceiros negacionistas, as agências científicas do governo norte-americano (NOAA e NASA) apontaram o ano de 2014 como o mais quente já registrado no país. Como isso é possível? Com bola de neve e tudo?
Essa tem sido uma luta particularmente difícil para o veterano senador republicano pelo estado de Oklahoma: nem mesmo a maior parte dos simpatizantes de seu partido concorda com sua posição. Pesquisa recente publicada pelo jornal The New York Times aponta que quase metade das pessoas que se identificam como republicanas apoiaria candidatos de seu partido que defendessem ações contra as mudanças climáticas. No público geral, 67% dos entrevistados estariam menos inclinados a votar em um candidato caso ele não acreditasse nas mudanças do clima. Os números, ainda que comparativamente pequenos, principalmente se olharmos para pesquisas desse tipo na Europa, mostram o quanto o público norte-americano aumentou seu grau de preocupação com esse problema desde o início do século. Na mídia e nas redes sociais, a batalha de Inhofe e sua “bola de neve” foi perdida: a cena do senador jogando uma bola de neve no plenário de senado transformou-se num meme constrangedor, alvo de críticas ácidas da direita e da esquerda norte-americana.
Para alívio de Inhofe e seus aliados, nesta legislatura o senador ganhou um palanque especial para contestar o que ele chama de “farsa” das mudanças do clima: a presidência do Comitê de Trabalhos Públicos e Meio Ambiente do Senado. Num ano particularmente importante para o processo político de negociação internacional no tema e num momento crucial anterior à disputa presidencial norte-americana em 2016, a presença de Inhofe numa posição de destaque no Senado é mais uma peça na estratégia republicana para desmontar as ações climáticas tomadas pelo governo Barack Obama nos últimos anos. Driblando a oposição republicana no Congresso, Obama tem editado decretos executivos para fazer valer seu objetivo de colocar os EUA num caminho mais racional no combate ao aquecimento do planeta – bem distante da inação política característica do mandato de seu antecessor, o republicano George W. Bush (2001-2009). Para os republicanos, derrubar essas medidas no Congresso imporia mais uma grande derrota ao presidente na véspera de uma disputa presidencial, com grande possibilidade de esse revés contaminar as chances políticas do/a futuro/a candidato/a democrata à Presidência no próximo ano.
Poucos lugares nesse mundo apresentam uma partidarização tão profunda da questão climática como os EUA. O debate político sobre o tema cultiva aquele tipo de radicalização tão comum nos chamados “grandes temas sociais”, como o uso de drogas, o direito ao aborto, e casamento civil de pessoas do mesmo sexo: ou você apoia ou você não apoia – ou seja, se você apoia, provavelmente você tende a se alinhar os democratas; se você não apoia, possivelmente você tenha mais apreço pelos republicanos. Inserido nessa disputa entre conservadores republicanos e liberais democratas (uma simplificação da realidade política de cada partido e das dezenas de outros partidos sem representação política no país), o problema climático tornou-se menos uma questão de constatação científica e mais uma questão de opinião política.
Como no resto do mundo, a principal variável na equação política do clima nos EUA é a economia. Para o governo Obama, os EUA não podem mais se isentar de sua responsabilidade pelo problema climático; mais do que simplesmente cortar emissões, o atual presidente norte-americano defende uma abordagem mais positiva do desafio climático, olhando-o como uma oportunidade para modernizar a economia do país e torná-la mais competitiva no pós-crise financeira. De acordo com o presidente, o governo deve trabalhar na transição para uma economia preparada para trabalhar com menos emissões de gases do efeito estufa, olhando para o que já está sendo feito na Europa e na China. Para a oposição republicana, essas políticas endereçam um problema que eles não concordam que existe e machucam gravemente a economia norte-americana, ao restringir o uso de fontes baratas e tradicionais de produção energética (leia-se carvão e petróleo).
