Por Bruno Toledo
No tabuleiro estratégico do Oriente Médio atual, uma das peças mais recentes – e violentas – do ‘jogo geopolítico’ é o autointitulado Estado Islâmico (EI), um grupo jihadista salafista liderado por fundamentalistas islâmicos sunitas, que ocupa vastos territórios ao longo da fronteira entre o Iraque e a Síria, e que “governa” diretamente quase dez milhões de pessoas. Desde o começo de 2014, o EI vem ganhando terreno, aproveitando o vácuo de poder resultante do sangrento confronto civil que destrói a Síria desde 2011 e as dificuldades do governo iraquiano pós-ocupação norte-americana (2003-2012) em garantir controle sobre o seu próprio território.
Caracterizado pela extrema violência empregada na sua luta pela construção de um “califado global”, o EI é considerado uma das principais ameaças à segurança internacional, em especial nos Estados Unidos, na Europa e na África muçulmana. Grupos na Nigéria (em particular, o famigerado Boko Haram) e na Líbia se alinharam ao EI, expandindo sua influência efetiva para além dos territórios diretamente ocupados. Além disso, o EI tem avançado bastante na abordagem e cooptação de muçulmanos descontentes na Europa e nos EUA, particularmente os mais jovens, que acabam atraídos pela rigidez e pelos propósitos “grandiosos” do grupo junto ao Islã.
Os fatores que explicam a emergência desse grupo são complexos e ainda não existem teorias consolidadas que respondam a todas as perguntas sobre o surgimento, o crescimento e a consolidação recente do Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Alguns motivos diretos são mais claros: o caos sírio resultante da guerra civil que se arrasta no país há quase cinco anos, que abriu espaço para a proliferação de grupos armados de diferentes matizes e motivações; e os desentendimentos históricos entre sunitas (minoria) e xiitas (maioria) no Iraque, catalisados pelas cicatrizes do regime sunita de Saddam Hussein (1979-2003) e pela falta de tato dos governos de maioria xiita que sucederam à administração provisória dos EUA no país, a partir de 2004. Junto com a violência decorrente das guerras locais, a situação securitária dramática desses países também piorou com as consequências econômicas de tais conflitos. Para alguns especialistas, os problemas econômicos vividos por essas populações (e o fracasso dos estados sírio e iraquiano em solucionar estes problemas) explicam em grande parte a grande aceitação que o EI possui nas comunidades sunitas.
No entanto, junto os problemas econômicos decorrente do conflito, um fator que pode nos ajudar a entender o cenário dramático que levou ao crescimento exponencial do EI nos últimos anos está distante das armas ou do petróleo que abundam na região: as mudanças climáticas. Ou melhor, a ocorrência de eventos climáticos extremos na região, que nos últimos anos reduziram dramaticamente a disponibilidade de água, um bem natural crucial numa região desértica como a do Iraque e da Síria.
Charles Strozier, professor de história da The City University of New York, e Kelly Berkell, pesquisadora do Center on Terrorism da John Jay College of Criminal Justice, foram os primeiros a destrinchar a relação entre clima e o crescimento massivo do Estado Islâmico nos últimos anos. Em artigo publicado em setembro passado no The Huffington Post, Strozier e Berkell lembram que a situação econômica na Síria começou a declinar a partir de 2006, com o começo de uma seca histórica que perdurou até meados de 2010. Na ocasião, a resposta do governo de Bashar Al-Asad foi bastante limitada, o que serviu para alimentar os primeiros descontentamentos.
De acordo com eles, a seca que precedeu o conflito armado na Síria se insere num padrão recente de estiagem persistente observado por cientistas do clima no Oriente Médio nas últimas décadas. Apenas na Síria, mais de 60% de seu território foi diretamente afetado, em especial o nordeste, principal região produtora de alimentos no país. Consequentemente, mais de 800 mil agricultores tiveram perdas consideráveis de safra entre 2006 e 2010, colocando em risco a segurança alimentar de mais de três milhões de pessoas que acabaram jogadas na extrema pobreza. Muitas famílias procuraram refúgio em torno de cidades como Aleppo, Damasco, Hama, Homs e Daraa – foi nesta última cidade que as tensões civis eclodiram na Síria, no começo de 2011, exatamente por causa do desabastecimento de água para a população. A resposta violenta do governo Assad a estes primeiros protestos conduziram o país para a espiral de destruição que resultou na guerra civil que ainda aflige a Síria.
No Iraque, a trajetória foi bastante similar. Durante a grande seca de 2006-2010, o país viveu o auge da insurgência contra as tropas norte-americanas e o governo iraquiano. Aproveitando as dificuldades enfrentadas por Washington e Bagdá em absorver os impactos dessa seca ao longo da fronteira ocidental do país, diversas facções insurgentes ganharam terreno e jogaram o país numa guerra civil violenta. A estabilização política veio apenas em meados de 2010, junto com as chuvas na região afetada pela seca. No entanto, o pacto político entre sunitas e xiitas não resistiu à retirada dos Estados Unidos no país, completada em 2012. Com a ruína desse pacto, o Estado Islâmico ganhou terreno junto às comunidades sunitas que desconfiavam do governo central liderado por xiitas. Ao ganhar terreno, uma das primeiras preocupações do EI foi assegurar o controle sobre os recursos hídricos das regiões ocupadas, junto com os valiosíssimos poços petrolíferos.
Para Frank Femia, do think tank norte-americano Center for Climate and Security, o avanço do Estado Islâmico no Iraque e na Síria nos dá indícios sobre o papel difuso das mudanças climáticas como fator para a ocorrência ou acirramento de conflitos armados. Em entrevista ao portal Slate em junho do ano passado, Femia reconhece que a escassez de recursos naturais na região torna as coisas ainda piores. “Organizações terroristas podem tentar controlar estes recursos e ganhar influência e poder. Você não pode dizer que as mudanças climáticas estão causando o EI, mas elas certamente possuem um papel na região”.
A mesma matéria da Slate aponta para um estudo publicado na revista científica Science em 2013 que aponta uma correlação forte entre altas temperaturas e instabilidade política (como guerras civis, revoltas, violência étnica), ainda que não cite uma razão que explique essa conexão. Um estudo anterior já tinha associado desidratação com desempenho cognitivo reduzido e altos índices de ansiedade.
De acordo com o relatório Global Risks 2015, lançado pelo Fórum Econômico Mundial em seu encontro mais recente, a falta de água é o maior fator de desestabilização global atual se considerarmos o tamanho do impacto, e o 8º em termos de probabilidade. Seu impacto pode ser maior do que o da disseminação de doenças infecciosas (como o vírus ebola) e das armas de destruição em massa, explica Regina Scharf em post publicado em fevereiro passado.
Para os especialistas em segurança, a questão climática já não é mais alheia às análises sobre cenários e perspectivas de conflito armado ao redor do mundo. Um relatório do Departamento de Defesa dos EUA publicado no ano passado já lista os impactos das mudanças climáticas como “ameaças multiplicadoras” à segurança internacional.
Para o Pentágono, esses impactos climáticos podem aumentar a frequência, a escala e a complexidade de missões militares futuras. Nesse contexto, o governo norte-americano considera que as mudanças climáticas, associadas a outras dinâmicas globais, podem exacerbar a escassez de água e aumentar os preços dos alimentos em regiões já críticas, agravando a situação alimentar, a pobreza, a degradação ambiental, e tensões políticas e sociais – ingredientes mais do que perfeitos para alimentar formas de violência, em particular, o terrorismo.