Ao suplantar premissas como a competição e a posse de bens, a economia colaborativa se desdobra em um universo novo, vasto e muitas vezes contraditório. Outra forma de sociedade emerge, baseada na informação e no conhecimento
À primeira vista, aplicativos para pedir táxi, alugar casas em viagem ou financiar projetos culturais valem sobretudo pela praticidade que oferecem, ao levar desconhecidos a uma relação direta, sem o intermédio do mercado. Mas esta é a superfície visível de um universo novo, vasto e muitas vezes contraditório, que envolve desde utopias ultracapitalistas até projetos de um mundo pós-capitalista. E mesmo essa nova praticidade suscita questões muito profundas: o que vai significar o trabalho nessa “nova economia”? Quem será responsável pela regulação, e como? Qual é o impacto sobre o meio ambiente?
“A economia compartilhada é um fenômeno muito recente, que tem distintas formas. Não se trata de um segmento da economia; é antes uma forma de conectar atores que permeia, em princípio, qualquer setor de atividade”, resume Dora Kaufman, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “Um dos seus atributos mais inovadores é permitir que indivíduos se agrupem e produzam algo compartilhado.”
O papel da tecnologia digital é enorme na construção da chamada economia colaborativa, em todas as variantes que assume. Embora tenha se consolidado a convicção de que o motor das economias modernas é a competição, sempre houve espaço para colaboração: no interior das firmas, nas famílias, nas cooperativas. Desta vez, muitos acreditam que a competição pode ficar em segundo plano (mais sobre cooperação em “Monopoly e frescobol“).
“As tecnologias digitais estão engendrando um novo tipo de sociedade, esta baseada na informação e no conhecimento”, prevê Kaufman. “Alguns autores creem que o trabalho e a posse dos bens não são mais o centro da estrutura social, e que o contexto geral do intercâmbio social e econômico, que foi competitivo na era industrial, será colaborativo.”
Uma transformação econômica de escopo tão amplo não poderia deixar de ter uma enorme variedade de vertentes. Para a socióloga Juliet Schor, da Universidade Harvard, a economia colaborativa é difícil de definir, mas existem quatro categorias principais: fazer bens (usados) circularem; aumentar a intensidade de uso de ativos duráveis; trocar serviços diretamente; e compartilhar ativos produtivos. Tudo isso remete ao ano de 1995, quando surgiram o eBay, site de venda de produtos usados, e a Craigslists, página de classificados on-line).
Fala-se em colaboração quando a relação entre os indivíduos da rede é direta, ou seja, peer-to-peer (consulte Glossário abaixo), mas isso não significa que, em muitos casos, a plataforma não seja oferecida por enormes empresas. Hoje, por exemplo, o valor de mercado da plataforma Airbnb, de aluguel de apartamentos, é calculado em US$ 13 bilhões. Segundo a consultoria PwC, os principais ramos da economia colaborativa com fins lucrativos vão movimentar US$ 335 bilhões em 2035 [1].
[1] Saiba mais
Consumo como fato social
Uma das formas mais simples da economia colaborativa é o chamado consumo colaborativo, em que pessoas alugam, emprestam ou até mesmo dão coisas entre si (mais em “Colaboração na economia de mercado“). Um efeito importante do consumo colaborativo é a redução da ociosidade: se um carro passa a maior parte do tempo na garagem ou estacionado na rua, por que não compartilhá-lo? Outro resultado é a redução do desperdício: há aplicativos que permitem repassar a outros a comida que foi comprada, mas não será consumida.
Nessa rubrica podem entrar coisas tão diferentes quanto o Airbnb, o RentEver, que ajuda os usuários a alugar qualquer coisa uns para os outros, ou as comunidades Freecycle, presente em inúmeras cidades do mundo, em que as pessoas oferecem a desconhecidos aquilo que, de outro modo, pararia no lixo. Até a agricultura é atingida pelas novas formas de consumo: empresas como FarmDrop e Open Food Network conectam consumidores urbanos diretamente a produtores rurais: os primeiros recebem dos segundos produtos agrícolas fresquinhos, em casa, sem passar pelas gôndolas dos supermercados.
Para Dora Kaufman, da ECA, não temos o hábito de pensar no consumo como um fato social. Mas isso é um erro. Por meio dele “nos relacionamos, nos expressamos, nos incluímos ou não em grupos”. A pesquisadora afirma que “o ato de consumir transcende a simples compra de um produto por necessidade básica. Já consumimos de forma distinta do que consumíamos na economia industrial”.
