A virada para uma economia predominantemente colaborativa ainda deve demorar, mas as previsões indicam ser inevitável
Pequenas preocupações cotidianas, como acompanhar o sobe-e-desce do dólar, do PIB e da Bolsa de Valores, absorvem tanta energia e espaço nobre no noticiário que poucos se dão conta do tique-taque da “bomba-relógio”. Nem mesmo as fortes evidências de que a saúde do sistema financeiro, as tensões sociais e o limite ambiental estão por um fio são suficientes para pôr em estado de alerta a massa que movimenta o business as usual global. Inertes, as pessoas vão se deixando empurrar para a beira do abismo. Vários estudiosos em macrotendências creem que muitas das soluções para o impasse civilizatório testemunhado pela geração atual virão do novo modelo de economia baseada em redes e ações colaborativas. Que para isso ganhar escala e chegar ao mainstream é coisa para o futuro não resta dúvida. A questão é saber se haverá tempo de desarmar a “bomba” e evitar o pior cenário.
Para o economista e escritor americano Jeremy Rifkin, a era do capitalismo industrial, que vem alimentando crises em três grandes eixos da civilização – o financeiro, o social e o ambiental –, já está em seu último ato. Sairá de cena “não muito rapidamente, mas inevitavelmente”. Enquanto isso, assistimos ao desenrolar de uma economia híbrida que tem em sua base a mistura de colaboração social e economia privada, na definição do sociólogo Ricardo Abramovay, professor do Departamento de Economia e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Pelas contas de Rifkin o capitalismo industrial continuará preponderante por mais uns 50 anos. E quem viver até a segunda metade deste século verá a economia colaborativa se tornar dominante. Essas considerações estão em seu livro The Zero Marginal Cost Society: The internet of things, the collaborative commons, and the eclipse of capitalism [1] , publicado recentemente na internet, com licença Creative Commons (CC).
[1] Em tradução livre: Sociedade do Custo Marginal Zero: A internet das coisas, a economia colaborativa e o eclipse do capitalismo
A teoria do custo marginal zero de que trata a obra é uma característica importante para o desenvolvimento da economia colaborativa. No mercado tradicional, existem as margens de lucro praticadas ao longo das cadeias produtivas. O autor de um livro, por exemplo, entrega o produto do seu trabalho intelectual a um editor em troca de um adiantamento pelas vendas futuras. Até o comprador final, o livro terá passado por diferentes etapas: editora, gráfica, distribuidora, atacadista e varejista. A cada uma, adiciona-se um custo a ser remunerado.
Na economia colaborativa, com a possibilidade da desintermediação, principalmente no caso de trabalhos intelectuais ou artísticos, os custos tendem a se aproximar do zero.
Um número crescente de autores, como o próprio Rifkin, está tornando suas produções disponíveis a um preço muito baixo, ou até mesmo de graça. Como a internet permite dispensar a maior parte das etapas intermediárias de confecção de um livro, os únicos custos do escritor serão a quantidade de tempo consumido na criação e o custo do uso de um computador e sua conexão. Por isso, um e-book custa para o consumidor final muito menos do que um livro impresso.
Poder prescindir de boa parte dessa representação intermediária é o grande trunfo da sociedade em rede, conforme vem afirmando o sociólogo espanhol Manuel Castells, professor na Universidade da Califórnia e notório pesquisador dos reflexos da sociedade em rede na economia e na política. Em entrevista recente ao projeto Fronteiras do Pensamento [2], Castells ressalta que, no campo político, se isso não elimina a democracia representativa e o papel do Parlamento, potencialmente fortalece a participação dos cidadãos na resolução dos seus problemas. “Mesmo não sendo um futurólogo, é possível verificar hoje que já vivemos hibridamente, em presença física e presença virtual”, diz Castells. “Temos de reexaminar tudo o que sabíamos sobre a sociedade industrial, porque estamos em outro contexto” [3].
