Com a aproximação entre academia, agências de fomento e parceiros, as descobertas financiadas pelo contribuinte podem ultrapassar os muros da universidade e retornar para a sociedade
Hoje em dia é comum encontrar nos supermercados alimentos com rótulos indicando “zero trans” [1] e “low sat” (baixo teor de gordura saturada) como forma de atrair consumidores que buscam uma vida mais saudável. Depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária tornou mais exigentes as normas para exibição da mensagem, surgiu a necessidade de mudar a fórmula e adequar os produtos a novos padrões. Em decorrência disso, a Cargill, gigante do setor alimentício, recorreu aos cérebros da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para achar uma solução viável.
[1] As gorduras trans contêm ácidos graxos insaturados e seu consumo está associado a doenças do coração. Pela norma, as indústrias podem informar que o alimento é “zero trans” se o teor não superar 0,2 g de gordura por porção
Na corrida tecnológica, o desafio foi desenvolver insumos que permitissem reduzir gorduras sem alterar a estrutura física e a consistência de bolachas, biscoitos, bolos e sorvetes, por exemplo. A inovação, alcançada pelos pesquisadores Renato Grimaldi e Lireny Gonçalves, da Faculdade de Engenharia de Alimentos, gerou uma das mais lucrativas patentes até hoje obtidas pela instituição.
A transferência do saber científico para o mercado é mediada pelo trabalho conduzido no primeiro andar do prédio da Prefeitura Universitária, onde funciona a agência Inova Unicamp. No local, o ambiente de design moderno contrasta com a sisuda cultura acadêmica e com a arquitetura dos edifícios do seu entorno. Ao lado, a Praça das Bandeiras – símbolo dos velhos tempos – abriga um monumento em memória da pedra fundamental da universidade, lançada em 5 de outubro de 1966.
Lá se vai quase meio século. De lá para cá, muita coisa mudou, principalmente no que se refere ao esforço de dar um viés comercial às engenhosidades dos Professores Pardais. “Desde a década de 1980, quando era maior a cisma dos cientistas em relação aos interesses econômicos, houve evolução na abertura para as demandas do mercado, mas o desafio de maior aproximação ainda permanece”, ressalta o professor Milton Mori, diretor-executivo da Inova Unicamp.
O relacionamento com o mundo dos negócios ocorre através de fomento ao empreendedorismo [2], transferência de tecnologias e desenvolvimento de soluções por demanda, entre outras modalidades de parceria. Em 2014, foram recebidos 103 comunicados de invenção, dos quais 77 renderam pedidos de patentes – um recorde que gerou ganho econômico de R$ 1,1 milhão, com um terço dos royalties se destinado aos pesquisadores.
[2] Além dos 19 pequenos negócios tecnológicos hoje incubados na Unicamp, existem outras 254 “empresas-filhas”, criadas fora da universidade por professores, alunos ou servidores
O resultado é fruto da prospecção [3] de empresas e também de pesquisadores, seguindo o modelo recomendado pela Universidade de Cambridge a partir de convênio com a Unicamp para treinamento em propriedade intelectual e negociação com indústrias. Em cada uma das 25 unidades e centros de pesquisa da instituição, há um líder encarregado de identificar inovações com potencial de ir para o mercado. “No passado, quando não havia regras para esse relacionamento, as universidades entregavam tecnologias de mão beijada”, diz Mori, também chefe de um laboratório que transfere conhecimento sobre refino de petróleo para a Petrobras.
[3] Em 2014, a Inova Unicamp prospectou 110 empresas, gerando 11 licenciamentos de tecnologia, entre os 60 atualmente vigentes
No entanto, há restrições que emperram o ímpeto empreendedor. Pela lei, os professores não podem abrir empresa para vender a inovação desenvolvida por eles na universidade, mas apenas licenciá-la. “Por isso muitos se aposentam para montar o próprio negócio”, lamenta o diretor, ao reclamar maior agilidade e flexibilidade nas transações com o mercado, inclusive envolvendo riscos.
Não raro os cientistas que detêm o know-how se preocupam mais em publicar os resultados de suas pesquisas para subir na carreira acadêmica do que manter o sigilo para registrar patente. Levar novidades do laboratório para as prateleiras não é fácil.
A Lei de Inovação [4], sancionada em 2004, foi um marco. “Flexibilizou e trouxe clareza à relação entre o público e o privado, para que o conhecimento científico se tornasse produto”, avalia Celeste Emerick, coordenadora de gestão tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Antes, segundo ela, os processos de transferência de tecnologia eram bastante demorados, devido à insegurança jurídica, ainda mais no setor de saúde, dominado por oligopólios hábeis em utilizar o sistema internacional de patentes como forma de pressão.
