Historicamente, os cultos animistas foram – e são – perseguidos pelas religiões majoritárias. Ainda assim, resistem e mantêm viva a mensagem de que a natureza precisa ser encarada como algo sagrado
Por Fábio Rodrigues
A crise ambiental está debilitando o axé [1] e matando o sagrado”, afirma o teólogo especializado em religiões de origem afro e presidente da Associação de Teólogos e Teólogas de Religiões de Matriz Africana e Indígena (Atrai), Jayro Pereira de Jesus, com tom de voz preocupado. Para ele, e outros tantos que seguem religiões ditas animistas [2], a maneira destrutiva com que temos nos relacionado com a natureza é nada menos que uma forma de deicídio – a expressão é, normalmente, usada em referência à execução de Jesus na cruz, mas significa “matar Deus”.
[1] Palavra no idioma iorubá que pode ser traduzida como força ou energia. Para os cultos de matriz africana, designa um tipo de energia espiritual que sustenta os terreiros e cultos
[2] Conceito clássico da Antropologia usado para descrever crenças onde não existe uma distinção entre o mundo espiritual e o material. Para elas, o mundo – especialmente a natureza – estaria imbuído de espíritos
Isso expõe um problema – geralmente interpretado por suas implicações mais práticas – em outra ordem de magnitude. Não que a situação já não fosse grave, mas há algo especialmente dramático em considerar que não estamos só bagunçando o planeta onde vivemos, mas toda a ordem cósmica, segundo a visão religiosa.
Também torna mais sombria a percepção de que o Brasil vive uma onda de intolerância religiosa que faz a vida dos seguidores de cultos mais ligados à natureza não apenas mais difícil, mas até mais perigosa. Em meados de junho, uma menina de 11 anos foi atingida com uma pedra quando saía, acompanhada por familiares, de um culto em um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro. Antes do ataque, a família relata que foi insultada por dois homens, ambos na faixa dos 20 anos, com frases de cunho religioso.
Esse não é um caso isolado na avaliação do coordenador-geral do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Alexandre Brasil. Desde que foi criado, em 2011, um serviço de denúncias sobre violações de direitos humanos (Disque 100), já foram registrados 543 casos de discriminação religiosa, até fevereiro passado. O número põe em xeque a imagem de tolerância que o Brasil construiu em torno de si.
Pereira de Jesus conta que viu a situação mudar para pior. Nascido e criado na Ilha de Itaparica – na Grande Salvador, Bahia –, ele diz que dentro de sua própria família conviviam, em razoável harmonia, parentes que professavam a fé nos deuses que haviam atravessado o Atlântico nos porões dos navios negreiros juntamente com seus ancestrais e outros que haviam se convertido à Igreja Batista. “E eu nunca os vi se digladiando por isso”, relembra.
Não que essa paz fosse estável ou generalizada: o teólogo lembra que cultos da matriz africana e indígena sempre tiveram que lidar com perseguições e desrespeitos, mas que as agressões têm crescido em virulência. “Acho que dá para dizer que, no passado, a ‘intolerância era mais tolerante’”, analisa. “O que temos são líderes religiosos que atribuem abertamente ao diabo problemas do dia a dia e, depois, apontam para os terreiros e dizem que é onde o diabo está”, reclama.
Alexandre Brasil atribui parte dessa tensão a um processo que ele chama de “destradicionalização” da religiosidade brasileira. “É importante lembrar que, até meados do século passado, a população brasileira era praticamente toda católica”, afirma.
Já na opinião da facilitadora nacional da Rede Ecumênica da Juventude (Reju), Edoarda Scherer, essa nova situação escancarou problemas já existentes. “O que se constata é resultado de uma intolerância que sempre existiu no Brasil, mas que, durante séculos, esteve velada pelo estereótipo de que o povo brasileiro é pacífico e livre de preconceitos”, diz.