[2] Projeto que promove conferências internacionais e desenvolve conteúdos múltiplos com pensadores, artistas, cientistas e líderes em vários campos de atuação
[3] Acesse a entrevista completa
O campo da arte e entretenimento também já sugere uma mudança precoce de paradigma nas relações existentes entre o artista e o seu público. A coordenadora do MBA Gestão e Produção Cultural da Fundação Getulio Vargas e uma das organizadoras e autoras do livro De Baixo para Cima [4], Eliane Costa, mostra em seu artigo “Tropicalizando a Economia Criativa: Desafios brasileiros na perspectiva das políticas culturais” algumas manifestações culturais de regiões periféricas que eram discriminadas nesse caminho intermediário até o público, como o passinho, o funk e o tecnobrega, e hoje estão sendo reinterpretadas e revalorizadas graças às mídias digitais.
[4] O livro De Baixo para Cima é aberto e traz uma coletânea de textos de vários autores sobre as várias abordagens da economia criativa
Já a capacidade que essas manifestações têm de se transformar em negócio e, as pessoas, de tirar o seu sustento disso, é outra história. Segundo Eliane Costa, as facilidades de acesso e compartilhamento trazidos pelo cenário contemporâneo das redes, das tecnologias digitais e das trocas peer-to-peer (ou P2P, como também é grafado; consulte Glossário) de fato agregaram um novo ritmo de inovação dessas experiências que brotam em muitos cantos do Brasil.
“No entanto, [esse avanço] nem sempre é acompanhado pelas políticas públicas, ainda presas a uma lógica de broadcast [de um para muitos], enquanto a comunicação e a cultura do século XXI já acontecem de muitos para muitos e de baixo para cima”, conta.
O economista Ladislau Dowbor, professor departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem uma boa definição para esse descompasso. Segundo ele, nesse momento vivemos ainda uma espécie de “disritmia social”, isto é, temos toda uma organização institucional “analógica” gerindo um mundo que já evoluiu para o sistema digital.
O potencial do P2P no meio cultural é enorme, mas ainda pouco explorado. No entanto, nesse pouco já surgiram movimentos como o Inside Out, o maior projeto global de arte participativa já feito, liderado pelo fotógrafo e artista de rua francês, conhecido apenas pelas iniciais JR. Ele convida voluntários, em geral de comunidades pobres ou em conflito, a se deixarem fotografar. Depois, imprime esses retratos em formato de pôsteres e, com a participação dos retratados, os aplica em paredes, em telhados de casas, em áreas públicas, ou em espaços polêmicos como o muro que atualmente separa a Cisjordânia de Israel.
Em 2011, JR imprimiu 100 mil pôsteres em diferentes países pelo mundo, inclusive no Brasil. Em geral, as instalações estão relacionadas a uma denúncia ou protesto.
Na Tunísia, por exemplo, as imagens foram coladas sobre os retratos do ditador e ex-presidente Zine Al-Abidine Ben Ali, assim que foi deposto. No Brasil, JR colou imensas fotografias de olhos a fim de chamar atenção para o cruel assassinato de um grupo de jovens do Morro da Providência, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em palestra TED, o artista diz que sua vida mudou quando percebeu que não mais precisava de curadores para divulgar o seu trabalho. As ruas são sua galeria de arte e a internet o meio para difundi-la .
ABALANDO ESTRUTURAS
Na esfera dos bens imateriais, fruto da criação intelectual, a economia colaborativa avança rapidamente. Mas, quando se adentra no mundo dos objetos, o futuro totalmente colaborativo parece mais distante. Para tentar entender e explicar a origem desse movimento que ousa tentar invadir o terreno da produção de bens físicos, o jornalista e escritor Chris Anderson, autor de Makers – The new industrial revolution [5], enxerga dois caminhos possíveis para o “tsunami” que deverá abalar as estruturas do velho modelo industrial com a popularização das impressoras 3D combinadas com a gratuidade dos softwares de design de objetos (open-source design [6]).
[5] Makers – A nova revolução industrial
[6] É a distribuição livre e on-line do desenho industrial, com a qual alguém pode criar um novo projeto de máquina, móvel ou o que for e permitir sua reprodução
Um deles o escritor chama de “web comercial”: tem como característica baixas barreiras de entrada, inovação rápida e intenso empreendedorismo – um caminho para atrair as grandes empresas. O outro tem a ver com o Movimento Maker, ou pessoas produzindo coisas para o seu próprio uso.