Em outros casos, a economia do compartilhamento aproveita as possibilidades das tecnologias da informação para oferecer seus produtos não como bens a vender, mas como serviços a contratar. A ideia é a de que o consumidor gaste menos por algo que, de qualquer modo, só usaria por um tempo curto. E não precisa se preocupar com um trambolho quando não está usando. É o caso dos serviços de aluguel de carro, como ZipCar e Car2Go: o usuário não precisa se preocupar em achar vaga, pagar IPTU ou fazer a revisão.
A redução dos desperdícios e o incentivo ao reúso levaram pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais (Iddri), de Paris, a se perguntar se a economia colaborativa tem uma tendência inata à sustentabilidade. Afinal, uma das justificativas para as cidades adotarem, por exemplo, sistemas de compartilhamento de bicicletas – a primeira foi a francesa Lyon – é o controle da emissão de poluentes. Os pesquisadores Damien Demailly e Anne-Sophie Novel concluíram que o potencial é grande: com uma boa administração de bens compartilháveis, a produção doméstica de lixo poderia cair 20% e o orçamento das famílias ser reduzido em 7% . Mas o potencial sustentável da colaboração só será atingido, eles afirmam, se houver um marco regulatório eficaz.
Em todos esses campos, um ponto comum é fundamentar-se na confiança e na reputação. Usuários do Airbnb, do Uber ou do Prosper são avaliados uns pelos outros; os que recebem boas avaliações conseguem fazer mais conexões e, assim, prosperam. A filosofia por trás das avaliações é recuperar o sentido da confiança, fundamental para o funcionamento de qualquer economia, mas que andava abalada pelo menos desde a crise de 2008. Assim, a reputação tomaria o lugar da regulação – sobretudo estatal – como garantia de que os participantes das transações agem honestamente e com responsabilidade.
Reputação e regulação
Mas há sinais de que a mera reputação não basta. Casos envolvendo o Uber – assédio sexual; um seguro que não cobre atividades comerciais – e o Airbnb – sublocação irregular; abuso por parte dos locatários – mostram que pode ser necessário criar um ambiente regulatório para a economia colaborativa. Trebor Scholz, professor de mídia e cultura na nova-iorquina New School for Social Research, chama atenção para o fato de que a nova economia implica novas formas de trabalho, que, sem regulação, podem se tornar predatórias [2].
[2] Saiba mais
“Tudo que se torna digital pode ser explorado. Coisas como carros autoguiados, companhias de táxi baseadas em aplicativos e sistemas de crowdsourcing podem ser benéficos, mas também implicam vulnerabilidades para trabalhadores”, argumenta Scholz. “O digital permite novos modelos de negócios, novas cadeias de extração de valor e formas de divisão do trabalho, muitas das quais estão obstruindo seu potencial humanizador e emancipatório, ao mesmo tempo que comprometem a seguridade social.”
Scholz lembra também que grande parte desses negócios apoia-se em infraestrutura já existente, gerando renda através da otimização do uso e nada mais. Ao menos por enquanto, a economia colaborativa baseia-se, em grande medida, na boa e velha economia tradicional. E Kaufman argumenta que a lógica que regeu até hoje a economia industrial começa a ser superada. A pesquisadora cita a convergência entre o ato de produzir e o de consumir, além das perspectivas oferecidas por impressoras 3D e os nascentes projetos de geração e distribuição individualizada de energia, favorecida pelos chamados smart grids [3], para afirmar que as transformações da economia colaborativa desafiam “o modus operandi da economia industrial”.
[3] O smart grid é uma tecnologia que permite às residências gerar e trocar energia elétrica de acordo com a necessidade
De fato, a realidade peer-to-peer há muito deixou de ser assunto de transferências de arquivos de mídia. Já é possível, por exemplo, encontrar bens de uso corrente sendo fabricados colaborativamente, usando impressoras 3D ou em laboratórios de fabricação comunitários (os FabLabs). Essas impressoras são um dos caminhos pelos quais os novos modelos econômicos transbordam o digital para ocupar o mundo físico.