[4] A Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, estabelece incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas ao desenvolvimento industrial do País
Desde o fim da década de 1980, a Fiocruz, reconhecida com maior centro brasileiro de pesquisas em saúde pública, tem percorrido um longo caminho de aprendizado para levar ao mercado descobertas como vacinas, medicamentos e métodos para diagnóstico de doenças. Hoje a instituição tem 150 projetos aptos a parcerias com empresas. Um biolarvicida inédito para controle da dengue deverá ser lançado nos próximos meses, após a transferência da tecnologia para a empresa BR3. O alvo atual está nas pequenas empresas inovadoras que buscam nichos de mercado, como a Biomédica, do Rio de Janeiro, que desenvolveu o protótipo de um copo de plástico com bico especial que imita o seio da mãe e ajuda a alimentação de crianças recém-nascidas. A solução, desenvolvida pela Fiocruz, tem patente depositada no Brasil e nos EUA.
Hoje há no País mais de 400 instituições de ciência e tecnologia voltadas para a proteção por patentes e parcerias com empresas para inovações. “É importante fazê-las chegar à sociedade”, afirma Denise Petri, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, onde coordena o programa de mestrado profissional. Nele, especialistas de empresas se capacitam e usam laboratórios bem equipados para chegar a novos produtos capazes de aprimorar os negócios. É o caso do desenvolvimento de fórmulas que tornam mais eficiente o uso de defensivos agrícolas, permitindo sua redução, o que significa menor risco de impacto ambiental.
“Buscamos modelos mais abrangentes de parceria”, revela John Biggs, diretor da indústria química Dow, patrocinadora da pesquisa. Na última década, a multinacional intensificou a interação com universidades para lançar novidades no mercado. A estratégia agora é promover desafios para atrair boas ideias. Um deles, voltado para o “colchão do futuro”, resultou na apresentação de 60 projetos para pesquisas com poliuretano [5], na Universidade Federal de São Carlos, interior de São Paulo.
[5] Espuma existente nas paredes de refrigeradores e freezers. É útil como isolamento térmico na construção civil e, na forma flexível, compõe estofados de móveis e colchões
Na linha da “inovação aberta”, a multinacional realizará em agosto o Innovation Fair, evento que engajará no Brasil iniciativas de universidades, microempresas e start-ups em áreas como alimentos, segurança hídrica, produtos químicos renováveis e infraestrutura. A feira – espera-se – deverá render no mínimo seis novas tecnologias para a empresa. Mas o importante, para Biggs, é a aproximação entre academia, agências de fomento e outros potenciais parceiros. Assim, descobertas financiadas pelo imposto do contribuinte podem sair dos laboratórios, ultrapassar os muros da universidade e beneficiar a sociedade[:en]Com a aproximação entre academia, agências de fomento e parceiros, as descobertas financiadas pelo contribuinte podem ultrapassar os muros da universidade e retornar para a sociedade
Hoje em dia é comum encontrar nos supermercados alimentos com rótulos indicando “zero trans” [1] e “low sat” (baixo teor de gordura saturada) como forma de atrair consumidores que buscam uma vida mais saudável. Depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária tornou mais exigentes as normas para exibição da mensagem, surgiu a necessidade de mudar a fórmula e adequar os produtos a novos padrões. Em decorrência disso, a Cargill, gigante do setor alimentício, recorreu aos cérebros da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para achar uma solução viável.
[1] As gorduras trans contêm ácidos graxos insaturados e seu consumo está associado a doenças do coração. Pela norma, as indústrias podem informar que o alimento é “zero trans” se o teor não superar 0,2 g de gordura por porção
Na corrida tecnológica, o desafio foi desenvolver insumos que permitissem reduzir gorduras sem alterar a estrutura física e a consistência de bolachas, biscoitos, bolos e sorvetes, por exemplo. A inovação, alcançada pelos pesquisadores Renato Grimaldi e Lireny Gonçalves, da Faculdade de Engenharia de Alimentos, gerou uma das mais lucrativas patentes até hoje obtidas pela instituição.
A transferência do saber científico para o mercado é mediada pelo trabalho conduzido no primeiro andar do prédio da Prefeitura Universitária, onde funciona a agência Inova Unicamp. No local, o ambiente de design moderno contrasta com a sisuda cultura acadêmica e com a arquitetura dos edifícios do seu entorno. Ao lado, a Praça das Bandeiras – símbolo dos velhos tempos – abriga um monumento em memória da pedra fundamental da universidade, lançada em 5 de outubro de 1966.
Lá se vai quase meio século. De lá para cá, muita coisa mudou, principalmente no que se refere ao esforço de dar um viés comercial às engenhosidades dos Professores Pardais. “Desde a década de 1980, quando era maior a cisma dos cientistas em relação aos interesses econômicos, houve evolução na abertura para as demandas do mercado, mas o desafio de maior aproximação ainda permanece”, ressalta o professor Milton Mori, diretor-executivo da Inova Unicamp.
O relacionamento com o mundo dos negócios ocorre através de fomento ao empreendedorismo [2], transferência de tecnologias e desenvolvimento de soluções por demanda, entre outras modalidades de parceria. Em 2014, foram recebidos 103 comunicados de invenção, dos quais 77 renderam pedidos de patentes – um recorde que gerou ganho econômico de R$ 1,1 milhão, com um terço dos royalties se destinado aos pesquisadores.