Nesta segunda alternativa não há construção de negócios. Vai mais na linha dos ideais da revista The Whole Earth Catalog, um ícone da contracultura nos Estados Unidos no fim dos anos 1960, cujo conteúdo editorial tratava de ecologia, autossuficiência e do-it- yourself (DIY): “Os ideais originais do Homebrew Computer Club e do The Whole Earth Catalog [7] eram nos libertar das grandes empresas”, relembra Chris Anderson.
[7] Grupo informal de entusiastas da informática que se reunia a cada 15 dias no Vale do Silício – entre 1976 e 1985 – para trocar dispositivos eletroeletrônicos e informações relativas ao DIY eletrônico
DESCENTRALIZANDO
Diante desse quadro não é difícil perceber que o pressuposto básico para a existência das grandes empresas, que é internalizar os custos de transação de um bem material, está em risco. Em um texto sobre a economia híbrida, Ricardo Abramovay explica que as empresas existem justamente porque os indivíduos não conseguem juntar o esforço dos inúmeros componentes da divisão do trabalho existentes no interior de uma fábrica. “Negociar, reza a economia institucional, é muito custoso”, afirma. “Daí o paradoxo de que a economia de mercado depende, antes de tudo, de organizações de comando centralizado que são as firmas e, mais ainda, as grandes corporações”.
Em contraposição a esses comandos centralizados, Abramovay informa que algumas grandes empresas, como a fábrica japonesa de impressoras Roland DG, já substituíram as linhas de montagem por baias individuais em que os trabalhadores montam os produtos do começo ao fim. “Nota-se que a coordenação centralizada das tarefas deixa de ser premissa para o avanço da produtividade”. Em 2012, a revista The Economist publicou um dossiê prevendo que “os efeitos desses potenciais de descentralização produtiva vão fortalecer pequenas e médias empresas e empreendedores individuais”.
Para o sociólogo, essa descentralização de recursos é o que há de mais interessante na noção de economia colaborativa. Nesse sentido, a internet seria inteiramente uma economia colaborativa, assim como a Wikipédia e também os softwares livres. Ou seja, o caminho para o futuro, que se crê mais justo e igualitário a partir dessas bases descentralizadas da internet, já estaria mais bem pavimentado não tivesse esse novo modelo sendo capturado e privatizado por aqueles que são os maiores grupos econômicos do capitalismo contemporâneo, entre os quais se destacam Facebook, Google, Alibaba, Baidu, Twitter e Amazon. “Mesmo que esses grupos em algum nível estimulem cooperação social, eles o fazem a partir de um modelo de negócios em que o objetivo central é fortalecer a sua própria empresa”, analisa.
Josh Levy, diretor da Access, uma ONG global que defende e amplia os direitos digitais dos usuários em risco ao redor do mundo, publicou um artigo em maio na revista Wired em que critica o projeto Internet.org do CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, lançado dias antes. A proposta de Zuckerberg é levar conexão aos dois terços do mundo ainda sem internet. Mas, segundo Levy, o projeto na realidade é uma espécie de “facebooknet” e o que está em jogo é o domínio dos bens comuns, no caso a internet. Ele diz que uma internet verdadeiramente aberta não pode e não deve funcionar como uma app store, em que uma única grande companhia fica com a chave.
Essa contrapartida de forças, como a das gigantes da internet, que tentam privatizar bens comuns sempre que surge uma oportunidade, representa um obstáculo importante para o crescimento e fortalecimento da sociedade em rede. As oportunidades de valorização produtiva do trabalho de milhões de pequenos empreendedores que poderiam se exprimir pela existência da sociedade da informação em rede, a exemplo do artista de rua JR, vão ficando limitadas.
“O modelo de negócio que rege as empresas que dominam a rede tem uma propensão centralizadora que consiste em estimular ao máximo a redundância, em pôr o usuário em contato com aquilo que ele já sabe, com o universo que já é dele”, explica Abramovay. “Isso inibe um dos potenciais mais ricos da rede, que seria a possibilidade de uma real diversidade cosmopolita. Em vez disso, há um provincianismo que se manifesta na capacidade de detectar gostos, orientações políticas, sexuais etc.”, analisa o sociólogo, que por essas e outras razões discorda das previsões de Jeremy Rifkin sobre o fim da era capitalista na segunda metade deste século.
