Foram quatro anos de negociação intensa. Se considerarmos o processo político anterior, que desembocou no fracasso da Conferência do Clima de Copenhague (COP 15, 2009), foram oito anos de conversas sobre um novo acordo internacional contra as mudanças do clima. Tudo isso depois de outros 15 anos de debate político em nível global, desde a aprovação da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) em 1992, passando pela criação do Protocolo de Quioto, em 1997.
Em suma, há 23 anos o mundo debate como reduzir suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), como reduzir os impactos das alterações climáticas já irreversíveis por causa da concentração de atual de GEE na atmosfera, como facilitar a implementação de tecnologias de baixo carbono nos países em desenvolvimento, como financiar todo esse aparato tecnológico, como compensar países em desenvolvimento pelas perdas e danos associados a eventos climáticos extremos…
O mundo precisou de mais de duas décadas para que tivesse, enfim, seu primeiro tratado legal internacional de abrangência universal para a luta contra as mudanças do clima, no qual todos os seus signatários (que são, num primeiro momento, os signatários da própria UNFCCC, que reúne 192 paísesdo mundo) têm compromissos e metas a cumprir – o tão esperado Acordo de Paris, finalizado no último sábado durante a 21ª Conferência da ONU sobre Clima (COP 21), na capital francesa.
Terminada a COP 21, passado o êxtase de negociadores e (alguns) observadores com o resultado final, e esvaziado os saguões do Le Bourget, em Paris, emerge uma questão importante para o futuro: o que muda? Será que o Acordo de Paris muda alguma coisa na nossa tragédia climática cada vez mais cotidiana? Será que ainda temos tempo para reverter tudo isso?
Olhando para o futuro sem esquecer do passado
Antes de se aventurar em dar qualquer resposta, precisamos ter em mente uma primeira constatação: sozinho, o Acordo não passa de papel. Não importa as ambições que estão escritas nele – se elas não se traduzirem em ação prática, ele será insignificante.
É só olhar para o exemplo do regime legal internacional em clima que temos hoje, representado pelo famigerado Protocolo de Quioto. Tido como ambicioso na época de sua concepção, o Protocolo define que uma série de países (que consta no Anexo I da UNFCCC, ocupado por países desenvolvidos, com responsabilidades históricas relevantes nas emissões de GEE dos últimos 150 anos) precisaria reduzir suas emissões em 5,2% entre 2008 e 2012 (período original de vigência do Protocolo, que depois foi estendido até 2020) com relação aos níveis de 1990.
Na prática, sem a participação dos Estados Unidos, principal país do Anexo I em termos de emissões brutas de GEE, e sem que países como China e Índia tivessem qualquer responsabilidade de redução de emissão, a implementação do Protocolo foi problemática e suas metas estiveram muito longe de serem cumpridas. Hoje, a trajetória de aquecimento do planeta é ainda mais acentuada que a do começo dos anos 1990.
O Acordo de Paris busca escapar dos becos sem saída do Protocolo de Quioto. Primeiro, ele é universal – todos os países terão compromissos de redução de emissão. Para evitar desentendimentos, os governos se envolveram ativamente na construção de seus próprios compromissos, a partir das chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas Pretendidas (INDC, sigla em inglês). Segundo, na sua forma meio híbrida, os compromissos de redução de emissão não são totalmente obrigatórios – algo que colocou Estados Unidos e China, os dois maiores emissores do mundo, dentro do barco parisiense. Terceiro, o Acordo incorpora (sem dar muitos detalhes, é preciso reconhecer) questões importantes que facilitaram o comprometimento dos países em desenvolvimento com metas de redução, como adaptação, financiamento, transferência de tecnologia, perdas e danos, entre outros.
Um acordo de pretensões, não de ações
É exatamente nessa falta de detalhes que reside a grande dúvida sobre o Acordo de Paris: não seria ele mais uma “carta de intenções” dos países, ao invés de um tratado com objetivos e metas traçadas, com os instrumentos previstos para a sua viabilização?