O capítulo mais recente nessa seara foi a aprovação pelo Congresso da construção do oleoduto Keystone XL – quase 1.900 km de dutos para transportar petróleo da província canadense de Alberta para o estado norte-americano de Nebraska, num volume que chegaria a 830 mil barris de óleo por dia. Para os republicanos, a construção desse novo trecho da Keystone diminuiria a dependência de petróleo vindo do Oriente Médio, aumentaria a oferta desse produto (o que reduziria os preços no país) e geraria 42 mil vagas de trabalho durante os dois anos de implantação. Para os democratas, junto com ambientalistas, esse trecho de oleoduto poderia impactar gravemente o meio ambiente em regiões sensíveis previstas no traçado do projeto, em especial no estado de Montana, além de ir contra a proposta do atual governo em diminuir o uso de combustível fóssil por parte da indústria norte-americana.
Em fevereiro passado, aproveitando a nova maioria republicana no Senado, o Congresso aprovou sua construção. Pouco depois, Obama rejeitou a proposta aprovada pelos congressistas, afirmando que a decisão sobre essa questão deve ser tomada pelo poder executivo. Sem votos para derrubar o veto presidencial, os republicanos continuam defendendo a proposta e aguardam os próximos passos do governo Obama ou mesmo a eleição do próximo governo. A “vitória” dos grupos ambientalistas ainda é provisória: a atual administração não rejeita a possibilidade de aprovar a construção da Keystone XL, mas exige que alterações sejam feitas no projeto de construção. Essa aprovação pode vir a ser feita pelo próprio presidente Obama ou pelo seu sucessor.
No caso norte-americano, uma variável que complica ainda mais o debate político sobre clima é a crença religiosa. Para alguns conservadores cristãos, que compõem o famoso Tea Party, a narrativa da responsabilidade humana sobre as alterações recentes do clima replica a “arrogância” liberal de achar que os homens podem mais que Deus. Nesse ponto, a principal crítica vai para a ciência como um todo. O raciocínio que contesta a ciência por trás dos estudos sobre clima é similar àquele que rejeita o ensino da teoria da evolução natural das espécies nas escolas ou mesmo o movimento recente contra vacinação infantil: a ciência, arrogante em seu próprio conhecimento, é incapaz de explicar o que, para esses setores, tem uma resposta “transcendental”. Assim, as mudanças do clima são eventos naturais, nos quais a humanidade não tem responsabilidade alguma (leia-se vontade divina), ou elas são simples factoide, não passam de uma “farsa” propagada para atingir os Estados Unidos.
Em muitas análises da discussão política sobre clima nos Estados Unidos, frequentemente essa variável sociocultural é desconsiderada como um obstáculo efetivo para a ação política no país. De acordo com esse raciocínio, as variáveis econômicas são muito mais importantes para definir qual será o caminho tomado pelos EUA; se a ação climática se explicar em termos econômicos, ela se viabilizará. Concordo com isso, mas considero perigoso ignorar o potencial danoso que uma abordagem anticientífica pode ter sobre o processo decisório da maior potência do planeta – que possui regras eleitorais sui generis que permitem que um candidato com menos votos gerais, dependendo da distribuição de seus votos nos estados, consiga assegurar a presidência do país. A possível eleição de um negacionista iria derrubar todas as medidas tomadas e os avanços realizados pelo governo Obama em clima com apenas uma assinatura presidencial. Isso traria consequências sinistras para os Estados Unidos e para as discussões internacionais em clima, que já sofreram danos em outros momentos por causa da reticência de quem ocupava a Casa Branca.
Aos poucos, os republicanos começam a tentar a reconciliação com a ciência climática. Graças em boa medida à influência de grandes lideranças empresariais e de alguns líderes políticos do partido alinhados com o tema, como o ex-governador e astro de Hollywood Arnold Schwarzenegger, setores mais realistas do partido começam a defender algum grau de ação política para conter as mudanças do clima. Entretanto, olhando para as lideranças congressistas e estaduais do partido, o caminho para uma compreensão mais clara da relevância das mudanças climáticas será longo para os republicanos. Que a bola de neve da ignorância climática não esmague os eleitores norte-americanos em 2016![:en]Com porte grave, James Inhofe tomou a palavra em sessão no Senado norte-americano no último dia 26 disposto a contestar da forma mais efetiva possível a ideia de que o planeta Terra esteja vivendo algum tipo de “aquecimento”. No meio de seu discurso, para um plenário relativamente vazio, Inhofe repentinamente desembala uma bola de neve e a levanta, mostrando-a para seus colegas. A constatação: como podemos estar no meio de um processo de aquecimento global, com as temperaturas médias globais subindo radicalmente nas últimas décadas, se está frio pra c… lá fora! Afinal, pelo segundo ano consecutivo, o norte dos EUA e o Canadá vivem invernos com recordes de temperaturas baixas. No ano passado, essa região ficou praticamente congelada por causa do chamado vértice polar. Ainda assim, para incômodo de Inhofe e de seus parceiros negacionistas, as agências científicas do governo norte-americano (NOAA e NASA) apontaram o ano de 2014 como o mais quente já registrado no país. Como isso é possível? Com bola de neve e tudo?