NATUREZA COLABORATIVA
O ritmo de andamento de todas essas tendências vai depender da vontade dos homens. E a biologia, ao que tudo indica, parece estar a favor do movimento colaborativo. É o que pensa a futurista Rosa Alegria, diretora da Perspektiva, consultoria de cenários e estratégias, e do Projeto Millennium no Brasil, a maior rede mundial de pesquisadores do futuro. Por força do ofício, ela mantém “radares” permanentemente direcionados ao futuro e crê que a virada para uma economia colaborativa já está em gestação.
Na mesma linha de Jeremy Rifkin, ela afirma que a neurociência está comprovando que o homem é um ser biologicamente colaborativo e que não nasceu para competir. Rosa cita o livro A Civilização Empática — A corrida para a consciência global em um mundo em crise [8], em que Rifkin reúne premissas para derrubar a teoria de que o homem é por natureza egoísta, materialista, individualista e utilitarista. Segundo sua teoria, os humanos são empáticos e realizam-se na compaixão, solidariedade e pertencimento (mais sobre o assunto em “Monopoly e frescobol“).
[8] Tradução livre para The Empathic Civilization – The race to global consciousness in a world in crisis
Rosa Alegria assina embaixo e diz que o comportamento competitivo foi criado para favorecer o sistema econômico. “Esse espírito competitivo adquire-se na escola, no trabalho e até dentro das famílias.” Supondo que esteja certa e o homem seja de fato dotado de uma natureza colaborativa, o que explicaria a inércia diante de problemas agudos como mudança climática, desertificação do solo, destruição da cobertura vegetal, a redução dramática da biodiversidade, as tensões sociais, entre outras questões?
Para Ladislau Dowbor, enquanto não se resolve a transição do grande sistema econômico, muita coisa já vem sendo feita, principalmente em âmbito local. Várias cidades que fazem parte do G40 (grupo dos 40 países mais desenvolvidos do mundo) e estão com seus processos de urbanização estabilizados têm promovido transformações importantes, entre elas as americanas Jacksonville, na Flórida, e San Francisco, na Califórnia. “Outras cidades da Suécia, Alemanha, Canadá e China também desenvolvem sistemas colaborativos muito ordenados e extremamente descentralizados”, afirma.
No entanto, apesar dos muitos esforços locais, Dowbor reconhece que o ritmo da evolução dessa “sociedade da informação” não corresponde à janela de tempo que sobrou até se chegar a níveis catastróficos. Ele recorre ao autor do consagrado Plano B 4.0 – Mobilização para salvar a civilização , Lester Brown, segundo o qual uma série de catástrofes está por um fio. A que teria mais chance de eclodir está no eixo da segurança alimentar em razão do esgotamento dos lençóis freáticos em várias partes do globo.
Dowbor lembra que o Estado de Bem-Estar Social que elevou o status quo europeu aos padrões atuais foi consequência da Segunda Guerra Mundial, durante a qual morreram 60 milhões de pessoas. “Não parece razoável termos de esperar por um novo choque dessas proporções para conseguirmos força política para mudar as regras do jogo”.
BIBLIOGRAFIA
Para saber mais sobre o tema economia colaborativa e assuntos correlatos consulte:
Brett Frischmann – Infrastructure: The social value of shared resources (2012)
Bruce Lipton e Steve Bhaerman – Evolução Espontânea (2013)
Charles Leadbeater – It’s Co-operation, Stupid (2012), disponível aqui
Chris Anderson – Makers: The new industrial revolution (2012)
Damien Demailly e Anne-Sophie Novel – The Sharing Economy: Make it sustainable (2014), disponível aqui
David Korten – The Great Turning: From empire to earth community (2007)
Eliane Costa e Gabriela Agustini – De Baixo para Cima (2015), coletânea de artigos, disponível aqui
Elisabet Sahtouris – A Dança da Terra (1998)
Hazel Henderson – Building a Win-Win World (1997)
Jeremy Rifkin – “The Zero Marginal Cost Society: The internet of things, the collaborative commons, and the eclipse of capitalism” (2012), disponível aqui, e A Civilização Empática — A corrida para a consciência global em um mundo em crise (2009)
Lester Brown – Plano B 4.0 (2009), disponível aqui
Manuel Castells – A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura (Paz & Terra, 1999)
[:en]A virada para uma economia predominantemente colaborativa ainda deve demorar, mas as previsões indicam ser inevitável
Pequenas preocupações cotidianas, como acompanhar o sobe-e-desce do dólar, do PIB e da Bolsa de Valores, absorvem tanta energia e espaço nobre no noticiário que poucos se dão conta do tique-taque da “bomba-relógio”. Nem mesmo as fortes evidências de que a saúde do sistema financeiro, as tensões sociais e o limite ambiental estão por um fio são suficientes para pôr em estado de alerta a massa que movimenta o business as usual global. Inertes, as pessoas vão se deixando empurrar para a beira do abismo. Vários estudiosos em macrotendências creem que muitas das soluções para o impasse civilizatório testemunhado pela geração atual virão do novo modelo de economia baseada em redes e ações colaborativas. Que para isso ganhar escala e chegar ao mainstream é coisa para o futuro não resta dúvida. A questão é saber se haverá tempo de desarmar a “bomba” e evitar o pior cenário.