Em 2012, o jornalista e empresário Chris Anderson lançou o livro Makers, em que a produção de bens físicos através de tecnologias digitais é tratada como uma nova revolução industrial, porque as novidades tecnológicas liberam o “excedente cognitivo” de uma multidão de indivíduos que, até então, apareciam como meros consumidores. Por exemplo, o engenheiro Joshua Pearce, da Universidade de Tecnologia de Michigan, acredita que o chamado open-source design [4] está se tornando um caminho viável para tornar a agricultura sustentável ao redor do mundo, facilitando a implantação de lavouras orgânicas. Pearce lembra que um terço do cultivo orgânico ocorre em países em desenvolvimento e, para os agricultores dessas regiões, a aquisição de maquinário por open-source design pode representar uma significativa redução de custos.
[4] É a distribuição livre e on-line do desenho industrial, com a qual alguém pode criar um novo projeto de máquina, móvel ou o que for e permitir sua reprodução
Por trás da interação direta entre pessoas, ativistas como o italiano Franco Berardi e filósofos como o francês Bernard Stiegler enxergam uma automatização das relações interpessoais. Embora nem sempre seja fácil notar, muitos dos encontros colaborativos são mediados por algoritmos controlados por empresas, cujo modo de funcionamento nem sempre é explícito. Por isso iniciativas como a Open Source Initiative incentivam o uso de software de código aberto.
A combinação de tecnologias da comunicação, novas fontes de energia e revoluções do comportamento levou o sociólogo americano Jeremy Rifkin a afirmar que estamos entrando na “economia do custo marginal zero”. É o caso de bens digitais: cada cópia nova de um arquivo sai praticamente de graça, de modo que ele pode ser livremente distribuído pelo mundo, em que pesem as questões de propriedade intelectual.
Para Rifkin, o grande motor da nova revolução econômica é a internet das coisas, que conecta bilhões de objetos físicos à rede (hoje, algo em torno de 11 bilhões no mundo; Rifkin estima que serão 100 bilhões em 2030), permitindo que sejam administrados com custo baixíssimo. “Centenas de milhões de pessoas estão transferindo pedacinhos de suas vidas dos mercados capitalistas para o mundo comum e colaborativo global”, escreve Rifkin.
Com efeito, a economia da colaboração também recuperou um antigo conceito econômico: os “comuns”. Na cultura digital, é cada vez mais frequente o uso das licenças Creative Commons, que permitem modular o nível de reserva da propriedade intelectual. Mas os comuns referem-se a tudo que não é propriedade individual nem é consumido individualmente: é o que pertence a todos, ao menos em tese, como o ar, em certas sociedades a terra e, no caso do Creative Commons, também o conhecimento [5].
[5] Mais em creativecommons. A Página22 é adepta da licença
Na tradição do pensamento econômico, a propriedade comum costuma ser considerada ineficiente, a ponto de conduzir à chamada tragédia dos comuns. O argumento é que os agentes econômicos têm incentivos para esgotar os bens comuns, principalmente a terra, porque competem entre si mas não se sentem responsáveis pelo coletivo. Mas a economista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel de Economia em 2009, demonstrou que a tragédia dos comuns não é tão trágica quanto parece. Ao contrário, os usuários de um bem comum sempre encontram meios de cooperar para administrá-lo satisfatoriamente para todos, contanto que se sintam em contato próximo com ele.
Seguidores de Elinor Ostrom procuram estender a lógica dos comuns à economia global. O jurista Brett Frischmann, autor de Infrastructure: The social value of shared resources, acredita que o exemplo da administração de recursos naturais a partir da noção de commons pode ser um ponto de partida para formular as políticas públicas e as legislações que organizarão o uso das ferramentas da nova economia, além das relações de produção e trabalho. E, quando os conceitos de comuns, colaboração e cooperação estiverem servindo de base para a formulação de marcos legais, estará claro que a economia da colaboração veio para ficar.
GLOSSÁRIO
Alguns verbetes do universo colaborativo usados ao longo desta edição:Comuns – Originalmente, os commons, ou comuns, designam recursos compartilhados pela sociedade, como o ar, a terra e o conhecimento. Na internet, o termo ganhou um cunho cultural e político, fundando novas formas de propriedade intelectual, como as propostas pela organização não governamental Creative Commons.
Consumo colaborativo – Em vez de comprar um bem que será pouco usado, é possível alugá-lo, tomá-lo emprestado ou trocá-lo com desconhecidos. Do compartilhamento de carros à livre doação, o acesso aos serviços é mais importante que a posse dos bens.
