Não há como fazer cidades voltadas para as pessoas sem resolver o nó da mobilidade, e não há como desfazer esse nó sem antes promover uma mudança cultural. O secretário Nabil Bonduki, que transita entre o urbanismo e a cultura, pasta que ocupa na prefeitura de São Paulo, resgata a história da cidade que foi atropelada pelos carros e por uma divisão territorial que segregou ricos e pobres, usuários do transporte particular e do coletivo, em linha com a desigualdade que tanto caracteriza o Brasil.
Claramente, popularizar o transporte individual motorizado não foi solução para as cidades e agora o desafio está em desprivatizar os lugares de uso comum. Mas isso só funciona caso as pessoas desejem conviver. Ampliar o uso compartilhado do espaço e do transporte somente será realidade quando o amor e o respeito superarem a diferença de classes. A boa notícia é que esse movimento vem turbinado por uma juventude cada vez mais articulada em rede, capaz de espalhar um poder difuso em busca de uma cidade para chamar de nossa.
O chamado Novo Urbanismo busca trazer as cidades para uma escala mais humana, priorizando o bem-estar das pessoas. Os instrumentos públicos existentes em uma cidade como São Paulo são suficientes para fazer uma transformação nesse sentido?
Nós temos historicamente uma cidade que se configurou de modo a não contemplar esse uso dos espaços públicos pelas pessoas, e sim a priorizar o uso dos automóveis, principalmente a partir dos anos 1920. Priorizou a abertura de avenidas e acabou suprimindo praças para transformá-las em novos sistemas viários ou em terminais de transporte coletivo. Também optou por uma estrutura de transporte público radiocêntrica, do Centro para os bairros, atendendo a uma lógica de segregação, na qual a classe média anda de automóvel e a população trabalhadora, de baixa renda, usa o transporte coletivo e vai se alojar nas periferias.
As principais praças do Centro, como Parque Dom Pedro, a Praça das Bandeiras, a Princesa Isabel, a do Correio, praticamente foram suprimidas para virar terminais de ônibus. Outras, como a João Mendes, que hoje nem sequer as pessoas percebem que são praça, viraram parte do sistema viário. A Praça Portugal, no encontro da Avenida Rebouças com a Brasil, hoje é um entroncamento viário. Isso se reproduz pela cidade toda. Essa proposta urbana, baseada no automóvel e em um transporte coletivo que não está racionalizado, que não foi pensado para ter conforto e economia, acabou fazendo com que a cidade tivesse muito pouco espaço público destinado ao cidadão.
Então a questão viária, de transportes, é determinante? Sem resolver isso não teremos um urbanismo voltado para as pessoas?
Dificilmente. Claro que também há outros problemas. Na periferia, muitos espaços eram destinados para praças, pois, quando há um loteamento, este deve doar para a prefeitura uma porcentagem do terreno para áreas verdes, institucionais etc. Só que essas áreas, em vez de serem destinadas para o coletivo, ficaram muitas vezes abandonadas, porque o poder público não implantou praças. Depois, por carência de política de habitação, acabaram ocupadas por favelas e assentamentos precários.
São Paulo é a cidade que mais cresceu no mundo na segunda metade do século XX. Em 1940, tínhamos 1,5 milhão de pessoas na região metropolitana e chegamos no fim do século com 17 milhões. E esse período é exatamente aquele em que a cultura do automóvel predominou e a carência de habitação foi muito forte, porque a migração foi intensa e o poder público não conseguiu planejar essa expansão da cidade. Vimos o espaço público da cidade – a rua é o espaço público por excelência – sendo ocupado pelo automóvel e, em seguida, perdendo o protagonismo diante da necessidade de ocupação habitacional.
Com isso, formou-se em São Paulo uma cultura que é a do espaço privado. Em outras cidades no Brasil, como o Rio, a presença da praia cria uma cultura de utilização do espaço público, mas não só isso, é também a cultura do boteco. Lá se recebe menos em casa, enquanto em São Paulo o espaço da casa é muito valorizado. Esse “antiurbanismo” fez com que perdêssemos a possibilidade de contemplar a vida urbana nos espaços de sociabilidade.
E essa cultura se solidificou. Lembramos do caso de um professor que, procurado pelo repórter do caderno de “cidades” de um jornal, respondeu que tinha de ser ouvido pelo caderno de cultura, pois urbanismo é um assunto de caráter cultural.
Urbanismo é cultura, até porque faz parte de um processo criativo. Ao mesmo tempo, é atravessado pela questão da propriedade da terra, do processo imobiliário e do interesse econômico.
E, na questão da mobilidade, onde está o interesse econômico?
Primeiramente, na indústria automobilística. No Brasil, ela foi o carro-chefe do processo de industrialização e, pelo menos durante muitas décadas, era seletiva, ou seja, só conseguia atender adequadamente quem tinha renda para adquirir o carro. A maior parte da população ficava excluída.