Para o economista e escritor americano Jeremy Rifkin, a era do capitalismo industrial, que vem alimentando crises em três grandes eixos da civilização – o financeiro, o social e o ambiental –, já está em seu último ato. Sairá de cena “não muito rapidamente, mas inevitavelmente”. Enquanto isso, assistimos ao desenrolar de uma economia híbrida que tem em sua base a mistura de colaboração social e economia privada, na definição do sociólogo Ricardo Abramovay, professor do Departamento de Economia e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Pelas contas de Rifkin o capitalismo industrial continuará preponderante por mais uns 50 anos. E quem viver até a segunda metade deste século verá a economia colaborativa se tornar dominante. Essas considerações estão em seu livro The Zero Marginal Cost Society: The internet of things, the collaborative commons, and the eclipse of capitalism [1] , publicado recentemente na internet, com licença Creative Commons (CC).
[1] Em tradução livre: Sociedade do Custo Marginal Zero: A internet das coisas, a economia colaborativa e o eclipse do capitalismo
A teoria do custo marginal zero de que trata a obra é uma característica importante para o desenvolvimento da economia colaborativa. No mercado tradicional, existem as margens de lucro praticadas ao longo das cadeias produtivas. O autor de um livro, por exemplo, entrega o produto do seu trabalho intelectual a um editor em troca de um adiantamento pelas vendas futuras. Até o comprador final, o livro terá passado por diferentes etapas: editora, gráfica, distribuidora, atacadista e varejista. A cada uma, adiciona-se um custo a ser remunerado.
Na economia colaborativa, com a possibilidade da desintermediação, principalmente no caso de trabalhos intelectuais ou artísticos, os custos tendem a se aproximar do zero.
Um número crescente de autores, como o próprio Rifkin, está tornando suas produções disponíveis a um preço muito baixo, ou até mesmo de graça. Como a internet permite dispensar a maior parte das etapas intermediárias de confecção de um livro, os únicos custos do escritor serão a quantidade de tempo consumido na criação e o custo do uso de um computador e sua conexão. Por isso, um e-book custa para o consumidor final muito menos do que um livro impresso.
Poder prescindir de boa parte dessa representação intermediária é o grande trunfo da sociedade em rede, conforme vem afirmando o sociólogo espanhol Manuel Castells, professor na Universidade da Califórnia e notório pesquisador dos reflexos da sociedade em rede na economia e na política. Em entrevista recente ao projeto Fronteiras do Pensamento [2], Castells ressalta que, no campo político, se isso não elimina a democracia representativa e o papel do Parlamento, potencialmente fortalece a participação dos cidadãos na resolução dos seus problemas. “Mesmo não sendo um futurólogo, é possível verificar hoje que já vivemos hibridamente, em presença física e presença virtual”, diz Castells. “Temos de reexaminar tudo o que sabíamos sobre a sociedade industrial, porque estamos em outro contexto” [3].