Crowdsourcing, crowdfunding – Multidões digitais e anônimas viraram fonte de conteúdo e financiamento. Sites como a Wikipédia são crowdsourced: recebem conteúdo da multidão. Sites como o Catarse são plataformas de crowdfunding, o financiamento coletivo.
DIY, FabLabs, Makers – Do-it-yourself, fabrication laboratory e movimento maker são vertentes de novos modos de produção usando tecnologias digitais. Os FabLabs são pequenas oficinas que se dizem capazes de fazer “quase qualquer coisa”.
Hackerspaces – Assim como os Fablabs, são espaços de encontro onde as pessoas trocam experiências e podem trabalhar juntas em projetos digitais. Também são espaços de aprendizado, com workshops e cursos.
Impressoras 3D – Com esses dispositivos, capazes de imprimir objetos cada vez mais complexos a partir de arquivos transmitidos pela internet, é possível, por exemplo, transmitir instruções para criar bens de consumo ou ferramentas.
Internet das coisas – Aos poucos, os objetos do dia a dia vão sendo conectados à rede, enviando dados sobre seu uso para os algoritmos que regem sua gestão. A administração de fluxos e estoques, por exemplo, fica mais eficiente.
Moedas complementares – Dos clubes de troca aos algoritmos conhecidos como criptomoedas (por exemplo, Bitcoin), buscam escapar à instabilidade das moedas oficiais, além de promover trocas comunitárias e evitar as taxas dos bancos.
P2P – Corruptela de peer-to-peer, ou a relação direta entre membros de uma rede, sem passar por uma instância central. Usada para referir-se a tecnologias digitais, como torrents (extensão que permite a transferência de arquivos entre usuários), também designa redes de solidariedade no mundo real.
Wiki – Criada por Ward Cunningham, a tecnologia da Wikipédia é simples: consiste numa aplicação de texto com código fácil, que permite adição, supressão e modificação por qualquer pessoa. Na língua havaiana, wiki significa “ligeiro”.
Uber, Airbnb, Prosper – Essas empresas estão entre as mais bem-sucedidas da economia colaborativa visando o lucro. Por meio de uma plataforma, permitem que os usuários interajam e negociem de forma direta serviços de transporte, de hospedagem e financeiros, respectivamente.
[:en]Ao suplantar premissas como a competição e a posse de bens, a economia colaborativa se desdobra em um universo novo, vasto e muitas vezes contraditório. Outra forma de sociedade emerge, baseada na informação e no conhecimento
À primeira vista, aplicativos para pedir táxi, alugar casas em viagem ou financiar projetos culturais valem sobretudo pela praticidade que oferecem, ao levar desconhecidos a uma relação direta, sem o intermédio do mercado. Mas esta é a superfície visível de um universo novo, vasto e muitas vezes contraditório, que envolve desde utopias ultracapitalistas até projetos de um mundo pós-capitalista. E mesmo essa nova praticidade suscita questões muito profundas: o que vai significar o trabalho nessa “nova economia”? Quem será responsável pela regulação, e como? Qual é o impacto sobre o meio ambiente?
“A economia compartilhada é um fenômeno muito recente, que tem distintas formas. Não se trata de um segmento da economia; é antes uma forma de conectar atores que permeia, em princípio, qualquer setor de atividade”, resume Dora Kaufman, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “Um dos seus atributos mais inovadores é permitir que indivíduos se agrupem e produzam algo compartilhado.”
O papel da tecnologia digital é enorme na construção da chamada economia colaborativa, em todas as variantes que assume. Embora tenha se consolidado a convicção de que o motor das economias modernas é a competição, sempre houve espaço para colaboração: no interior das firmas, nas famílias, nas cooperativas. Desta vez, muitos acreditam que a competição pode ficar em segundo plano (mais sobre cooperação em “Monopoly e frescobol“).
“As tecnologias digitais estão engendrando um novo tipo de sociedade, esta baseada na informação e no conhecimento”, prevê Kaufman. “Alguns autores creem que o trabalho e a posse dos bens não são mais o centro da estrutura social, e que o contexto geral do intercâmbio social e econômico, que foi competitivo na era industrial, será colaborativo.”
Uma transformação econômica de escopo tão amplo não poderia deixar de ter uma enorme variedade de vertentes. Para a socióloga Juliet Schor, da Universidade Harvard, a economia colaborativa é difícil de definir, mas existem quatro categorias principais: fazer bens (usados) circularem; aumentar a intensidade de uso de ativos duráveis; trocar serviços diretamente; e compartilhar ativos produtivos. Tudo isso remete ao ano de 1995, quando surgiram o eBay, site de venda de produtos usados, e a Craigslists, página de classificados on-line).