“Tem coisas gravíssimas acontecendo. Voltamos aos tempos das missões”, alarma-se o educador Sérgio Junqueira, fundador do Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER), que há 15 anos estuda os impactos da religião no ensino brasileiro. O que ele descreve é coerente com um aumento na intensidade dos conflitos de ordem religiosa. “Temos estudantes e professores querendo usar o espaço de ensino para catequizar, fazer Jesus ser conhecido e amado. As pessoas não estão respeitando quem crê em outra coisa ou simplesmente não quer crer. Sinto que hoje tem um movimento para insuflar isso”, descreve.
Felizmente, tem gente empenhada em desarmar essa bomba. Do lado do governo, há o esforço do próprio Comitê Nacional de Diversidade Religiosa na formulação de políticas de valorização do respeito à diversidade religiosa e disseminação da cultura da paz. Do lado da sociedade civil, há uma multiplicidade de atores envolvidos na questão. “O que propomos para o movimento ecumênico é o diálogo. Se as problemáticas forem enfrentadas ao mesmo tempo, a garantia de direitos será conjunta”, pontua Edoarda Scherer.
Raízes antropocêntricas
A predominância da matriz judaico-cristã trouxe impactos não apenas à diversidade, mas também teria reforçado uma visão antropocêntrica, moldando a nossa relação com o mundo natural. O primeiro a externar publicamente essa ideia foi professor da Universidade da Califórnia, Lynn White Jr. Em março de 1967, ele publicou na respeitadíssima Science um curto mas influente ensaio chamado The Historical Roots of Our Ecological Crisis (As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica, em tradução literal), no qual defende que a crise ambiental está enraizada na narrativa judaico-cristã da criação. “Deus planejou toda [a criação] explicitamente para o comando e benefício do homem: nada na criação física tem outro propósito se não o servir. (…) O cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo já viu”, opina o autor.
Embora, de forma geral, concorde com o acadêmico americano, o psicólogo e diretor da União Planetária, Marco Aurélio Bilibio, ressalta que pode não ser justo debitar toda fatura na conta das tradições judaico-cristãs. Séculos antes do nascimento de Jesus de Nazaré, os filósofos da Grécia Clássica já haviam colocado na mesa a ideia da supremacia da razão que – para o bem e para o mal – acabaria colocando o Ocidente no rumo da revolução científico-tecnológica que configurou o mundo atual. “Os gregos também tinham um discurso que não reconhecia a conexão entre o ser humano e outras espécies”, pontua.
Em que pese esta não ser uma invenção cristã, a religião ocidental ajudou a alimentá-la. Para o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, Deyve Redyson, esses cultos substituíram a natureza por uma narrativa baseada na perspectiva soteriológica [3]. “Essa é uma especificidade judaico-cristã que vem do fato de elas serem religiões proféticas, em que a revelação divina vem para substituir a natureza”, completa.
[3] Soteriologia é o ramo da Teologia que se dedica especificamente às condições necessárias para a salvação humana
Enquanto no Ocidente a divisão estrita entre o humano e o natural ia se consolidando como paradigma dominante, em outros cantos do globo os limites eram mais maleáveis. Pereira de Jesus, por exemplo, lembra que, para as religiões africanas, as duas coisas estavam imbricadas. “Não havia essa visão de que o humano e a natureza são coisas diferentes”, analisa.
Algo similar pode ser dito sobre os povos nativos das Américas. “Eles compartilham [com os cultos de origem africana] o mesmo padrão xamânico no qual a natureza não está fragmentada entre matéria e espírito”, explica a antropóloga Lucia Rangel, que atua como assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – órgão ligado à Igreja Católica que trabalha com povos indígenas desde os anos 70.
É possível especular que a ausência de um fracionamento tão nítido entre o sagrado e a natureza ajude a refrear o ímpeto predatório, mas dificilmente dá para afirmar que isso seja determinante. “Se fosse assim, o taoísmo deveria fazer da China um dos países ambientalmente mais coerentes do planeta”, comenta Bilibio, que acha que os desafios socioambientais do mundo moderno ficaram complexos demais para a capacidade de resposta das culturas tradicionais. “A destruição ambiental vem da ideologia econômica baseada em uma visão que coloca o ser humano como ator principal e as outras espécies não têm importância alguma”, reforça.