[2] Projeto que promove conferências internacionais e desenvolve conteúdos múltiplos com pensadores, artistas, cientistas e líderes em vários campos de atuação
[3] Acesse a entrevista completa
O campo da arte e entretenimento também já sugere uma mudança precoce de paradigma nas relações existentes entre o artista e o seu público. A coordenadora do MBA Gestão e Produção Cultural da Fundação Getulio Vargas e uma das organizadoras e autoras do livro De Baixo para Cima [4], Eliane Costa, mostra em seu artigo “Tropicalizando a Economia Criativa: Desafios brasileiros na perspectiva das políticas culturais” algumas manifestações culturais de regiões periféricas que eram discriminadas nesse caminho intermediário até o público, como o passinho, o funk e o tecnobrega, e hoje estão sendo reinterpretadas e revalorizadas graças às mídias digitais.
[4] O livro De Baixo para Cima é aberto e traz uma coletânea de textos de vários autores sobre as várias abordagens da economia criativa
Já a capacidade que essas manifestações têm de se transformar em negócio e, as pessoas, de tirar o seu sustento disso, é outra história. Segundo Eliane Costa, as facilidades de acesso e compartilhamento trazidos pelo cenário contemporâneo das redes, das tecnologias digitais e das trocas peer-to-peer (ou P2P, como também é grafado; consulte Glossário) de fato agregaram um novo ritmo de inovação dessas experiências que brotam em muitos cantos do Brasil.
“No entanto, [esse avanço] nem sempre é acompanhado pelas políticas públicas, ainda presas a uma lógica de broadcast [de um para muitos], enquanto a comunicação e a cultura do século XXI já acontecem de muitos para muitos e de baixo para cima”, conta.
O economista Ladislau Dowbor, professor departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem uma boa definição para esse descompasso. Segundo ele, nesse momento vivemos ainda uma espécie de “disritmia social”, isto é, temos toda uma organização institucional “analógica” gerindo um mundo que já evoluiu para o sistema digital.
O potencial do P2P no meio cultural é enorme, mas ainda pouco explorado. No entanto, nesse pouco já surgiram movimentos como o Inside Out, o maior projeto global de arte participativa já feito, liderado pelo fotógrafo e artista de rua francês, conhecido apenas pelas iniciais JR. Ele convida voluntários, em geral de comunidades pobres ou em conflito, a se deixarem fotografar. Depois, imprime esses retratos em formato de pôsteres e, com a participação dos retratados, os aplica em paredes, em telhados de casas, em áreas públicas, ou em espaços polêmicos como o muro que atualmente separa a Cisjordânia de Israel.
Em 2011, JR imprimiu 100 mil pôsteres em diferentes países pelo mundo, inclusive no Brasil. Em geral, as instalações estão relacionadas a uma denúncia ou protesto.
Na Tunísia, por exemplo, as imagens foram coladas sobre os retratos do ditador e ex-presidente Zine Al-Abidine Ben Ali, assim que foi deposto. No Brasil, JR colou imensas fotografias de olhos a fim de chamar atenção para o cruel assassinato de um grupo de jovens do Morro da Providência, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em palestra TED, o artista diz que sua vida mudou quando percebeu que não mais precisava de curadores para divulgar o seu trabalho. As ruas são sua galeria de arte e a internet o meio para difundi-la .
ABALANDO ESTRUTURAS
Na esfera dos bens imateriais, fruto da criação intelectual, a economia colaborativa avança rapidamente. Mas, quando se adentra no mundo dos objetos, o futuro totalmente colaborativo parece mais distante. Para tentar entender e explicar a origem desse movimento que ousa tentar invadir o terreno da produção de bens físicos, o jornalista e escritor Chris Anderson, autor de Makers – The new industrial revolution [5], enxerga dois caminhos possíveis para o “tsunami” que deverá abalar as estruturas do velho modelo industrial com a popularização das impressoras 3D combinadas com a gratuidade dos softwares de design de objetos (open-source design [6]).
[5] Makers – A nova revolução industrial
[6] É a distribuição livre e on-line do desenho industrial, com a qual alguém pode criar um novo projeto de máquina, móvel ou o que for e permitir sua reprodução
Um deles o escritor chama de “web comercial”: tem como característica baixas barreiras de entrada, inovação rápida e intenso empreendedorismo – um caminho para atrair as grandes empresas. O outro tem a ver com o Movimento Maker, ou pessoas produzindo coisas para o seu próprio uso.