Um exemplo da discrepância entre objetivos e ações previstas está no fundamento central do Acordo: a limitação do aumento da temperatura média do planeta em 1,5 grau Celsius neste século, com relação aos níveis pré-Revolução Industrial (2ª metade do século XIX). Diversos estudos, inclusive um do próprio Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), apontam que os compromissos apresentados pelos países nas INDCs levam o planeta para uma trajetória de aquecimento acima dos 2,5 graus Celsius, beirando os 3 graus em alguns cenários.
O Acordo define que, a partir da publicação de um novo relatório do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês), entre 2017 e 2018, os países revisarão suas INDCs. Além disso, a partir do início da vigência do acordo, o texto sugere a realização de ciclos de revisão desses objetivos de redução a cada cinco anos, um processo que ainda precisará ser definido mais claramente nos próximos anos. No entanto, o texto não prevê regra que force os países a assumirem compromissos mais ambiciosos de redução de emissões, de forma a superar o gap que existe entre a meta e os compromissos na mesa. Friamente, a linguagem vaga permite até que os países reduzam a ambição de seus compromissos durante a sua revisão.
A falta de detalhes é gritante também em um dos pilares para o envolvimento dos países em desenvolvimento no novo acordo: financiamento. Ainda não existe um “mapa do caminho” para orientar as nações mais pobres sobre o escalonamento da capitalização do Fundo Climático Verde, criado pela ONU a partir de uma promessa feita pelos países ricos em 2009, em Copenhague: destinar recursos crescentes para financiar ações em clima no mundo em desenvolvimento, de forma que, depois de 2020, esse montante atingisse US$ 100 bilhões anuais.
A única sinalização prevista no texto é a transformação dessa cifra em piso mínimo para destinação de recursos para esse Fundo. De resto, os países se comprometeram a revisar esse número em 2025, e o documento final reconhece a possibilidade de apoio financeiro entre países em desenvolvimento (a chamada “cooperação Sul-Sul”), uma forma encontrada pelos negociadores para atender à demanda dos EUA e Europa para ampliar a base de financiadores sem melindrar os países em desenvolvimento.
Sinais: a descarbonização e o protagonismo dos setores econômicos
Se o Acordo de Paris não nos deu ações específicas, ele deixa bastante claro o rumo que a humanidade precisa seguir para impedir que as piores previsões sobre alterações do clima se tornem realidade nas próximas décadas. O mundo precisa atingir seu pico de emissões o quanto antes, para, em seguida, forçar uma queda acentuada nas emissões – seja por reduções em si ou pela captura de carbono (uma solução ainda futurista, já que não temos tecnologia desenvolvida capaz de fazer isso). Isso significa que, ao final deste século, a economia global deverá estar funcionando plenamente sem precisar mais dos combustíveis fósseis – ou precisando deles numa proporção muitíssimo menor que a de hoje.
A descarbonização, um palavrão para muitas empresas e governos até pouco tempo atrás, tem tudo para se tornar uma palavra de ordem nos planos de desenvolvimento econômico nas próximas décadas. E, para que isso se torne realidade, o eixo de ação irá se deslocar das negociações internacionais para o debate doméstico, com os atores sociais e econômicos locais. Saem os diplomatas; entram a sociedade civil, as empresas e os governos subnacionais.
O formato flexível que permitiu o sucesso das negociações desse tratado é a chave para que mudanças significativas sejam feitas nas metas de redução e nas promessas de ajuda para ação em clima. Ou seja, o jogo será jogado no debate local, com os atores locais, de acordo com os interesses locais.
Talvez este “empoderamento” dos processos locais de decisão seja o grande legado do processo de construção do Acordo de Paris. Isso não é algo trivial: mais do que nunca, a responsabilidade pela ação contra as mudanças do clima está nas nossas mãos.
* Bruno Toledo é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-EAESP (FGVces), ele acompanhou as negociações da COP 21 para a Revista Página22 e para o Observatório do Clima.