A professora do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Maria Helena Villas Bôas Concone relativiza, ao lembrar que a separação entre cristianismo e natureza jamais foi absoluta. Segundo ela, um fenômeno tipicamente católico, as aparições marianas, costumam envolver ambientes e elementos naturais: Nossa Senhora de Lourdes, por exemplo, surgiu numa gruta e a imagem de Nossa Senhora Aparecida emergiu do Rio Paraíba.
Até Lynn White Jr. admite que o cristianismo não é totalmente alheio à natureza, ao destacar a influência de São Francisco de Assis e seu Cântico das Criaturas. “Francisco tentou depor o homem de sua monarquia sobre a criação e estabelecer uma democracia de todas as criaturas de Deus”, diz no ensaio publicado na Science, ao propor que a doutrina franciscana poderia levar a um cristianismo mais sensível em relação ao meio ambiente.
Palavra e espada
Talvez essa “tendência antropocêntrica” não tivesse adquirido as proporções catastróficas que tem hoje se outro elemento não tivesse entrado em cena: o missionarismo. Somado ao ciclo de grandes navegações europeias do século XV, colaborou para espalhar a mentalidade ocidental e, consequentemente, sua religião mundo afora.
Evidentemente, é difícil determinar o quanto os motivos religiosos foram usados como instrumento de dominação geopolítica e econômica dos exploradores europeus. “Quando a armada portuguesa chegou aqui, havia quase um franchising da Igreja [Católica]. Os recursos financeiros eram da Coroa e os recursos educacionais da Igreja”, opina o pesquisador do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans), Luiz Eduardo Berni, apontando que a educação foi a ferramenta para cristalizar a noção da supremacia ocidental.
O historiador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Carlos André Cavalcanti ressalta que, antes de sair atribuindo culpas, é necessário entender corretamente o processo que “desencaminhou as religiões ocidentais”. “O cristianismo nasce com uma moral voltada para os excluídos, na qual a conversão se dá pelo convencimento. Mas, na História, o que se vê é que a palavra acaba dando lugar à espada”, afirma. Segundo ele, a chave para entender essa mudança está ligada à relação entre o clero e o Império Romano. “Os césares chamaram o clero para dentro do palácio. Com a queda de Roma, o cristianismo chamou para si o controle do mundo”, pondera.
“Foi esse empoderamento que levou a Igreja à intolerância que, mais tarde, fez surgir a Inquisição”, sintetiza [veja quadro abaixo]. “A motivação inicial de qualquer religião é sempre a perplexidade do homem perante a morte, mas aí chegam os grupos sociais que passam a usá-la com um instrumento de poder”, prossegue.
Mas, uma vez instrumentalizado, Maria Helena Concone afirma que o cristianismo foi, sem dúvida, uma força de conquista: “Junto com as armas, promoveu a desqualificação das formas religiosas dos derrotados”, analisa.
Segundo último censo do IBGE, a porção de brasileiros que se declara evangélica quadruplicou desde os anos 1970, chegando a 22% em 2010
É nessa sobreposição entre a percepção subjetiva de mandato divino a cumprir e um projeto de poder material que Pereira de Jesus enxerga a gênese da noção de que a Europa teria a responsabilidade de civilizar o mundo. “Essa ideia de um projeto civilizador permitiu construir um imaginário onde povos indígenas e africanos são o seu contrário [da civilização]. Na construção dessa dicotomia, instituída a partir da visão cristã do bem e do mal, os povos conquistados passam a desempenhar o papel do ‘mal’”, explica. É um sentimento que, até hoje, alimenta os surtos de desrespeito e violência.