Nesta segunda alternativa não há construção de negócios. Vai mais na linha dos ideais da revista The Whole Earth Catalog, um ícone da contracultura nos Estados Unidos no fim dos anos 1960, cujo conteúdo editorial tratava de ecologia, autossuficiência e do-it- yourself (DIY): “Os ideais originais do Homebrew Computer Club e do The Whole Earth Catalog [7] eram nos libertar das grandes empresas”, relembra Chris Anderson.
[7] Grupo informal de entusiastas da informática que se reunia a cada 15 dias no Vale do Silício – entre 1976 e 1985 – para trocar dispositivos eletroeletrônicos e informações relativas ao DIY eletrônico
DESCENTRALIZANDO
Diante desse quadro não é difícil perceber que o pressuposto básico para a existência das grandes empresas, que é internalizar os custos de transação de um bem material, está em risco. Em um texto sobre a economia híbrida, Ricardo Abramovay explica que as empresas existem justamente porque os indivíduos não conseguem juntar o esforço dos inúmeros componentes da divisão do trabalho existentes no interior de uma fábrica. “Negociar, reza a economia institucional, é muito custoso”, afirma. “Daí o paradoxo de que a economia de mercado depende, antes de tudo, de organizações de comando centralizado que são as firmas e, mais ainda, as grandes corporações”.
Em contraposição a esses comandos centralizados, Abramovay informa que algumas grandes empresas, como a fábrica japonesa de impressoras Roland DG, já substituíram as linhas de montagem por baias individuais em que os trabalhadores montam os produtos do começo ao fim. “Nota-se que a coordenação centralizada das tarefas deixa de ser premissa para o avanço da produtividade”. Em 2012, a revista The Economist publicou um dossiê prevendo que “os efeitos desses potenciais de descentralização produtiva vão fortalecer pequenas e médias empresas e empreendedores individuais”.
Para o sociólogo, essa descentralização de recursos é o que há de mais interessante na noção de economia colaborativa. Nesse sentido, a internet seria inteiramente uma economia colaborativa, assim como a Wikipédia e também os softwares livres. Ou seja, o caminho para o futuro, que se crê mais justo e igualitário a partir dessas bases descentralizadas da internet, já estaria mais bem pavimentado não tivesse esse novo modelo sendo capturado e privatizado por aqueles que são os maiores grupos econômicos do capitalismo contemporâneo, entre os quais se destacam Facebook, Google, Alibaba, Baidu, Twitter e Amazon. “Mesmo que esses grupos em algum nível estimulem cooperação social, eles o fazem a partir de um modelo de negócios em que o objetivo central é fortalecer a sua própria empresa”, analisa.
Josh Levy, diretor da Access, uma ONG global que defende e amplia os direitos digitais dos usuários em risco ao redor do mundo, publicou um artigo em maio na revista Wired em que critica o projeto Internet.org do CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, lançado dias antes. A proposta de Zuckerberg é levar conexão aos dois terços do mundo ainda sem internet. Mas, segundo Levy, o projeto na realidade é uma espécie de “facebooknet” e o que está em jogo é o domínio dos bens comuns, no caso a internet. Ele diz que uma internet verdadeiramente aberta não pode e não deve funcionar como uma app store, em que uma única grande companhia fica com a chave.
Essa contrapartida de forças, como a das gigantes da internet, que tentam privatizar bens comuns sempre que surge uma oportunidade, representa um obstáculo importante para o crescimento e fortalecimento da sociedade em rede. As oportunidades de valorização produtiva do trabalho de milhões de pequenos empreendedores que poderiam se exprimir pela existência da sociedade da informação em rede, a exemplo do artista de rua JR, vão ficando limitadas.
“O modelo de negócio que rege as empresas que dominam a rede tem uma propensão centralizadora que consiste em estimular ao máximo a redundância, em pôr o usuário em contato com aquilo que ele já sabe, com o universo que já é dele”, explica Abramovay. “Isso inibe um dos potenciais mais ricos da rede, que seria a possibilidade de uma real diversidade cosmopolita. Em vez disso, há um provincianismo que se manifesta na capacidade de detectar gostos, orientações políticas, sexuais etc.”, analisa o sociólogo, que por essas e outras razões discorda das previsões de Jeremy Rifkin sobre o fim da era capitalista na segunda metade deste século.
