OLHA ISSO!
Na coluna da edição 94 (“O direito de andar”), falei das ruas do início do século XX, ocupadas simultaneamente por todos os modais (pessoas a pé, a cavalo, bicicletas, carros, carroças etc.). Hoje adotamos o modelo de segregação completa, com ruas exclusivas para veículos ou para pedestres. Seria loucura imaginar voltarmos para um modelo de uso compartilhado. Ou não?
A segregação do espaço público por tipo de modal privilegia a eficiência, o fluxo. Por conta de sua formação em Engenharia, essa era a principal preocupação do pesquisador Daniele Quercia. Ao mudar-se para Boston, Quercia adotou uma bicicleta com seu meio de transporte e, diariamente, pedalava para a vizinha Cambridge seguindo a rota sugerida pelo aplicativo de mapa, que oferecia a “rota mais curta” ou a “rota mais rápida”.
Cansado da rotina, resolveu explorar uma rota alternativa, e encantou-se com as ruas pacatas e arborizadas do novo percurso. Percebeu, então, que havia mais coisas a otimizar além de tempo ou distância. Em sua palestra TED, Quercia descreve um projeto cartográfico alimentado coletivamente e baseado em emoções humanas, indicando o caminho mais bonito, mais tranquilo ou mais feliz
A segregação também foi supostamente concebida para privilegiar a segurança de veículos, ciclistas e pedestres. Tal pressuposto também tem sido colocado em dúvida por arquitetos e urbanistas.
Por muitas décadas, o holandês Hans Monderman foi um típico engenheiro de tráfego, até perceber que algumas das “melhorias” implementadas em nome da segurança no trânsito, na verdade, tornavam as ruas mais inseguras. Desenvolveu então uma solução simples, porém contraintuitiva: removeu todos os dispositivos de controle de tráfego – semáforos, sinalizações, demarcações no solo (inclusive faixas de pedestre), meio-fio –, de maneira a tornar menos clara a fronteira entre calçada e leito carroçável (por onde circulam veículos motorizados), obrigando os usuários daquela rua a negociar passagem entre si.
Essas medidas de espaço compartilhado (shared space) “moderam” os veículos motorizados e, assim como outras medidas de traffic calming, acabam por reduzir o número de acidentes. O objetivo é fazer com que o tráfego seja integrado às demais atividades humanas, em vez de segregá-lo.
Na última década, várias cidades europeias – e, recentemente, algumas cidades americanas – vêm testando as ruas compartilhadas.
Entretanto, há grupos que se opõem à criação de espaços compartilhados, como os que representam pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida. O modelo tampouco serve para todas as ruas de uma cidade – Monderman defendia que houvesse um estudo prévio de engenharia de tráfego, como no caso de qualquer outra intervenção urbana.
A despeito de obstáculos, é possível entender o conceito dos espaços compartilhados como um manifesto político mais do que de engenharia de tráfego, reforçando a noção de espaços públicos, cujo uso precisa ser pactuado e servir à qualidade de vida de seus habitantes, não erodi-la.
*Doutor em Administração Pública e Governo[:en]OLHA ISSO!
Na coluna da edição 94 (“O direito de andar”), falei das ruas do início do século XX, ocupadas simultaneamente por todos os modais (pessoas a pé, a cavalo, bicicletas, carros, carroças etc.). Hoje adotamos o modelo de segregação completa, com ruas exclusivas para veículos ou para pedestres. Seria loucura imaginar voltarmos para um modelo de uso compartilhado. Ou não?
A segregação do espaço público por tipo de modal privilegia a eficiência, o fluxo. Por conta de sua formação em Engenharia, essa era a principal preocupação do pesquisador Daniele Quercia. Ao mudar-se para Boston, Quercia adotou uma bicicleta com seu meio de transporte e, diariamente, pedalava para a vizinha Cambridge seguindo a rota sugerida pelo aplicativo de mapa, que oferecia a “rota mais curta” ou a “rota mais rápida”.
Cansado da rotina, resolveu explorar uma rota alternativa, e encantou-se com as ruas pacatas e arborizadas do novo percurso. Percebeu, então, que havia mais coisas a otimizar além de tempo ou distância. Em sua palestra TED, Quercia descreve um projeto cartográfico alimentado coletivamente e baseado em emoções humanas, indicando o caminho mais bonito, mais tranquilo ou mais feliz
A segregação também foi supostamente concebida para privilegiar a segurança de veículos, ciclistas e pedestres. Tal pressuposto também tem sido colocado em dúvida por arquitetos e urbanistas.
Por muitas décadas, o holandês Hans Monderman foi um típico engenheiro de tráfego, até perceber que algumas das “melhorias” implementadas em nome da segurança no trânsito, na verdade, tornavam as ruas mais inseguras. Desenvolveu então uma solução simples, porém contraintuitiva: removeu todos os dispositivos de controle de tráfego – semáforos, sinalizações, demarcações no solo (inclusive faixas de pedestre), meio-fio –, de maneira a tornar menos clara a fronteira entre calçada e leito carroçável (por onde circulam veículos motorizados), obrigando os usuários daquela rua a negociar passagem entre si.
Essas medidas de espaço compartilhado (shared space) “moderam” os veículos motorizados e, assim como outras medidas de traffic calming, acabam por reduzir o número de acidentes. O objetivo é fazer com que o tráfego seja integrado às demais atividades humanas, em vez de segregá-lo.
Na última década, várias cidades europeias – e, recentemente, algumas cidades americanas – vêm testando as ruas compartilhadas.
Entretanto, há grupos que se opõem à criação de espaços compartilhados, como os que representam pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida. O modelo tampouco serve para todas as ruas de uma cidade – Monderman defendia que houvesse um estudo prévio de engenharia de tráfego, como no caso de qualquer outra intervenção urbana.
A despeito de obstáculos, é possível entender o conceito dos espaços compartilhados como um manifesto político mais do que de engenharia de tráfego, reforçando a noção de espaços públicos, cujo uso precisa ser pactuado e servir à qualidade de vida de seus habitantes, não erodi-la.
*Doutor em Administração Pública e Governo