Fala-se em colaboração quando a relação entre os indivíduos da rede é direta, ou seja, peer-to-peer (consulte Glossário abaixo), mas isso não significa que, em muitos casos, a plataforma não seja oferecida por enormes empresas. Hoje, por exemplo, o valor de mercado da plataforma Airbnb, de aluguel de apartamentos, é calculado em US$ 13 bilhões. Segundo a consultoria PwC, os principais ramos da economia colaborativa com fins lucrativos vão movimentar US$ 335 bilhões em 2035 [1].
[1] Saiba mais
Consumo como fato social
Uma das formas mais simples da economia colaborativa é o chamado consumo colaborativo, em que pessoas alugam, emprestam ou até mesmo dão coisas entre si (mais em “Colaboração na economia de mercado“). Um efeito importante do consumo colaborativo é a redução da ociosidade: se um carro passa a maior parte do tempo na garagem ou estacionado na rua, por que não compartilhá-lo? Outro resultado é a redução do desperdício: há aplicativos que permitem repassar a outros a comida que foi comprada, mas não será consumida.
Nessa rubrica podem entrar coisas tão diferentes quanto o Airbnb, o RentEver, que ajuda os usuários a alugar qualquer coisa uns para os outros, ou as comunidades Freecycle, presente em inúmeras cidades do mundo, em que as pessoas oferecem a desconhecidos aquilo que, de outro modo, pararia no lixo. Até a agricultura é atingida pelas novas formas de consumo: empresas como FarmDrop e Open Food Network conectam consumidores urbanos diretamente a produtores rurais: os primeiros recebem dos segundos produtos agrícolas fresquinhos, em casa, sem passar pelas gôndolas dos supermercados.
Para Dora Kaufman, da ECA, não temos o hábito de pensar no consumo como um fato social. Mas isso é um erro. Por meio dele “nos relacionamos, nos expressamos, nos incluímos ou não em grupos”. A pesquisadora afirma que “o ato de consumir transcende a simples compra de um produto por necessidade básica. Já consumimos de forma distinta do que consumíamos na economia industrial”.
Em outros casos, a economia do compartilhamento aproveita as possibilidades das tecnologias da informação para oferecer seus produtos não como bens a vender, mas como serviços a contratar. A ideia é a de que o consumidor gaste menos por algo que, de qualquer modo, só usaria por um tempo curto. E não precisa se preocupar com um trambolho quando não está usando. É o caso dos serviços de aluguel de carro, como ZipCar e Car2Go: o usuário não precisa se preocupar em achar vaga, pagar IPTU ou fazer a revisão.
A redução dos desperdícios e o incentivo ao reúso levaram pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais (Iddri), de Paris, a se perguntar se a economia colaborativa tem uma tendência inata à sustentabilidade. Afinal, uma das justificativas para as cidades adotarem, por exemplo, sistemas de compartilhamento de bicicletas – a primeira foi a francesa Lyon – é o controle da emissão de poluentes. Os pesquisadores Damien Demailly e Anne-Sophie Novel concluíram que o potencial é grande: com uma boa administração de bens compartilháveis, a produção doméstica de lixo poderia cair 20% e o orçamento das famílias ser reduzido em 7% . Mas o potencial sustentável da colaboração só será atingido, eles afirmam, se houver um marco regulatório eficaz.
Em todos esses campos, um ponto comum é fundamentar-se na confiança e na reputação. Usuários do Airbnb, do Uber ou do Prosper são avaliados uns pelos outros; os que recebem boas avaliações conseguem fazer mais conexões e, assim, prosperam. A filosofia por trás das avaliações é recuperar o sentido da confiança, fundamental para o funcionamento de qualquer economia, mas que andava abalada pelo menos desde a crise de 2008. Assim, a reputação tomaria o lugar da regulação – sobretudo estatal – como garantia de que os participantes das transações agem honestamente e com responsabilidade.
Reputação e regulação
Mas há sinais de que a mera reputação não basta. Casos envolvendo o Uber – assédio sexual; um seguro que não cobre atividades comerciais – e o Airbnb – sublocação irregular; abuso por parte dos locatários – mostram que pode ser necessário criar um ambiente regulatório para a economia colaborativa. Trebor Scholz, professor de mídia e cultura na nova-iorquina New School for Social Research, chama atenção para o fato de que a nova economia implica novas formas de trabalho, que, sem regulação, podem se tornar predatórias [2].