NATUREZA COLABORATIVA
O ritmo de andamento de todas essas tendências vai depender da vontade dos homens. E a biologia, ao que tudo indica, parece estar a favor do movimento colaborativo. É o que pensa a futurista Rosa Alegria, diretora da Perspektiva, consultoria de cenários e estratégias, e do Projeto Millennium no Brasil, a maior rede mundial de pesquisadores do futuro. Por força do ofício, ela mantém “radares” permanentemente direcionados ao futuro e crê que a virada para uma economia colaborativa já está em gestação.
Na mesma linha de Jeremy Rifkin, ela afirma que a neurociência está comprovando que o homem é um ser biologicamente colaborativo e que não nasceu para competir. Rosa cita o livro A Civilização Empática — A corrida para a consciência global em um mundo em crise [8], em que Rifkin reúne premissas para derrubar a teoria de que o homem é por natureza egoísta, materialista, individualista e utilitarista. Segundo sua teoria, os humanos são empáticos e realizam-se na compaixão, solidariedade e pertencimento (mais sobre o assunto em “Monopoly e frescobol“).
[8] Tradução livre para The Empathic Civilization – The race to global consciousness in a world in crisis
Rosa Alegria assina embaixo e diz que o comportamento competitivo foi criado para favorecer o sistema econômico. “Esse espírito competitivo adquire-se na escola, no trabalho e até dentro das famílias.” Supondo que esteja certa e o homem seja de fato dotado de uma natureza colaborativa, o que explicaria a inércia diante de problemas agudos como mudança climática, desertificação do solo, destruição da cobertura vegetal, a redução dramática da biodiversidade, as tensões sociais, entre outras questões?
Para Ladislau Dowbor, enquanto não se resolve a transição do grande sistema econômico, muita coisa já vem sendo feita, principalmente em âmbito local. Várias cidades que fazem parte do G40 (grupo dos 40 países mais desenvolvidos do mundo) e estão com seus processos de urbanização estabilizados têm promovido transformações importantes, entre elas as americanas Jacksonville, na Flórida, e San Francisco, na Califórnia. “Outras cidades da Suécia, Alemanha, Canadá e China também desenvolvem sistemas colaborativos muito ordenados e extremamente descentralizados”, afirma.
No entanto, apesar dos muitos esforços locais, Dowbor reconhece que o ritmo da evolução dessa “sociedade da informação” não corresponde à janela de tempo que sobrou até se chegar a níveis catastróficos. Ele recorre ao autor do consagrado Plano B 4.0 – Mobilização para salvar a civilização , Lester Brown, segundo o qual uma série de catástrofes está por um fio. A que teria mais chance de eclodir está no eixo da segurança alimentar em razão do esgotamento dos lençóis freáticos em várias partes do globo.
Dowbor lembra que o Estado de Bem-Estar Social que elevou o status quo europeu aos padrões atuais foi consequência da Segunda Guerra Mundial, durante a qual morreram 60 milhões de pessoas. “Não parece razoável termos de esperar por um novo choque dessas proporções para conseguirmos força política para mudar as regras do jogo”.
BIBLIOGRAFIA
Para saber mais sobre o tema economia colaborativa e assuntos correlatos consulte:
Brett Frischmann – Infrastructure: The social value of shared resources (2012)
Bruce Lipton e Steve Bhaerman – Evolução Espontânea (2013)
Charles Leadbeater – It’s Co-operation, Stupid (2012), disponível aqui
Chris Anderson – Makers: The new industrial revolution (2012)
Damien Demailly e Anne-Sophie Novel – The Sharing Economy: Make it sustainable (2014), disponível aqui
David Korten – The Great Turning: From empire to earth community (2007)
Eliane Costa e Gabriela Agustini – De Baixo para Cima (2015), coletânea de artigos, disponível aqui
Elisabet Sahtouris – A Dança da Terra (1998)
Hazel Henderson – Building a Win-Win World (1997)
Jeremy Rifkin – “The Zero Marginal Cost Society: The internet of things, the collaborative commons, and the eclipse of capitalism” (2012), disponível aqui, e A Civilização Empática — A corrida para a consciência global em um mundo em crise (2009)
Lester Brown – Plano B 4.0 (2009), disponível aqui
Manuel Castells – A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura (Paz & Terra, 1999)