Apesar de tudo, Marco Aurélio Bilibio está esperançoso. Segundo ele, uma nova geração vem vindo imbuída de uma espiritualidade não institucionalizada, na qual o sentimento religioso se mistura à preocupação ambiental. “São pessoas inspiradas no xamanismo, nas religiões orientais e em São Francisco de Assis. Elas não olham a natureza como um simples objeto, mas têm um sentimento muito profundo de ligação com ela”, completa.
Talvez ainda haja tempo de evitar o deicídio do qual falávamos no início.
No creo em las brujas
Na visão popular, a Inquisição é sinônimo de caça às bruxas. Essa é uma verdade parcial, diz o professor Carlos André Cavalcanti, autor do livro No Imaginário da Intolerância, que trata justamente desse período. “A Inquisição portuguesa que atuou no Brasil, por exemplo, perseguiu principalmente os judeus convertidos chamados cristãos-novos”, explica.
Segundo o professor da UFPB, após a queda do Império Romano no fim do século V, a Igreja Católica teve de se reinventar e encontrou uma nova vertente no endurecimento da moral sexual. “Essa vertente era algo secundário, mas passou a ser central. A grande vítima desse processo foi a mulher, que passou a ser demonizada, vista como uma ameaça e como alguém que precisa ser controlado. A figura da bruxa é o suprassumo dessa invenção”, completa Cavalcanti.
A aposta na misoginia permitiu que a Igreja ganhasse duplamente: primeiro, eles podiam perseguir as curandeiras das aldeias medievais, em um esforço consciente para massacrar o que ainda restava dos cultos pagãos da antiguidade; em segundo lugar, reforçava a imagem de pureza que o celibato clerical tentava transmitir.
Nem tudo foi negativo. Os Tribunais do Santo Ofício formalizaram diversos elementos que até hoje fazem parte do Direito, entre os quais a necessidade de que a acusação reúna evidências para provar a culpa do acusado. Isso rompeu com a prática medieval do ordálio, pela qual o resultado de um julgamento era determinado quase de forma aleatória.[:en]Historicamente, os cultos animistas foram – e são – perseguidos pelas religiões majoritárias. Ainda assim, resistem e mantêm viva a mensagem de que a natureza precisa ser encarada como algo sagrado
A crise ambiental está debilitando o axé [1] e matando o sagrado”, afirma o teólogo especializado em religiões de origem afro e presidente da Associação de Teólogos e Teólogas de Religiões de Matriz Africana e Indígena (Atrai), Jayro Pereira de Jesus, com tom de voz preocupado. Para ele, e outros tantos que seguem religiões ditas animistas [2], a maneira destrutiva com que temos nos relacionado com a natureza é nada menos que uma forma de deicídio – a expressão é, normalmente, usada em referência à execução de Jesus na cruz, mas significa “matar Deus”.
[1] Palavra no idioma iorubá que pode ser traduzida como força ou energia. Para os cultos de matriz africana, designa um tipo de energia espiritual que sustenta os terreiros e cultos
[2] Conceito clássico da Antropologia usado para descrever crenças onde não existe uma distinção entre o mundo espiritual e o material. Para elas, o mundo – especialmente a natureza – estaria imbuído de espíritos
Isso expõe um problema – geralmente interpretado por suas implicações mais práticas – em outra ordem de magnitude. Não que a situação já não fosse grave, mas há algo especialmente dramático em considerar que não estamos só bagunçando o planeta onde vivemos, mas toda a ordem cósmica, segundo a visão religiosa.
Também torna mais sombria a percepção de que o Brasil vive uma onda de intolerância religiosa que faz a vida dos seguidores de cultos mais ligados à natureza não apenas mais difícil, mas até mais perigosa. Em meados de junho, uma menina de 11 anos foi atingida com uma pedra quando saía, acompanhada por familiares, de um culto em um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro. Antes do ataque, a família relata que foi insultada por dois homens, ambos na faixa dos 20 anos, com frases de cunho religioso.