[2] Saiba mais
“Tudo que se torna digital pode ser explorado. Coisas como carros autoguiados, companhias de táxi baseadas em aplicativos e sistemas de crowdsourcing podem ser benéficos, mas também implicam vulnerabilidades para trabalhadores”, argumenta Scholz. “O digital permite novos modelos de negócios, novas cadeias de extração de valor e formas de divisão do trabalho, muitas das quais estão obstruindo seu potencial humanizador e emancipatório, ao mesmo tempo que comprometem a seguridade social.”
Scholz lembra também que grande parte desses negócios apoia-se em infraestrutura já existente, gerando renda através da otimização do uso e nada mais. Ao menos por enquanto, a economia colaborativa baseia-se, em grande medida, na boa e velha economia tradicional. E Kaufman argumenta que a lógica que regeu até hoje a economia industrial começa a ser superada. A pesquisadora cita a convergência entre o ato de produzir e o de consumir, além das perspectivas oferecidas por impressoras 3D e os nascentes projetos de geração e distribuição individualizada de energia, favorecida pelos chamados smart grids [3], para afirmar que as transformações da economia colaborativa desafiam “o modus operandi da economia industrial”.
[3] O smart grid é uma tecnologia que permite às residências gerar e trocar energia elétrica de acordo com a necessidade
De fato, a realidade peer-to-peer há muito deixou de ser assunto de transferências de arquivos de mídia. Já é possível, por exemplo, encontrar bens de uso corrente sendo fabricados colaborativamente, usando impressoras 3D ou em laboratórios de fabricação comunitários (os FabLabs). Essas impressoras são um dos caminhos pelos quais os novos modelos econômicos transbordam o digital para ocupar o mundo físico.
Em 2012, o jornalista e empresário Chris Anderson lançou o livro Makers, em que a produção de bens físicos através de tecnologias digitais é tratada como uma nova revolução industrial, porque as novidades tecnológicas liberam o “excedente cognitivo” de uma multidão de indivíduos que, até então, apareciam como meros consumidores. Por exemplo, o engenheiro Joshua Pearce, da Universidade de Tecnologia de Michigan, acredita que o chamado open-source design [4] está se tornando um caminho viável para tornar a agricultura sustentável ao redor do mundo, facilitando a implantação de lavouras orgânicas. Pearce lembra que um terço do cultivo orgânico ocorre em países em desenvolvimento e, para os agricultores dessas regiões, a aquisição de maquinário por open-source design pode representar uma significativa redução de custos.
[4] É a distribuição livre e on-line do desenho industrial, com a qual alguém pode criar um novo projeto de máquina, móvel ou o que for e permitir sua reprodução
Por trás da interação direta entre pessoas, ativistas como o italiano Franco Berardi e filósofos como o francês Bernard Stiegler enxergam uma automatização das relações interpessoais. Embora nem sempre seja fácil notar, muitos dos encontros colaborativos são mediados por algoritmos controlados por empresas, cujo modo de funcionamento nem sempre é explícito. Por isso iniciativas como a Open Source Initiative incentivam o uso de software de código aberto.
A combinação de tecnologias da comunicação, novas fontes de energia e revoluções do comportamento levou o sociólogo americano Jeremy Rifkin a afirmar que estamos entrando na “economia do custo marginal zero”. É o caso de bens digitais: cada cópia nova de um arquivo sai praticamente de graça, de modo que ele pode ser livremente distribuído pelo mundo, em que pesem as questões de propriedade intelectual.
Para Rifkin, o grande motor da nova revolução econômica é a internet das coisas, que conecta bilhões de objetos físicos à rede (hoje, algo em torno de 11 bilhões no mundo; Rifkin estima que serão 100 bilhões em 2030), permitindo que sejam administrados com custo baixíssimo. “Centenas de milhões de pessoas estão transferindo pedacinhos de suas vidas dos mercados capitalistas para o mundo comum e colaborativo global”, escreve Rifkin.
