POR FÁBIO RODRIGUES
O horizonte está coalhado de tecnologias emergentes que prometem dar início a transformações iguais ou até maiores do que as vividas nas últimas décadas
O futuro é nosso contemporâneo. Uma porção de coisas que, um dia, foram assunto para histórias de ficção científica está por aí há algum tempo. Durante anos a famosa cena do videofone foi um dos clichês favoritos de qualquer diretor que precisasse comunicar que sua história se passava em algum futuro distante qualquer. Pois a esmagadora maioria dessas imagens soa ridiculamente desengonçada, da mesma forma como nas datadas visões do futuro dos episódios de Os Jetsons.
Evidentemente, nem todos os sonhos hi-tech se realizaram. Mas, quando examinamos o horizonte, a paisagem que vemos se abrindo renova a promessa de que, um dia, chegaremos ao pacato idílio tecnológico que vêm nos prometendo desde que éramos crianças.
A economista venezuelana radicada na Inglaterra Carlota Pérez dedicou sua carreira ao estudo dos impactos que a emergência de novas tecnologias teve sobre a economia e acredita que a revolução iniciada com a eletrônica a partir da metade do século XX tem boas chances de nos conduzir a tempos mais suaves. Estudando saltos tecnológicos anteriores, ela percebeu um ciclo comum. Em suas primeiras décadas, todas levaram a economia a bolhas financeiras e, mais tarde, a crises agudas. Até aí, nenhuma surpresa para quem passou pelo crash das pontocom [1] no ano 2000. O interessante é o que vem depois: conforme essas tecnologias deixam seu nicho original e se difundem pela economia como um todo, elas criam “eras de ouro” nas quais o crescimento econômico é muito mais harmonioso e duradouro.
[1] Episódio caracterizado pela queda abrupta no valor das ações das empresas da primeira geração da internet – então apelidadas de pontocom –, levando muitas delas à falência
“A Era Vitoriana [2] na Inglaterra, a Belle Époque [3] francesa e o Pós-Guerra nos EUA trouxeram tempos melhores para seus países ao aproveitar a força de suas respectivas revoluções tecnológicas. Podemos estar diante de um quadro parecido”, afirma a economista. Em sua opinião, a turbulência atual seria um ponto de virada que poderia nos levar ao tão esperado “crescimento verde” [4].
[2] Corresponde ao reinado da Rainha Vitória (de 1837 a 1901), que marcou o apogeu do Império Britânico
[3] Expressão francesa que significa “bela época”, que vai do último quarto do século XIX até o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914
[4] Saiba mais
Não que Pérez acredite que possamos simplesmente relaxar e curtir o passeio enquanto as coisas se resolvem sozinhas. Para ela, a era de ouro não é um destino, mas um potencial que depende de políticas apropriadas. Coisa que tem faltado nos últimos tempos. “No momento, vivemos uma ‘era banhada a ouro’: uma camada de prosperidade sobre um mundo muito feio”, ironiza.
O medo dela é que, mantidas as atuais políticas de austeridade fiscal, os investidores continuem olhando com desconfiança para as tecnologias disruptivas (entenda a diferença entre inovação disruptiva, incremental e radical no quadro “Camadas de inovação”). “Investir na economia real precisa voltar a ser mais rentável do que no cassino financeiro. Todas as indústrias poderiam estar inovando se o risco fosse reduzido por políticas convergentes”, completa.
Com ou sem esse apoio, há uma energia potencial se acumulando. Em parte porque o ímpeto da onda das tecnologias de informação ainda não passou. “A capacidade de processar dados continua avançando e permitindo fazer coisas que não eram possíveis”, opina o fundador da Litteris Consulting, Cezar Taurion. “Hoje, por alguns milhares de dólares, pode-se acessar uma capacidade computacional que poucos anos atrás custaria milhões”, prossegue.