[2] Além dos 19 pequenos negócios tecnológicos hoje incubados na Unicamp, existem outras 254 “empresas-filhas”, criadas fora da universidade por professores, alunos ou servidores
O resultado é fruto da prospecção [3] de empresas e também de pesquisadores, seguindo o modelo recomendado pela Universidade de Cambridge a partir de convênio com a Unicamp para treinamento em propriedade intelectual e negociação com indústrias. Em cada uma das 25 unidades e centros de pesquisa da instituição, há um líder encarregado de identificar inovações com potencial de ir para o mercado. “No passado, quando não havia regras para esse relacionamento, as universidades entregavam tecnologias de mão beijada”, diz Mori, também chefe de um laboratório que transfere conhecimento sobre refino de petróleo para a Petrobras.
[3] Em 2014, a Inova Unicamp prospectou 110 empresas, gerando 11 licenciamentos de tecnologia, entre os 60 atualmente vigentes
No entanto, há restrições que emperram o ímpeto empreendedor. Pela lei, os professores não podem abrir empresa para vender a inovação desenvolvida por eles na universidade, mas apenas licenciá-la. “Por isso muitos se aposentam para montar o próprio negócio”, lamenta o diretor, ao reclamar maior agilidade e flexibilidade nas transações com o mercado, inclusive envolvendo riscos.
Não raro os cientistas que detêm o know-how se preocupam mais em publicar os resultados de suas pesquisas para subir na carreira acadêmica do que manter o sigilo para registrar patente. Levar novidades do laboratório para as prateleiras não é fácil.
A Lei de Inovação [4], sancionada em 2004, foi um marco. “Flexibilizou e trouxe clareza à relação entre o público e o privado, para que o conhecimento científico se tornasse produto”, avalia Celeste Emerick, coordenadora de gestão tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Antes, segundo ela, os processos de transferência de tecnologia eram bastante demorados, devido à insegurança jurídica, ainda mais no setor de saúde, dominado por oligopólios hábeis em utilizar o sistema internacional de patentes como forma de pressão.
[4] A Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, estabelece incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas ao desenvolvimento industrial do País
Desde o fim da década de 1980, a Fiocruz, reconhecida com maior centro brasileiro de pesquisas em saúde pública, tem percorrido um longo caminho de aprendizado para levar ao mercado descobertas como vacinas, medicamentos e métodos para diagnóstico de doenças. Hoje a instituição tem 150 projetos aptos a parcerias com empresas. Um biolarvicida inédito para controle da dengue deverá ser lançado nos próximos meses, após a transferência da tecnologia para a empresa BR3. O alvo atual está nas pequenas empresas inovadoras que buscam nichos de mercado, como a Biomédica, do Rio de Janeiro, que desenvolveu o protótipo de um copo de plástico com bico especial que imita o seio da mãe e ajuda a alimentação de crianças recém-nascidas. A solução, desenvolvida pela Fiocruz, tem patente depositada no Brasil e nos EUA.
Hoje há no País mais de 400 instituições de ciência e tecnologia voltadas para a proteção por patentes e parcerias com empresas para inovações. “É importante fazê-las chegar à sociedade”, afirma Denise Petri, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, onde coordena o programa de mestrado profissional. Nele, especialistas de empresas se capacitam e usam laboratórios bem equipados para chegar a novos produtos capazes de aprimorar os negócios. É o caso do desenvolvimento de fórmulas que tornam mais eficiente o uso de defensivos agrícolas, permitindo sua redução, o que significa menor risco de impacto ambiental.
“Buscamos modelos mais abrangentes de parceria”, revela John Biggs, diretor da indústria química Dow, patrocinadora da pesquisa. Na última década, a multinacional intensificou a interação com universidades para lançar novidades no mercado. A estratégia agora é promover desafios para atrair boas ideias. Um deles, voltado para o “colchão do futuro”, resultou na apresentação de 60 projetos para pesquisas com poliuretano [5], na Universidade Federal de São Carlos, interior de São Paulo.
[5] Espuma existente nas paredes de refrigeradores e freezers. É útil como isolamento térmico na construção civil e, na forma flexível, compõe estofados de móveis e colchões
Na linha da “inovação aberta”, a multinacional realizará em agosto o Innovation Fair, evento que engajará no Brasil iniciativas de universidades, microempresas e start-ups em áreas como alimentos, segurança hídrica, produtos químicos renováveis e infraestrutura. A feira – espera-se – deverá render no mínimo seis novas tecnologias para a empresa. Mas o importante, para Biggs, é a aproximação entre academia, agências de fomento e outros potenciais parceiros. Assim, descobertas financiadas pelo imposto do contribuinte podem sair dos laboratórios, ultrapassar os muros da universidade e beneficiar a sociedade