Rio protegido por reserva ecológica está na mira das obras para o abastecimento de São Paulo, sem estudo de impacto ambiental
O cenário ao longo da escorregadia trilha de 13 quilômetros montanha abaixo entre o distrito de Taiaçupeba, em Mogi das Cruzes (SP), e Bertioga (SP), no litoral, retrata um dilema bem diferente do enfrentado pelos colonizadores portugueses que viam no relevo da Serra do Mar um obstáculo para desbravar os sertões. No início do percurso, a Mata Atlântica encontra-se em processo de regeneração natural, após séculos de impactos causados por diferentes ciclos econômicos, e é enriquecida por plantio de palmito-juçara. A palmeira nativa atrai fauna em busca de alimento e esta, por sua vez, dispersa sementes de várias espécies para o crescimento da floresta. A cobertura vegetal íntegra, mantida por um grande esforço de conservação em lugar tão próximo de cidades populosas, protegeu valiosos estoques de água – e é exatamente aí que está a polêmica.
A questão recai sobre o Rio Itatinga, manancial hoje visto pela Sabesp, a companhia de abastecimento de São Paulo, como estratégico para evitar torneiras vazias na maior metrópole brasileira. O plano emergencial de obras, arquitetado a toque de caixa, prevê captar ali 1,2 mil litros por segundo para nutrir represas que estão poluídas e obrigam alto custo de tratamento. “É preciso transparência para não haver conflitos, porque a água é da população de Bertioga”, diz Paulo Groke, diretor de sustentabilidade do Instituto Ecofuturo, ligado à indústria de papel e celulose Suzano. Ele pergunta: “De que adianta conservar um rio em quase toda a sua extensão, se um trecho mais abaixo sofre impactos para beneficiar outra região, sem compensação para quem o protege?”
O Parque das Neblinas, reserva particular de 2,8 mil hectares mantida pela instituição ao custo de R$ 1 milhão por ano, abriga as nascentes e todo o percurso do Itatinga no alto da serra, antes da descida em direção do mar. Nele vivem peixes ameaçados, como o lambari Coptobrycon bilineatus, que havia sido coletado por cientistas pela última vez em 1915 e foi achado na área durante o levantamento da fauna para o plano de manejo. Uma das 35 espécies de mamíferos é o muriqui, o maior primata das Américas.
Voltada para a educação ambiental, a reserva guarda antigas árvores de eucalipto, herança dos tempos em que a área foi usada para experimentos pioneiros de silvicultura e plantios para abastecimento da indústria de celulose. Antes disso, a Mata Atlântica era convertida em carvão para as siderúrgicas. Mas, com o aperto das leis ambientais e a dificuldade da mecanização em relevo íngreme, constatou-se que a floresta da região poderia valer mais em pé do que derrubada. Até que hoje, diante da crise hídrica, os olhares se voltaram para a água lá estocada.
No fim do ano passado, com receio de colapso no abastecimento dos veranistas no Réveillon, a Sabesp fez uma captação emergencial durante quatro dias, dentro do Parque das Neblinas, com 5 quilômetros de tubulação até o Guarujá. Depois cogitou fazer uma barragem para desviar 2,8 mil litros por segundo, o que implicaria a inundação da floresta. No final, o projeto previu retirar um volume menor, fora da reserva privada.
O governo estadual tem argumentado que seguir o rito ambiental impedirá trazer a água para a população. Apesar disso, o Ministério Público exigiu informações sobre os estudos de impacto ambiental da obra, ainda não apresentados. O Itatinga é importante para o equilíbrio ecológico dos manguezais, em Bertioga. Além disso, nele está localizada uma das hidrelétricas mais antigas do País, inaugurada em 1910, hoje responsável por 60% da energia necessária às operações do Porto de Santos, o maior do Brasil e da América Latina. E a menor vazão do rio, decorrente da captação da água, pode prejudicar o funcionamento da usina.
“Após o carvão e o eucalipto, nossa salvação está no turismo”, afirma Paulo Pinheiro de Souza, o Zé Ferro, um contador de causos, ex-caçador e ex-funcionário de siderúrgica que hoje se dedica a cultivar cambuci, fruto nativo de mil e uma utilidades. Uma atração é a trilha que desce a Serra do Mar, beirando o Itatinga até uma vila histórica ao pé das montanhas. No caminho há mirantes com vista para o oceano. E também cachoeiras. Naquela floresta protegida, escudo contra ocupações urbanas irregulares, água não falta. Mas é preciso saber usá-la.