Com mais poder de fogo e a enxurrada de dados que passamos a gerar depois que nossas vidas se tornaram digitais, várias empresas começaram a apostar no big data [5]. “Ao estudar o comportamento dos clientes consigo identificar padrões e fazer previsões”, sintetiza. Varejistas têm usado isso para refinar estratégias de vendas, o que não chega a ser particularmente estimulante, mas dá para fazer bem mais coisas. “A GE utiliza-se de dados para melhorar a manutenção nos aviões que usam suas turbinas”, exemplifica.
[5] Nome que vem sendo dado à estratégia de usar grandes bases de dados para orientar tomadas de decisão
MAIS INTELIGÊNCIA
Agregar inteligência a produtos pode mudar praticamente tudo. Os automóveis, por exemplo, estão na iminência de saírem sozinhos por aí. “Os carros de hoje têm mais linhas de código do que um avião e alguns já estacionam de forma autônoma. Não acho que meu neto vai precisar aprender a dirigir”, arrisca Taurion.
É possível que nem demore tanto. O professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, Denis Fernando Wolf, conta que já faz dois anos que a equipe do Projeto Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma (Carina) teve sucesso em fazer um veículo rodar completamente sozinho pelas ruas de São Carlos (SP). “Foi o primeiro teste do tipo na América Latina”, comemora.
Hoje não seria possível ter carros autônomos rodando porque o Código Brasileiro de Trânsito ainda não os prevê. Mas operações comerciais de grande porte, como minas ou fazendas, poderiam empregar essa tecnologia. Tanto que a Scania procurou a equipe do Carina para, juntos, desenvolverem um sistema adaptado a caminhões cujo protótipo foi apresentado em julho.
As vantagens de colocar um computador atrás do volante são inúmeras. A começar pela redução dos acidentes e melhoria da mobilidade para idosos e deficientes. “O computador também é mais eficiente para frear e acelerar, o que reduz bastante o consumo [de combustível]”, descreve Wolf, para quem a nova tecnologia poderá subverter a lógica da indústria automobilística. “Ter um carro pode não fazer mais sentido se você puder chamar um quando precisar. Pessoalmente, acho que transporte tende a virar um serviço”, opina [6].
[6] Veja reportagem da revista The Economist sobre o tema aqui
Uma multidão de outros produtos está na fila para ganhar mais inteligência. Para Cezar Taurion, chegará o dia em que nossos eletrodomésticos se comunicarão com a distribuidora de energia para decidir uma escala de trabalho mais eficiente. Isso diminuiria os horários de pico e, de quebra, economizaria na conta de luz.
Os próprios computadores estão perto de um salto similar. De certo modo, é essa a aposta da IBM com o Watson, um sistema de computação cognitiva. “A maior diferença é que o sistema foi projetado para entender linguagem natural”, explica o líder da IBM Watson para o Brasil e América Latina, Fábio Scopeta, acrescentando que isso permite que ele revise grandes volumes de informação, aprenda e formule hipóteses emulando a capacidade de raciocínio.
O Watson ficou famoso em 2011 quando participou – e venceu – de uma edição especial do Jeopardy, um popular jogo de perguntas e respostas da TV americana. Segundo Scopeta, do ponto de vista computacional, o feito foi tão impressionante quanto a vitória do Deep Blue [7] sobre Kasparov no xadrez na década de 1990. Nos anos seguintes, a IBM foi levando a tecnologia para novas áreas, da análise de imagens à criação de receitas culinárias originais (é sério!). No momento, a IBM está particularmente animada com o potencial na área médica. “O impacto da computação na área da saúde será grande nas finanças”, entusiasma-se.
[7] Em 1997, o Deep Blue fez história ao se tornar o primeiro computador a vencer o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov em uma série de seis partidas seguindo regras oficiais
NOVOS MATERIAIS
Inovações radicais não são exclusividade da computação. Ao longo dos últimos anos, identificar tendências nessa área tem sido o trabalho do vice-coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces), Paulo Durval Branco. Ele está particularmente empolgado com a emergência da química verde [8], que se propõe a substituir produtos oriundos do petróleo. “A indústria química está em um momento de destruição criativa”, anima-se.