Essa tem sido uma luta particularmente difícil para o veterano senador republicano pelo estado de Oklahoma: nem mesmo a maior parte dos simpatizantes de seu partido concorda com sua posição. Pesquisa recente publicada pelo jornal The New York Times aponta que quase metade das pessoas que se identificam como republicanas apoiaria candidatos de seu partido que defendessem ações contra as mudanças climáticas. No público geral, 67% dos entrevistados estariam menos inclinados a votar em um candidato caso ele não acreditasse nas mudanças do clima. Os números, ainda que comparativamente pequenos, principalmente se olharmos para pesquisas desse tipo na Europa, mostram o quanto o público norte-americano aumentou seu grau de preocupação com esse problema desde o início do século. Na mídia e nas redes sociais, a batalha de Inhofe e sua “bola de neve” foi perdida: a cena do senador jogando uma bola de neve no plenário de senado transformou-se num meme constrangedor, alvo de críticas ácidas da direita e da esquerda norte-americana.
Para alívio de Inhofe e seus aliados, nesta legislatura o senador ganhou um palanque especial para contestar o que ele chama de “farsa” das mudanças do clima: a presidência do Comitê de Trabalhos Públicos e Meio Ambiente do Senado. Num ano particularmente importante para o processo político de negociação internacional no tema e num momento crucial anterior à disputa presidencial norte-americana em 2016, a presença de Inhofe numa posição de destaque no Senado é mais uma peça na estratégia republicana para desmontar as ações climáticas tomadas pelo governo Barack Obama nos últimos anos. Driblando a oposição republicana no Congresso, Obama tem editado decretos executivos para fazer valer seu objetivo de colocar os EUA num caminho mais racional no combate ao aquecimento do planeta – bem distante da inação política característica do mandato de seu antecessor, o republicano George W. Bush (2001-2009). Para os republicanos, derrubar essas medidas no Congresso imporia mais uma grande derrota ao presidente na véspera de uma disputa presidencial, com grande possibilidade de esse revés contaminar as chances políticas do/a futuro/a candidato/a democrata à Presidência no próximo ano.
Poucos lugares nesse mundo apresentam uma partidarização tão profunda da questão climática como os EUA. O debate político sobre o tema cultiva aquele tipo de radicalização tão comum nos chamados “grandes temas sociais”, como o uso de drogas, o direito ao aborto, e casamento civil de pessoas do mesmo sexo: ou você apoia ou você não apoia – ou seja, se você apoia, provavelmente você tende a se alinhar os democratas; se você não apoia, possivelmente você tenha mais apreço pelos republicanos. Inserido nessa disputa entre conservadores republicanos e liberais democratas (uma simplificação da realidade política de cada partido e das dezenas de outros partidos sem representação política no país), o problema climático tornou-se menos uma questão de constatação científica e mais uma questão de opinião política.
Como no resto do mundo, a principal variável na equação política do clima nos EUA é a economia. Para o governo Obama, os EUA não podem mais se isentar de sua responsabilidade pelo problema climático; mais do que simplesmente cortar emissões, o atual presidente norte-americano defende uma abordagem mais positiva do desafio climático, olhando-o como uma oportunidade para modernizar a economia do país e torná-la mais competitiva no pós-crise financeira. De acordo com o presidente, o governo deve trabalhar na transição para uma economia preparada para trabalhar com menos emissões de gases do efeito estufa, olhando para o que já está sendo feito na Europa e na China. Para a oposição republicana, essas políticas endereçam um problema que eles não concordam que existe e machucam gravemente a economia norte-americana, ao restringir o uso de fontes baratas e tradicionais de produção energética (leia-se carvão e petróleo).
