O projeto Economics for Transition lançou a série de documentários em podcast chamada UpStream, para debater temas sobre uma nova economia, com resiliência, justiça social e meio ambiente saudável. O episódio piloto do projeto – que está captando recursos por crowdfunding – teve como foco a chamada economia compartilhada.
O documentário radiofônico lança uma série de questionamentos interessantes. O primeiro deles vai ao pé da letra ao contestar o uso do termo “compartilhado” para uma série de diferentes iniciativas que não necessariamente têm essa característica. Na tentativa de fazer uma distinção, é citado o Couchsurfing como iniciativa de compartilhamento de fato. David Korman, um trabalhador envolvido em diversas plataformas de economia compartilhada, explica que ao oferecer um sofá para um viajante, o anfitrião de fato compartilha sua casa e abre espaço para uma troca de experiências com seu hóspede.
Já a TaskRabbit, uma plataforma onde pessoas se oferecem para fazer tarefas do dia-a-dia para outras que estão sem tempo – entre elas lavar roupa, pintar parede, passear com o cachorro – Korman a considera uma plataforma de trabalho, de bicos, e não de compartilhamento.
E por meio do Lyft (similar ao Uber), ele usa o próprio carro para oferecer um serviço, mas não compartilhar o automóvel de fato ou uma experiência – no máximo uma conversa, assim como já acontece no táxi convencional.
Para alguns dos entrevistados no documentário, grande parte dos serviços e empresas que levam o rótulo “compartilhado” integram na verdade uma economia do bico (ou do freela). De modo geral, a ideia é que as pessoas tornam disponíveis seu trabalho e algum recurso físico para fazer um bico e ganhar um dinheiro.
Independência x precariedade
Para algumas pessoas os bicos da economia compartilhada ajudam a levar uma vida mais independente, sem bater cartão, algo que se aproximaria do empreendedorismo. Mas especialistas ouvidos pelo documentário do UpStream alertam que por trás dessa conveniência do trabalhador, existe um caminho fácil para aumentar a precariedade do mercado de trabalho e gerar mais instabilidade para a vida dos prestadores de serviços.
Segundo Keally McBride , professora de política e integrante da Cátedra de Estudos Internacionais da Universidade de San Francisco, a economia do bico seria um produto da iniquidade no mundo – quem não consegue acessar o mercado formal ou não ganha o suficiente para pagar as contas recorre à oferta de serviços online. E geradora de ainda mais iniquidade – os prestadores de serviços arregimentados pelos aplicativos ficam apartados dos benefícios trabalhistas do mercado formal e num limbo regulatório. “Um caldeirão com pitadas de cultura capitalista, hippie, neoliberal e tecnocêntrica”, ironiza McBride.
Ela alerta ainda que o modelo de negócios de empresas como o Uber, que se apoia em trabalhadores e estrutura física que não fazem parte da sua composição, representaria também uma enorme concentração de renda. Por exemplo, o Uber tem cerca de 200 empregados e um valor de mercado de mais de 50 bilhões de dólares.
A estratégia desse tipo de empresa seria crescer o máximo possível aproveitando lacunas de regulamentação, fazendo crescer a massa de apoiadores que posteriormente ajudarão a defender aquele modelo de negócios. É o que acredita Dale Carlson, ativista da Califórnia que tem se embrenhado na luta contra os efeitos do aplicativo de locação de acomodação para temporada Airbnb. Os efeitos colaterais do Airbnb em São Francisco incluem inflação no mercado imobiliário e inviabilidade de permanência de moradores na cidade, frente aos custos de moradia.
Compartilhado significa solidário
De modo geral, muitas iniciativas que hoje são rotuladas como compartilhadas são baseadas em propriedade individual, riscos individuais e enormes benefícios para a empresa – aponta o documentário. Uma real economia compartilhada seria mais próxima de uma economia solidária, acredita a professora Keally McBride. “As iniciativas solidárias envolvem benefícios compartilhados e riscos compartilhados, como nas cooperativas de trabalhadores, nos agrupamentos de pequenos produtores de energia renovável, cooperativas que oferecem alojamento e em iniciativas de jardins e hortas comunitárias.”
A maioria desses exemplos tem sua origem em crises econômicas e muitos surgiram de iniciativas da América Latina dos anos 80, onde emergiram em resposta à crise econômica na região, nesse período, conforme relata McBride.
O modelo de fato compartilhado para um negócio como o Uber seria que a plataforma fosse propriedade dos trabalhadores e que cerca de 5% da renda do trabalho fosse destinado a sua manutenção e não os 20% retidos pelo Uber atualmente. O diferencial seria a narrativa “o Uber dos empregados”, aposta McBride.
Outra questão na base das grandes companhias da atual economia compartilhada é que a motivação dos trabalhadores para oferecerem seus serviços parece ser individual. O documentário sugere que uma pessoa que não consegue fechar suas contas sente aquilo como um problema seu pessoal e então oferece, de modo individual, seus serviços e seu automóvel ao Uber. Mas se reconhecessem que esse tipo de problema é coletivo, isso poderia facilitar a formação de plataformas solidárias e compartilhadas de fato, num contexto não apenas econômico, mas político também.
Ouça o documentário em inglês na íntegra:
https://soundcloud.com/economicsfortransition/the-sharing-economy