Esse não é um caso isolado na avaliação do coordenador-geral do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Alexandre Brasil. Desde que foi criado, em 2011, um serviço de denúncias sobre violações de direitos humanos (Disque 100), já foram registrados 543 casos de discriminação religiosa, até fevereiro passado. O número põe em xeque a imagem de tolerância que o Brasil construiu em torno de si.
Pereira de Jesus conta que viu a situação mudar para pior. Nascido e criado na Ilha de Itaparica – na Grande Salvador, Bahia –, ele diz que dentro de sua própria família conviviam, em razoável harmonia, parentes que professavam a fé nos deuses que haviam atravessado o Atlântico nos porões dos navios negreiros juntamente com seus ancestrais e outros que haviam se convertido à Igreja Batista. “E eu nunca os vi se digladiando por isso”, relembra.
Não que essa paz fosse estável ou generalizada: o teólogo lembra que cultos da matriz africana e indígena sempre tiveram que lidar com perseguições e desrespeitos, mas que as agressões têm crescido em virulência. “Acho que dá para dizer que, no passado, a ‘intolerância era mais tolerante’”, analisa. “O que temos são líderes religiosos que atribuem abertamente ao diabo problemas do dia a dia e, depois, apontam para os terreiros e dizem que é onde o diabo está”, reclama.
Alexandre Brasil atribui parte dessa tensão a um processo que ele chama de “destradicionalização” da religiosidade brasileira. “É importante lembrar que, até meados do século passado, a população brasileira era praticamente toda católica”, afirma.
Já na opinião da facilitadora nacional da Rede Ecumênica da Juventude (Reju), Edoarda Scherer, essa nova situação escancarou problemas já existentes. “O que se constata é resultado de uma intolerância que sempre existiu no Brasil, mas que, durante séculos, esteve velada pelo estereótipo de que o povo brasileiro é pacífico e livre de preconceitos”, diz.
“Tem coisas gravíssimas acontecendo. Voltamos aos tempos das missões”, alarma-se o educador Sérgio Junqueira, fundador do Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER), que há 15 anos estuda os impactos da religião no ensino brasileiro. O que ele descreve é coerente com um aumento na intensidade dos conflitos de ordem religiosa. “Temos estudantes e professores querendo usar o espaço de ensino para catequizar, fazer Jesus ser conhecido e amado. As pessoas não estão respeitando quem crê em outra coisa ou simplesmente não quer crer. Sinto que hoje tem um movimento para insuflar isso”, descreve.
Felizmente, tem gente empenhada em desarmar essa bomba. Do lado do governo, há o esforço do próprio Comitê Nacional de Diversidade Religiosa na formulação de políticas de valorização do respeito à diversidade religiosa e disseminação da cultura da paz. Do lado da sociedade civil, há uma multiplicidade de atores envolvidos na questão. “O que propomos para o movimento ecumênico é o diálogo. Se as problemáticas forem enfrentadas ao mesmo tempo, a garantia de direitos será conjunta”, pontua Edoarda Scherer.
Raízes antropocêntricas
A predominância da matriz judaico-cristã trouxe impactos não apenas à diversidade, mas também teria reforçado uma visão antropocêntrica, moldando a nossa relação com o mundo natural. O primeiro a externar publicamente essa ideia foi professor da Universidade da Califórnia, Lynn White Jr. Em março de 1967, ele publicou na respeitadíssima Science um curto mas influente ensaio chamado The Historical Roots of Our Ecological Crisis (As Raízes Históricas de Nossa Crise Ecológica, em tradução literal), no qual defende que a crise ambiental está enraizada na narrativa judaico-cristã da criação. “Deus planejou toda [a criação] explicitamente para o comando e benefício do homem: nada na criação física tem outro propósito se não o servir. (…) O cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo já viu”, opina o autor.