[8] Conceito que encoraja a indústria química a substituir o uso de insumos perigosos e não renováveis por fontes renováveis, em geral derivadas de biomassa
Ainda de acordo com Branco, outro campo bastante promissor é o dos “novos materiais”: produtos da nanotecnologia com características raras na natureza.
O caso mais famoso é o do grafeno [9], que possui uma longa lista de predicados: ele é melhor condutor que o cobre, mais resistente que o aço e, mais ainda, leve, flexível e transparente. “Comparado a outros materiais, o grafeno tem propriedades superlativas”, elogia o físico Thoroh de Souza, coordenador do MackGraphe, centro fundado há dois anos para trabalhar com esse material.
[9] Forma bidimensional da grafite. É uma folha composta por átomos de carbono puro organizados em uma trama hexagonal cuja espessura é de apenas um átomo
Ainda não há muita coisa que se possa fazer com o grafeno, mas, quando essa tecnologia estiver devidamente controlada, os impactos serão amplos. A começar por seu uso na indústria automobilística e de aviação, em que viabilizarão equipamentos mais leves e, portanto, mais econômicos. A maior promessa, no entanto, é que ele permita uma nova geração de engenhocas eletrônicas com telas flexíveis e sensíveis ao toque que estarão na base da computação vestível. “Ele é o mais sério candidato para incorporar funções inteligentes diretamente nas roupas. É um aspecto futurista, mas realista e desejável”, afirma.
Segundo o professor Thoroh de Souza, o mercado potencial para as aplicações do grafeno é capaz de atingir a faixa da centena de bilhões de dólares
PROCESSOS DE PRODUÇÃO
Os processos de produção também estão mudando. É o que sinaliza Anielle Guedes, que, no começo deste ano, fundou a Urban3D, start-up voltada para levar o potencial da impressão 3D [10] à construção civil. “Estamos saindo de um momento em que a impressão 3D só permitia fazer protótipos simples para um no qual ela permitirá manufatura”, pontifica.
[10] Também chamada de manufatura aditiva, permite criar objetos por meio da deposição de camadas sucessivas de material umas sobre as outras
A empresa ainda está aprimorando a tecnologia. “Nossa maior dificuldade é o concreto. Se secar muito rápido, não consigo imprimir; se demorar, perde a forma”, constata. Tanto que o maior esforço tem sido no desenvolvimento – juntamente com um parceiro europeu da área química – de um aditivo para chegar ao produto ideal. Vem dando certo. “[O concreto] já é extrusável e tem a resistência estrutural que precisamos. Ainda falta terminar o desenvolvimento e trabalhar a regulação para garantir que o produto é seguro”, explica.
Para Guedes, essa é uma etapa intermediária até que seu produto tenha boa aceitação no mercado. A meta final é evoluir para um material não “cimentício” – a produção de cimento responde por mais ou menos um terço das emissões de gás carbônico da indústria brasileira [11].
[11] Saiba mais aqui
Mas, sobre isso, ela faz mistério. “Esse produto está sob sigilo industrial. Só posso garantir que vai acontecer”, assegura. Saindo tudo como o planejado, seria possível baixar em até 80% os custos com a alvenaria da construção civil.
E, se imprimir casas mais baratas não for impressionante o bastante, tem gente imprimindo partes do corpo humano. É nisso que os cientistas do Biofabris [12] vêm trabalhando nos últimos tempos. Inicialmente eles estão fazendo próteses de titânio para pacientes que perderam parte dos ossos do crânio ou da face.
[12] Um instituto nacional de C&T em biofabricação de caráter multidisciplinar
De acordo com o pesquisador sênior André Luiz Jardini, a técnica convencional exige que esse tipo de prótese seja moldado de forma semiartesanal durante a própria cirurgia, com resultados nem sempre tão bons. Já com a impressão 3D é possível criar um modelo virtual da lesão para construir uma prótese sob medida. “Já temos sete cirurgias realizadas com total sucesso”, informa.