No fundo, a gente viveu e vive uma privatização do espaço público. Um carro ocupa 25 metros [quadrados] quando está estacionado na rua, ou 60 quando está circulando, para transportar 1,3 passageiro em média. Então 1,3 passageiro ocupa um tamanho de área pública muito grande. Gradativamente, o acesso ao automóvel começou a se popularizar e isso foi determinante para se pensar uma nova cidade – eu não chamaria de Novo Urbanismo, mas um novo modo de vida urbano. Porque quanto mais gente tem acesso ao automóvel…
… mais insustentável fica a situação.
Exatamente, porque não dá para todo cidadão ter automóvel e sair na rua ao mesmo tempo, não cabe no espaço público. Isso vem gerando uma situação tão insustentável em termos de mobilidade que se impôs a necessidade de priorizar o transporte coletivo. Mas o transporte coletivo ainda tem dificuldade de se impor como agenda para as cidades, porque a elite e a classe média que usam o automóvel têm muito poder político. Então gera uma certa reação quando o prefeito [de São Paulo, Fernando] Haddad, por exemplo, determina fazer faixa exclusiva de ônibus – o modelo de corredor à esquerda, que seria o ideal, é muito demorado – e destinar uma das três ou quatro faixas exclusivamente ao transporte coletivo. Mas isso já começa a gerar uma mudança de mentalidade.
O argumento das classes mais favorecidas é que o transporte coletivo no Brasil e em São Paulo é muito ruim, desconfortável. Em geral, dizem que primeiramente seria preciso melhorar a qualidade para, depois, poderem migrar para o coletivo.
É fato que o transporte coletivo não tem alta qualidade, mas também não é tudo isso que essas classes falam, principalmente nas regiões onde moram. Claro que, para quem vem de Guaianazes, Cidade Tiradentes, M’Boi Mirim, andar 30 a 35 quilômetros apertado dentro do ônibus é um problema. Mas, nas áreas de classe média alta, o ônibus não é nenhum desastre para quem faz poucas distâncias e, especialmente, para quem pega os corredores de ônibus. O Metrô também foi seletivo, instalado nas áreas mais valorizadas. Então, temos um Metrô que não perde para nenhum outro do mundo; quem fala isso é porque não conhece. Agora tem uma outra coisa, que é a mistura de classes, porque o uso do espaço público e do transporte coletivo fazem com que as classes tenham de se misturar. E aí nós temos uma cultura de segregação que está presente no território, com favelas e bairros separados pelo valor imobiliário, e está na mobilidade. No carro, você tem o ar-condicionado, o rádio, você fala ao celular sem ser ouvido pelos outros, você cria um micromundo protegido e, para os mais ricos, até blindado. Agora, para poder fazer essa reversão, é difícil, Ela gera reações e desconfortos.
Do ponto de vista ambiental, a cidade também cometeu equívocos enormes, como canalizar fundos de vale para fazer avenidas, quando deveriam ser áreas permeáveis, públicas ou até navegáveis. Boa parte foi impermeabilizada e não temos arborização, exceto em bairros de elite, como Jardim Europa e Pacaembu, onde foram planejadas calçadas mais largas e as praças foram preservadas. Esses bairros têm uma temperatura em média 6 graus mais baixa que a das áreas mais quentes. Mas, na hora em que se vai para a região industrial, em antigos bairros da orla ferroviária, não tem arborização nenhuma.
Isso tudo faz parte de um modelo insustentável de cidade. Outra coisa, esse espaço vai se “desertificando”. As pessoas usam os automóveis, criam-se condomínios fechados, prédios murados. As cercas elétricas começam a chegar em casas da periferia, porque o morador da periferia também vive o problema da violência. E, quanto mais desertificado for o espaço, mais inseguro. Então isso gera uma lógica privatizadora.
Com a piora no bem-estar, observamos diversos movimentos de cidadãos, não só em São Paulo, organizando-se em coletivos, buscando resgatar a cidade, criar mais afeto entre as pessoas e o lugar que habitam. Como o senhor analisa esse fenômeno?
De 15 anos para cá vem lentamente se formando uma outra mentalidade para contrapor-se a esse modelo cada vez mais insustentável de cidade. E vejo uma força muito grande da juventude. Nós passamos por uma onda jovem: 27% da população brasileira tem entre 15 e 29 anos. E a juventude tem como característica ocupar mais o espaço público do que as outras faixas etárias.
Por quê?
A juventude já não cabe na casa dos pais, já tem desejos próprios, mas ainda não possui renda suficiente para ter sua própria casa. Então ela tem mais predisposição para ir para a rua. Também está em uma idade de intensa sociabilidade, de experimentação, de conhecer gente nova e se projetar para o espaço público. Depois, esse modelo do automóvel começa a ficar cada vez menos viável, seja pelas razões que a gente já falou, seja porque as pessoas começam a se dar conta do alto custo de ter um carro. A juventude passa a buscar coletivos culturais, se agregar para se dedicar à criação, desde a banda de garagem até o audiovisual, o cicloativismo. E outras formas de trabalhar e se organizar, como o coworking. Quando predominava o computador de mesa, parecia que isso aprofundaria definitivamente a privatização do espaço, com a pessoa morando e trabalhando dentro de sua casa. Mas, com o crescimento dos dispositivos móveis – o laptop, depois o tablet e depois celular –, a pessoa pode se conectar de qualquer lugar. Podem estar no espaço público e continuar conectadas, o que foi decisivo para esse movimento.