Embora, de forma geral, concorde com o acadêmico americano, o psicólogo e diretor da União Planetária, Marco Aurélio Bilibio, ressalta que pode não ser justo debitar toda fatura na conta das tradições judaico-cristãs. Séculos antes do nascimento de Jesus de Nazaré, os filósofos da Grécia Clássica já haviam colocado na mesa a ideia da supremacia da razão que – para o bem e para o mal – acabaria colocando o Ocidente no rumo da revolução científico-tecnológica que configurou o mundo atual. “Os gregos também tinham um discurso que não reconhecia a conexão entre o ser humano e outras espécies”, pontua.
Em que pese esta não ser uma invenção cristã, a religião ocidental ajudou a alimentá-la. Para o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, Deyve Redyson, esses cultos substituíram a natureza por uma narrativa baseada na perspectiva soteriológica [3]. “Essa é uma especificidade judaico-cristã que vem do fato de elas serem religiões proféticas, em que a revelação divina vem para substituir a natureza”, completa.
[3] Soteriologia é o ramo da Teologia que se dedica especificamente às condições necessárias para a salvação humana
Enquanto no Ocidente a divisão estrita entre o humano e o natural ia se consolidando como paradigma dominante, em outros cantos do globo os limites eram mais maleáveis. Pereira de Jesus, por exemplo, lembra que, para as religiões africanas, as duas coisas estavam imbricadas. “Não havia essa visão de que o humano e a natureza são coisas diferentes”, analisa.
Algo similar pode ser dito sobre os povos nativos das Américas. “Eles compartilham [com os cultos de origem africana] o mesmo padrão xamânico no qual a natureza não está fragmentada entre matéria e espírito”, explica a antropóloga Lucia Rangel, que atua como assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – órgão ligado à Igreja Católica que trabalha com povos indígenas desde os anos 70.
É possível especular que a ausência de um fracionamento tão nítido entre o sagrado e a natureza ajude a refrear o ímpeto predatório, mas dificilmente dá para afirmar que isso seja determinante. “Se fosse assim, o taoísmo deveria fazer da China um dos países ambientalmente mais coerentes do planeta”, comenta Bilibio, que acha que os desafios socioambientais do mundo moderno ficaram complexos demais para a capacidade de resposta das culturas tradicionais. “A destruição ambiental vem da ideologia econômica baseada em uma visão que coloca o ser humano como ator principal e as outras espécies não têm importância alguma”, reforça.
A professora do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Maria Helena Villas Bôas Concone relativiza, ao lembrar que a separação entre cristianismo e natureza jamais foi absoluta. Segundo ela, um fenômeno tipicamente católico, as aparições marianas, costumam envolver ambientes e elementos naturais: Nossa Senhora de Lourdes, por exemplo, surgiu numa gruta e a imagem de Nossa Senhora Aparecida emergiu do Rio Paraíba.
Até Lynn White Jr. admite que o cristianismo não é totalmente alheio à natureza, ao destacar a influência de São Francisco de Assis e seu Cântico das Criaturas. “Francisco tentou depor o homem de sua monarquia sobre a criação e estabelecer uma democracia de todas as criaturas de Deus”, diz no ensaio publicado na Science, ao propor que a doutrina franciscana poderia levar a um cristianismo mais sensível em relação ao meio ambiente.
Palavra e espada
Talvez essa “tendência antropocêntrica” não tivesse adquirido as proporções catastróficas que tem hoje se outro elemento não tivesse entrado em cena: o missionarismo. Somado ao ciclo de grandes navegações europeias do século XV, colaborou para espalhar a mentalidade ocidental e, consequentemente, sua religião mundo afora.
Evidentemente, é difícil determinar o quanto os motivos religiosos foram usados como instrumento de dominação geopolítica e econômica dos exploradores europeus. “Quando a armada portuguesa chegou aqui, havia quase um franchising da Igreja [Católica]. Os recursos financeiros eram da Coroa e os recursos educacionais da Igreja”, opina o pesquisador do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans), Luiz Eduardo Berni, apontando que a educação foi a ferramenta para cristalizar a noção da supremacia ocidental.