O capítulo mais recente nessa seara foi a aprovação pelo Congresso da construção do oleoduto Keystone XL – quase 1.900 km de dutos para transportar petróleo da província canadense de Alberta para o estado norte-americano de Nebraska, num volume que chegaria a 830 mil barris de óleo por dia. Para os republicanos, a construção desse novo trecho da Keystone diminuiria a dependência de petróleo vindo do Oriente Médio, aumentaria a oferta desse produto (o que reduziria os preços no país) e geraria 42 mil vagas de trabalho durante os dois anos de implantação. Para os democratas, junto com ambientalistas, esse trecho de oleoduto poderia impactar gravemente o meio ambiente em regiões sensíveis previstas no traçado do projeto, em especial no estado de Montana, além de ir contra a proposta do atual governo em diminuir o uso de combustível fóssil por parte da indústria norte-americana.
Em fevereiro passado, aproveitando a nova maioria republicana no Senado, o Congresso aprovou sua construção. Pouco depois, Obama rejeitou a proposta aprovada pelos congressistas, afirmando que a decisão sobre essa questão deve ser tomada pelo poder executivo. Sem votos para derrubar o veto presidencial, os republicanos continuam defendendo a proposta e aguardam os próximos passos do governo Obama ou mesmo a eleição do próximo governo. A “vitória” dos grupos ambientalistas ainda é provisória: a atual administração não rejeita a possibilidade de aprovar a construção da Keystone XL, mas exige que alterações sejam feitas no projeto de construção. Essa aprovação pode vir a ser feita pelo próprio presidente Obama ou pelo seu sucessor.
No caso norte-americano, uma variável que complica ainda mais o debate político sobre clima é a crença religiosa. Para alguns conservadores cristãos, que compõem o famoso Tea Party, a narrativa da responsabilidade humana sobre as alterações recentes do clima replica a “arrogância” liberal de achar que os homens podem mais que Deus. Nesse ponto, a principal crítica vai para a ciência como um todo. O raciocínio que contesta a ciência por trás dos estudos sobre clima é similar àquele que rejeita o ensino da teoria da evolução natural das espécies nas escolas ou mesmo o movimento recente contra vacinação infantil: a ciência, arrogante em seu próprio conhecimento, é incapaz de explicar o que, para esses setores, tem uma resposta “transcendental”. Assim, as mudanças do clima são eventos naturais, nos quais a humanidade não tem responsabilidade alguma (leia-se vontade divina), ou elas são simples factoide, não passam de uma “farsa” propagada para atingir os Estados Unidos.
Em muitas análises da discussão política sobre clima nos Estados Unidos, frequentemente essa variável sociocultural é desconsiderada como um obstáculo efetivo para a ação política no país. De acordo com esse raciocínio, as variáveis econômicas são muito mais importantes para definir qual será o caminho tomado pelos EUA; se a ação climática se explicar em termos econômicos, ela se viabilizará. Concordo com isso, mas considero perigoso ignorar o potencial danoso que uma abordagem anticientífica pode ter sobre o processo decisório da maior potência do planeta – que possui regras eleitorais sui generis que permitem que um candidato com menos votos gerais, dependendo da distribuição de seus votos nos estados, consiga assegurar a presidência do país. A possível eleição de um negacionista iria derrubar todas as medidas tomadas e os avanços realizados pelo governo Obama em clima com apenas uma assinatura presidencial. Isso traria consequências sinistras para os Estados Unidos e para as discussões internacionais em clima, que já sofreram danos em outros momentos por causa da reticência de quem ocupava a Casa Branca.
Aos poucos, os republicanos começam a tentar a reconciliação com a ciência climática. Graças em boa medida à influência de grandes lideranças empresariais e de alguns líderes políticos do partido alinhados com o tema, como o ex-governador e astro de Hollywood Arnold Schwarzenegger, setores mais realistas do partido começam a defender algum grau de ação política para conter as mudanças do clima. Entretanto, olhando para as lideranças congressistas e estaduais do partido, o caminho para uma compreensão mais clara da relevância das mudanças climáticas será longo para os republicanos. Que a bola de neve da ignorância climática não esmague os eleitores norte-americanos em 2016!
Bruno Toledo