Por que é importante adotar uma postura crítica quanto ao uso da tecnologia no jornalismo e problematizar suas implicações na sociedade
POR MORENO CRUZ OSÓRIO*
Em 17 março de 2014, o jornalista do LA Times Ken Schwencke foi um dos primeiros a noticiar o terremoto de 4,4 graus que atingiu Los Angeles no início da manhã daquele dia. Isso porque, dois minutos após o fenômeno, ele recebeu um email informando que um texto sobre o tremor estava no sistema de publicação do jornal, pronto para ir ao ar. Mas quem apurou as informações, redigiu a notícia e avisou Schwencke? E em apenas dois minutos? Um algoritmo desenvolvido por ele próprio, chamado Quakebot. Quando o USGS, a autoridade geológica nos EUA, disponibilizou os dados do terremoto em seu site, o código os transformou em um texto noticioso e informou seu autor, que só teve o trabalho de publicar – após revisar, é claro.
O caso do Quakebot é paradigmático para pensarmos sobre a atuação de algoritmos na profissão. Quem escreveu a notícia do terremoto, Schwencke ou o Quakebot? Independentemente da resposta, se considerarmos a natureza do segundo, talvez a pergunta precisasse ser alterada para “quem” ou o “que” foi o responsável pela redação, pois a inclusão de um ator não humano impõe a necessidade de adequarmos a construção frasal para contemplá-lo.
Aliás, “o ‘que’ e ‘quem’ fazem jornalismo?”, é o que perguntam Alex Primo e Gabriela Zago em artigo sobre a atuação do não humano no jornalismo [1]. Para explorar a questão, os pesquisadores gaúchos adotam a perspectiva do sociólogo Bruno Latour, que defende a simetria entre humanos e não humanos na composição do social. A perspectiva de Latour oferece possibilidades atraentes para pensar a sociedade atual. Por outro lado, exige problematização à altura, pois implica mudanças de paradigmas na maneira de enxergar o mundo.
[1] Acesse o artigo (pago).
A necessidade de tal problematização talvez não seja tão evidente no exemplo do Quakebot. Afinal, o código de Schwencke apenas o livrou do “trabalho sujo” de redigir uma nota simples sobre um terremoto, algo banal para quem atua em Los Angeles. Mas a questão já é bem mais saliente quando o assunto é a atuação dos algoritmos do Facebook. O Facebook faz jornalismo quando os códigos por trás do News Feed escolhem as notícias que as pessoas veem ou deixam de ver? Zuckerberg e seus comandados dizem que não. Mas ainda é possível encarar o assunto de maneira tão simplista? Como considerar o código neutro quando ele atua como editor?
Diante dessas questões, não se deve encarar como natural a aceitação dos algoritmos (e da tecnologia como um todo) pelo jornalismo, mas ter em vista que os códigos são capazes de produzir efeitos não previstos. Porque parece não haver má-fé quando empresas de tecnologia dizem querer apenas melhorar a experiência para o usuário. O que há é uma incapacidade de compreensão (ou negação) de implicações inerentes a essa suposta melhora. Por isso a necessidade de desvelar aspectos não visíveis de determinadas tendências.
A perspectiva de Latour pode ser interessante para pensar a relação entre jornalismo e tecnologia. Nivelar o poder de ação de atores humanos e não humanos possibilitaria se não antever, ao menos estar mais atento à capacidade que algoritmos têm de transcender suas funções originais. E assim manter os humanos no controle, princípio fundamental para a sobrevivência do caráter humanista do jornalismo (e da sociedade).
Adotar uma postura como essa não é um processo natural. Exige que o jornalista vá “contra os fatos”, como diz a colega e professora Sylvia Moretzsohn. Ou seja, que o jornalismo desconstrua fatos que muitas vezes já vêm carregados de determinados vieses da sociedade. Para isso, permitam-me, a exemplo do texto da edição anterior, número 97, fazer referência à jornalista Emily Bell.
Um ano atrás, Bell fez um importante discurso no Reuters Institute for Journalism, em Londres. Na sua fala, a diretora do Tow Center for Digital Journalism, da Universidade Columbia, sublinhou a necessidade de o jornalismo estreitar relações com a tecnologia. Para isso, sugeriu três esforços: criar ferramentas que coloquem softwares a serviço do jornalismo, e não o contrário; discutir regulação e enfrentar monopólios; e mudar a abordagem a assuntos relacionados à tecnologia, minimizando a cobertura festiva ao estilo “fila de iPhone” e adotando uma postura mais crítica, procurando explicar esses novos sistemas de poder ao mundo.
Os três aspectos sugeridos por Bell chamam atenção para a necessidade de o jornalismo abraçar a tecnologia sem aceitá-la como algo fora de questionamento. É imperativo estar atento à capacidade dos algoritmos de ampliar o rol de atores capazes de produzir jornalismo. Ir contra os fatos, se for preciso, para manter os códigos a serviço da sociedade, como o Quakebot de Ken Schwencke.
*Jornalista e sócio fundador do Farol Jornalismo