Com efeito, a economia da colaboração também recuperou um antigo conceito econômico: os “comuns”. Na cultura digital, é cada vez mais frequente o uso das licenças Creative Commons, que permitem modular o nível de reserva da propriedade intelectual. Mas os comuns referem-se a tudo que não é propriedade individual nem é consumido individualmente: é o que pertence a todos, ao menos em tese, como o ar, em certas sociedades a terra e, no caso do Creative Commons, também o conhecimento [5].
[5] Mais em creativecommons. A Página22 é adepta da licença
Na tradição do pensamento econômico, a propriedade comum costuma ser considerada ineficiente, a ponto de conduzir à chamada tragédia dos comuns. O argumento é que os agentes econômicos têm incentivos para esgotar os bens comuns, principalmente a terra, porque competem entre si mas não se sentem responsáveis pelo coletivo. Mas a economista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel de Economia em 2009, demonstrou que a tragédia dos comuns não é tão trágica quanto parece. Ao contrário, os usuários de um bem comum sempre encontram meios de cooperar para administrá-lo satisfatoriamente para todos, contanto que se sintam em contato próximo com ele.
Seguidores de Elinor Ostrom procuram estender a lógica dos comuns à economia global. O jurista Brett Frischmann, autor de Infrastructure: The social value of shared resources, acredita que o exemplo da administração de recursos naturais a partir da noção de commons pode ser um ponto de partida para formular as políticas públicas e as legislações que organizarão o uso das ferramentas da nova economia, além das relações de produção e trabalho. E, quando os conceitos de comuns, colaboração e cooperação estiverem servindo de base para a formulação de marcos legais, estará claro que a economia da colaboração veio para ficar.
GLOSSÁRIO
Alguns verbetes do universo colaborativo usados ao longo desta edição:Comuns – Originalmente, os commons, ou comuns, designam recursos compartilhados pela sociedade, como o ar, a terra e o conhecimento. Na internet, o termo ganhou um cunho cultural e político, fundando novas formas de propriedade intelectual, como as propostas pela organização não governamental Creative Commons.
Consumo colaborativo – Em vez de comprar um bem que será pouco usado, é possível alugá-lo, tomá-lo emprestado ou trocá-lo com desconhecidos. Do compartilhamento de carros à livre doação, o acesso aos serviços é mais importante que a posse dos bens.
Crowdsourcing, crowdfunding – Multidões digitais e anônimas viraram fonte de conteúdo e financiamento. Sites como a Wikipédia são crowdsourced: recebem conteúdo da multidão. Sites como o Catarse são plataformas de crowdfunding, o financiamento coletivo.
DIY, FabLabs, Makers – Do-it-yourself, fabrication laboratory e movimento maker são vertentes de novos modos de produção usando tecnologias digitais. Os FabLabs são pequenas oficinas que se dizem capazes de fazer “quase qualquer coisa”.
Hackerspaces – Assim como os Fablabs, são espaços de encontro onde as pessoas trocam experiências e podem trabalhar juntas em projetos digitais. Também são espaços de aprendizado, com workshops e cursos.
Impressoras 3D – Com esses dispositivos, capazes de imprimir objetos cada vez mais complexos a partir de arquivos transmitidos pela internet, é possível, por exemplo, transmitir instruções para criar bens de consumo ou ferramentas.
Internet das coisas – Aos poucos, os objetos do dia a dia vão sendo conectados à rede, enviando dados sobre seu uso para os algoritmos que regem sua gestão. A administração de fluxos e estoques, por exemplo, fica mais eficiente.
Moedas complementares – Dos clubes de troca aos algoritmos conhecidos como criptomoedas (por exemplo, Bitcoin), buscam escapar à instabilidade das moedas oficiais, além de promover trocas comunitárias e evitar as taxas dos bancos.
P2P – Corruptela de peer-to-peer, ou a relação direta entre membros de uma rede, sem passar por uma instância central. Usada para referir-se a tecnologias digitais, como torrents (extensão que permite a transferência de arquivos entre usuários), também designa redes de solidariedade no mundo real.
Wiki – Criada por Ward Cunningham, a tecnologia da Wikipédia é simples: consiste numa aplicação de texto com código fácil, que permite adição, supressão e modificação por qualquer pessoa. Na língua havaiana, wiki significa “ligeiro”.
Uber, Airbnb, Prosper – Essas empresas estão entre as mais bem-sucedidas da economia colaborativa visando o lucro. Por meio de uma plataforma, permitem que os usuários interajam e negociem de forma direta serviços de transporte, de hospedagem e financeiros, respectivamente.