Como próximo passo, a equipe do Biofabris vem pesquisando a chamada medicina regenerativa, que, no limite, busca cultivar tecidos e até órgãos inteiros em laboratório. “Ainda estamos na pesquisa básica. Produzir órgãos como nos filmes de ficção científica é uma utopia”, relativiza o pesquisador associado do centro e professor do curso de Medicina da Unicamp, Paulo Kharmandayan.
Ele explica que as células de qualquer órgão são sustentadas por uma estrutura básica com textura esponjosa formada por fibras. Hoje, já é possível imprimir uma estrutura dessas usando materiais biocompatíveis e, então, semeá-la com células-tronco tiradas do próprio paciente, o que, em tese, levaria a um órgão 100% compatível. O nó é sustentar o crescimento para chegar a um resultado viável. “Não se pode, ainda, fazer uma vascularização efetiva que consiga levar oxigênio e nutrientes até as células que estão na parte interna”, pondera.
GEOENGENHARIA
Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, não é de estranhar que surja a tentação de achar que a tecnologia seja capaz de dar conta de absolutamente tudo. Inclusive de salvar a vida no planeta. Esta é a proposta dos defensores da chamada geoengenharia. Eles acreditam que podemos controlar a mudança climática desenvolvendo sistemas para remover o gás carbônico da atmosfera em escala planetária ou, em uma abordagem mais mirabolante, desviando parte da radiação solar.
O problema é que, dos esquemas propostos até agora, nenhum funcionaria conforme anunciado e sem causar efeitos colaterais seríssimos. A pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos, Simone Tilmes, explica que uma das propostas mais populares da geoengenharia seria despejar partículas de sulfato na estratosfera para formar uma camada que refletiria parte dos raios de sol de volta para o espaço. “Isso mudaria toda a química atmosférica e ninguém sabe quais seriam os efeitos. Também afetaria todo o ciclo hidrológico do planeta, com menos sol teríamos menos chuvas”, alerta.
Clive Hamilton, professor do Centro de Filosofia Aplicada e Ética Pública e autor de Earthmasters (livro ainda sem tradução para o português), considera essa uma saída arriscada, embora não condene completamente a geoengenharia – muitos de seus proponentes são cientistas bem-intencionados que acham melhor ter um plano B na manga. “Meu medo é que isso apele a um sentimento de ‘utopismo tecnológico’ que foi muito importante na cultura dos Estados Unidos durante o Pós-Guerra. Eu consigo imaginar perfeitamente um futuro presidente republicano dizendo que precisamos mobilizar a ‘engenhosidade americana’ para resolver a mudança climática”, desabafa.
Grosso modo, as pesquisas sobre geoengenharia se dividem em duas grandes linhas. Uma é a remoção de dióxido de carbono (CDR, na sigla em inglês), que pretende desenvolver tecnologias capazes de filtrar parte dos gases responsáveis pelo efeito estufa da atmosfera.
A outra é o chamado gerenciamento de radiação solar (SRM), cujo objetivo é diminuir a quantidade de raios solares incidentes sobre a Terra. Seus defensores já propuseram espelhos em órbita, uso de balões refletivos, e a cobertura de parte do planeta com uma manta.
A tentação da saída rápida e fácil também preocupa o diretor do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Ronaldo Lemos. “Algumas soluções de geoengenharia são muito baratas se comparadas a outras medidas de enfrentamento da mudança climática. Cria o risco de um país agir isoladamente”, pontua.
Mesmo não sendo a bala de prata que gostaríamos, a tecnologia será parte da solução. Mas o que impediria de irmos de armadilha em armadilha até um triste fim? Afinal de contas, na época em que começamos a alimentar com carvão as máquinas da Revolução Industrial ninguém tinha condições de antecipar a enrascada climática em que estávamos nos metendo. “Eu diria que estamos menos ignorantes sobre as consequências de nossos atos. Mas é exatamente por isso que a ação política é necessária”, reflete a economista Carlota Pérez.