O historiador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Carlos André Cavalcanti ressalta que, antes de sair atribuindo culpas, é necessário entender corretamente o processo que “desencaminhou as religiões ocidentais”. “O cristianismo nasce com uma moral voltada para os excluídos, na qual a conversão se dá pelo convencimento. Mas, na História, o que se vê é que a palavra acaba dando lugar à espada”, afirma. Segundo ele, a chave para entender essa mudança está ligada à relação entre o clero e o Império Romano. “Os césares chamaram o clero para dentro do palácio. Com a queda de Roma, o cristianismo chamou para si o controle do mundo”, pondera.
“Foi esse empoderamento que levou a Igreja à intolerância que, mais tarde, fez surgir a Inquisição”, sintetiza [veja quadro abaixo]. “A motivação inicial de qualquer religião é sempre a perplexidade do homem perante a morte, mas aí chegam os grupos sociais que passam a usá-la com um instrumento de poder”, prossegue.
Mas, uma vez instrumentalizado, Maria Helena Concone afirma que o cristianismo foi, sem dúvida, uma força de conquista: “Junto com as armas, promoveu a desqualificação das formas religiosas dos derrotados”, analisa.
Segundo último censo do IBGE, a porção de brasileiros que se declara evangélica quadruplicou desde os anos 1970, chegando a 22% em 2010
É nessa sobreposição entre a percepção subjetiva de mandato divino a cumprir e um projeto de poder material que Pereira de Jesus enxerga a gênese da noção de que a Europa teria a responsabilidade de civilizar o mundo. “Essa ideia de um projeto civilizador permitiu construir um imaginário onde povos indígenas e africanos são o seu contrário [da civilização]. Na construção dessa dicotomia, instituída a partir da visão cristã do bem e do mal, os povos conquistados passam a desempenhar o papel do ‘mal’”, explica. É um sentimento que, até hoje, alimenta os surtos de desrespeito e violência.
Apesar de tudo, Marco Aurélio Bilibio está esperançoso. Segundo ele, uma nova geração vem vindo imbuída de uma espiritualidade não institucionalizada, na qual o sentimento religioso se mistura à preocupação ambiental. “São pessoas inspiradas no xamanismo, nas religiões orientais e em São Francisco de Assis. Elas não olham a natureza como um simples objeto, mas têm um sentimento muito profundo de ligação com ela”, completa.
Talvez ainda haja tempo de evitar o deicídio do qual falávamos no início.
No creo em las brujas
Na visão popular, a Inquisição é sinônimo de caça às bruxas. Essa é uma verdade parcial, diz o professor Carlos André Cavalcanti, autor do livro No Imaginário da Intolerância, que trata justamente desse período. “A Inquisição portuguesa que atuou no Brasil, por exemplo, perseguiu principalmente os judeus convertidos chamados cristãos-novos”, explica.
Segundo o professor da UFPB, após a queda o Império Romano no fim do século V, a Igreja Católica teve de se reinventar e encontrou uma nova vertente no endurecimento da moral sexual. “Essa vertente era algo secundário, mas passou a ser central. A grande vítima desse processo foi a mulher, que passou a ser demonizada, vista como uma ameaça e como alguém que precisa ser controlado. A figura da bruxa é o suprassumo dessa invenção”, completa Cavalcanti.
A aposta na misoginia permitiu que a Igreja ganhasse duplamente: primeiro, eles podiam perseguir as curandeiras das aldeias medievais, em um esforço consciente para massacrar o que ainda restava dos cultos pagãos da antiguidade; em segundo lugar, reforçava a imagem de pureza que o celibato clerical tentava transmitir.
Nem tudo foi negativo. Os Tribunais do Santo Ofício formalizaram diversos elementos que até hoje fazem parte do Direito, entre os quais a necessidade de que a acusação reúna evidências para provar a culpa do acusado. Isso rompeu com a prática medieval do ordálio, pela qual o resultado de um julgamento era determinado quase de forma aleatória.