Lugar de criança é na escola, claro, mas não somente. É na rua também ─ local de convívio coletivo, de brincadeiras ao ar livre e de aprendizado sobre a comunidade, pela vivência. Para a arquiteta e urbanista Irene Quintáns, da Red Ocara, que desenvolve e dissemina projetos de mobilidade urbana envolvendo a garotada, a falta de bancos de descanso nos bairros e de boas calcadas desestimula os pais, mas, ainda assim, é preciso que eles incentivem seus filhos a saírem de casa, que os levem para um sorvete na padaria, sentem-se com eles num banco para olhar as pessoas ao redor. Sempre surgirá um desconhecido, uma conversa, um animal interessante de observar, uma cena curiosa ̶ algo que entre os muros do condomínio não acontece.
Estar na rua é criar relações, com o outro e com o espaço público, exercitando a tolerância e o afeto. É, também, receber vitamina D ao tomar sol, e um convite ao movimento. Brincar, correr, andar ajudam a descarregar a energia que os pequenos têm de sobra e combatem o sedentarismo, grande fator de doenças no País. Uma criança precisa de pelo menos uma hora de exercícios físicos moderados por dia. “No Brasil, um terço da população entre 5 e 9 anos de idade tem sobrepeso, 75% delas serão adultos obesos”, lembra Quintáns.
Várias pesquisas apontam que o simples fato de ir a pé ou de bicicleta para a aula melhora a concentração e, portanto, o rendimento escolar, por conta das atividades físicas e cerebrais mais intensas que no espaço limitado e percurso rápido do automóvel. Sintomas da Síndrome de Déficit de Atenção também são amenizados.
Estímulo ao movimento
Em Houten, município holandês com plano de mobilidade mundialmente reconhecido, as pessoas moram no máximo a 300 metros de distância de uma escola primária, o que dispensa o carro. No entanto, mesmo em regiões onde a proximidade não é tão matematicamente planejada vêm crescendo o apoio ao trajeto a pé dos estudantes, caso de municípios no Canadá, Austrália, Estados Unidos, Espanha e Colômbia. “Nova York é a cidade com mais Walk to School (como são chamados os programas de caminho escolar)”, afirma Irene, que é idealizadora do Caminho Escolar do Paraisópolis ̶ primeira iniciativa do gênero no Brasil, realizada entre 2011 e 2013 neste bairro da Zona Sul da capital Paulista.
Como ali andar até a escola já era hábito, o ponto central da ação foi tornar o percurso mais seguro e agradável. Comércios se tornaram como pontos de apoio para uso do banheiro, por exemplo, e os estudantes aprenderam sobre os cuidados para atravessar a rua.
Para chegar a algumas escolas foi organizado uma espécie de ônibus andante, o Walking Bus, conceito criado na Austrália e já bastante disseminado mundo afora, no qual os estudantes vão “embarcando” no grupo, liderado por adultos. Sem dúvida, mais interessante que ir de carro. No exterior, monitores escolares usam aplicativos para avisar os pais da chegada e saída dos alunos.
Local de criação de vínculos
Uma cidade acolhedora depende de intervenções no que é pequeno, simples de resolver. “É o que em arquitetura chamamos de microurbanismo”, diz Irene. Públicas ou privadas, as intervenções bem-vindas são as que incentivem o “estar” na rua em vez de apenas passar por ela. “O que a criança precisa é de atividades culturais e lugares adequados para caminhar e ter onde sentar e”, resume a arquiteta. O benefício é geral.
“A presença infantil na rua resgata as relações humanas”, diz a socióloga Nayana Brettas, idealizadora da CriaCidade, consultoria que desenvolve ações de transformação em espaços públicos a partir dos desejos e perspectivas da garotada.
“Em geral, elas querem o lúdico, o colorido e a natureza por perto”, conta. E quem não quer? As crianças acabam reconectando os adultos com o prazer de curtir o entorno, de se vincular a ele ̶ algo que foi perdido em algum momento da vida apressada – e isso faz toda a diferença na relação com a cidade. “Se você não se identifica com um lugar, não o ocupa e não cuida”, observa a socióloga.
Espaços personalizados
Crítica das propostas arquitetônicas padronizadas, descoladas da realidade local, Nayana defende que se incorpore nelas a dimensão cultural da região, a exemplo do que a CriaCidade, com o apoio da Fundação Bernard Van Leer, está promovendo no Glicério, bairro central de São Paulo onde há muitos cortiços e pensões e poucas áreas de lazer.
Após encontros e oficinas com as crianças, neste mês de maio serão pintados grafites que representam a história de vida delas. Em junho, serão realizadas intervenções no mobiliário urbano, reaproveitando pallets e outros materiais comuns na comunidade para criação de espaços de convivência. A escalada, um dos brinquedos a serem construídos, usará pneus usados das muitas borracharias do bairro.
“Uma cidade boa para crianças é boa para todas as idades”, acredita Letícia Sabino, fundadora do coletivo SampaPé, que após três anos promovendo passeios culturais a pé pelos bairros paulistanos realizará em maio deste ano a primeira caminhada específica para a garotada.
Até então, os filhos participavam acompanhando os pais e Letícia observou a diferença no modo como os dois grupos vivenciam a rua. “Os pequenos fazem mais paradas, não têm vergonha de observar o diferente, se apegam aos detalhes, gostam de interagir, usam os sentidos compreender melhor o que veem, enquanto os adultos fazem julgamentos mais racionais”, compara.
Por terem outro tamanho e outra percepção das coisas, é fundamental ouvir a meninada antes de conceber projetos urbanísticos, na opinião de Nayana Brettas. Bogotá, na Colômbia, e Nova York, nos Estados Unidos, têm desenvolvido experiências desse tipo, se tornando mais lúdicas e inclusivas.
(Fotos: Prosa & Fotografia)