*Jornalista[:en]Rio protegido por reserva ecológica está na mira das obras para o abastecimento de São Paulo, sem estudo de impacto ambiental
O cenário ao longo da escorregadia trilha de 13 quilômetros montanha abaixo entre o distrito de Taiaçupeba, em Mogi das Cruzes (SP), e Bertioga (SP), no litoral, retrata um dilema bem diferente do enfrentado pelos colonizadores portugueses que viam no relevo da Serra do Mar um obstáculo para desbravar os sertões. No início do percurso, a Mata Atlântica encontra-se em processo de regeneração natural, após séculos de impactos causados por diferentes ciclos econômicos, e é enriquecida por plantio de palmito-juçara. A palmeira nativa atrai fauna em busca de alimento e esta, por sua vez, dispersa sementes de várias espécies para o crescimento da floresta. A cobertura vegetal íntegra, mantida por um grande esforço de conservação em lugar tão próximo de cidades populosas, protegeu valiosos estoques de água – e é exatamente aí que está a polêmica.
A questão recai sobre o Rio Itatinga, manancial hoje visto pela Sabesp, a companhia de abastecimento de São Paulo, como estratégico para evitar torneiras vazias na maior metrópole brasileira. O plano emergencial de obras, arquitetado a toque de caixa, prevê captar ali 1,2 mil litros por segundo para nutrir represas que estão poluídas e obrigam alto custo de tratamento. “É preciso transparência para não haver conflitos, porque a água é da população de Bertioga”, diz Paulo Groke, diretor de sustentabilidade do Instituto Ecofuturo, ligado à indústria de papel e celulose Suzano. Ele pergunta: “De que adianta conservar um rio em quase toda a sua extensão, se um trecho mais abaixo sofre impactos para beneficiar outra região, sem compensação para quem o protege?”
O Parque das Neblinas, reserva particular de 2,8 mil hectares mantida pela instituição ao custo de R$ 1 milhão por ano, abriga as nascentes e todo o percurso do Itatinga no alto da serra, antes da descida em direção do mar. Nele vivem peixes ameaçados, como o lambari Coptobrycon bilineatus, que havia sido coletado por cientistas pela última vez em 1915 e foi achado na área durante o levantamento da fauna para o plano de manejo. Uma das 35 espécies de mamíferos é o muriqui, o maior primata das Américas.
Voltada para a educação ambiental, a reserva guarda antigas árvores de eucalipto, herança dos tempos em que a área foi usada para experimentos pioneiros de silvicultura e plantios para abastecimento da indústria de celulose. Antes disso, a Mata Atlântica era convertida em carvão para as siderúrgicas. Mas, com o aperto das leis ambientais e a dificuldade da mecanização em relevo íngreme, constatou-se que a floresta da região poderia valer mais em pé do que derrubada. Até que hoje, diante da crise hídrica, os olhares se voltaram para a água lá estocada.
No fim do ano passado, com receio de colapso no abastecimento dos veranistas no Réveillon, a Sabesp fez uma captação emergencial durante quatro dias, dentro do Parque das Neblinas, com 5 quilômetros de tubulação até o Guarujá. Depois cogitou fazer uma barragem para desviar 2,8 mil litros por segundo, o que implicaria a inundação da floresta. No final, o projeto previu retirar um volume menor, fora da reserva privada.
O governo estadual tem argumentado que seguir o rito ambiental impedirá trazer a água para a população. Apesar disso, o Ministério Público exigiu informações sobre os estudos de impacto ambiental da obra, ainda não apresentados. O Itatinga é importante para o equilíbrio ecológico dos manguezais, em Bertioga. Além disso, nele está localizada uma das hidrelétricas mais antigas do País, inaugurada em 1910, hoje responsável por 60% da energia necessária às operações do Porto de Santos, o maior do Brasil e da América Latina. E a menor vazão do rio, decorrente da captação da água, pode prejudicar o funcionamento da usina.
“Após o carvão e o eucalipto, nossa salvação está no turismo”, afirma Paulo Pinheiro de Souza, o Zé Ferro, um contador de causos, ex-caçador e ex-funcionário de siderúrgica que hoje se dedica a cultivar cambuci, fruto nativo de mil e uma utilidades. Uma atração é a trilha que desce a Serra do Mar, beirando o Itatinga até uma vila histórica ao pé das montanhas. No caminho há mirantes com vista para o oceano. E também cachoeiras. Naquela floresta protegida, escudo contra ocupações urbanas irregulares, água não falta. Mas é preciso saber usá-la.
*Jornalista