A era da informação em rede leva as cidades a se reorganizarem em redes?
Sim. As pessoas se encontram nas redes e também usam as redes para marcar encontros no espaço físico. E, quando digo 15 anos para cá, é porque o processo vem vindo. No meu mandato de vereador em 2001, fui o primeiro presidente da Comissão da Juventude na Câmara, e nós fizemos um conjunto de sessões para que os coletivos jovens pudessem fazer um diagnóstico da juventude na cidade. Foi uma novidade no Brasil. E, através desse processo, chegamos à implantação do VAI, o Programa para a Valorização das Iniciativas Culturais. Por que chegamos a esse programa? Porque detectamos que havia uma efervescência cultural na periferia, com jovens que queriam participar de atividades culturais, mas não tinham mecanismo de apoio para projetos e coletivos culturais.
Qual seria a efetividade desses movimentos, que em geral se dão de forma pontual e em uma escala pequena? Dá para imaginar que transformação podem trazer?
Acho que já estão trazendo. O Churrasco da Gente Diferenciada, por exemplo, foi uma reação aos moradores de Higienópolis [bairro nobre de São Paulo] que não queriam a implantação de uma estação de metrô na Avenida Angélica.
As manifestações de 2013, que se iniciaram com demandas ligadas a transporte público, podem se enquadrar nesses movimentos?
Sim. O Movimento Passe Livre começa dez anos atrás. Em 2013, tem aquela explosão toda, mas vinha crescendo esses anos em torno da causa da livre circulação, da ide ia de que as pessoas têm o direito de circular pela cidade. A meu ver, 2013 é o ponto de chegada desse processo. O Movimento Boa Praça [mais em reportagem (Re)Ocupai] começa em 2008, 2009, pelo desejo da Cilinha [Cecilia Lotufo], de fazer o aniversário da filha dela em uma praça. Então precisava arrumar, cuidar da praça. Eu acompanhei isso desde o primeiro dia.
O Plano Diretor de 2002 já apontava para muita coisa nesse sentido, mas ainda de forma incipiente.Aí, na campanha de 2012 surgiu o movimento Existe Amor em SP, diretamente ligado à ocupação do espaço público. Era uma reação ao “Proibidão” da gestão do [então prefeito Gilberto] Kassab. Havia uma ideia de reprimir ambulante, artista de rua, grafiteiro. A Lei Cidade Limpa foi importante para combater a poluição visual, mas também tinha caráter um pouco higienizador. Então surgiu uma reação a isso: “existe amor, convivência, sociabilidade”.
Não sei se podemos falar em Novo Urbanismo, porque implica uma transformação profunda na cidade, que ainda não aconteceu. Trata-se mais de uma nova cultura urbana que está se implantando e poderá gerar um novo urbanismo, ou já vem gerando. O Plano Diretor vem no bojo desse processo de busca de valorização do espaço público, de priorização do transporte coletivo e não motorizado, de criar a fachada ativa. Ou seja, ter os prédios abertos às calçadas para que estas ganhem vida. São propostas que atendem a esse movimento. Esse movimento gerou um respaldo político a uma proposta que buscava romper esse modelo. Mas para ter outro modelo mais sustentável, mais amigável com o cidadão, ainda teremos de caminhar bastante. As visões ainda estão em confronto, com campanhas contra a ciclovia, contra corredor de ônibus, contra eventos culturais na rua.
No fundo estamos falando de mudança em eixos de poder? Perdem força as decisões top-down, definidas pelo poder econômico, e ganham força as decisões tomadas em rede, de forma difusa, descentralizada?
Eu diria que se trata de um novo movimento social. Porque tivemos, e ainda temos, movimentos sociais por necessidades básicas, como moradia, creche, escola, pavimentação. Isso foi uma primeira geração de movimentos sociais. Agora estamos começando a ter um movimento em torno de outras coisas, como casas de cultura na periferia, artista de rua, uso da rua para eventos culturais, cicloativismo visando reduzir a velocidade dos carros. Antes, só se vinha reivindicar casa de saúde.
Quando se melhora a cidade, surge um lado perverso, que é o da gentrificação.
Por isso é preciso melhorar a cidade inteira. Se melhorar só um lugar, ali gentrifica. A gentrificação existe não porque a cidade melhorou, mas porque existe desigualdade. Além disso, precisa haver mecanismos de proteção por parte do poder público.
Mas até nos países desenvolvidos, onde a desigualdade é menor, há gentrificação.
Acontece, só que em uma cidade onde todos os bairros têm qualidade, esse problema acaba sendo minimizado.
Confira também um vídeo especial com os destaques da entrevista do secretário Nabil Bonduki à PÁGINA22