Este conjunto de três reportagens mostra elementos que contribuíram para apartar a agricultura de uma visão mais sistêmica, mas já ensaiam movimentos de integração
CONSUMO
Parte do problema, o ato de consumir também pode ser um motor de mudança, capaz de reconectar a agricultura aos ciclos naturais
A desconexão entre a vida urbana e o ciclo natural da terra está refletida em todas as feiras da cidade. Temos morango o ano inteiro, independentemente da estação e do local. A diversidade na produção agrícola é esquecida em meio à monotonia alimentar. Como crianças mimadas, queremos ter a nossa disposição todos os frutos e vegetais a qualquer momento e, assim, o homem impõe ao campo o seu ritmo artificial. As preferências de consumo de uma população refletem a forma como as atividades agrícolas são organizadas para atender essa demanda.
Isso acontece sempre que escolhemos no menu de um restaurante a refeição que mais nos apetece. Nesse caso, estamos atuando no fim da cadeia do alimento. Essa cadeia inclui não apenas as práticas de cultivo e produção no campo, mas também a escolha de fornecedores dos supermercados e se estende até a forma como aproveitamos os alimentos em nossa cozinha (mais sobre Alimentos na edição 81).
Por isso, além de nossas escolhas, os grandes atores dessa cadeia exercem também uma forte influência sobre os alimentos que estão a nossa disposição. São eles – principalmente os grandes supermercados – os maiores interessados em manter um modelo de fornecimento constante e estável. Com isso, pagamos o preço de uma grande restrição de alimentos, deixando de experimentar novos sabores.
Por exemplo, o tomate possui mais de mil variedades, mas, por razões como produtividade, resistência, pós-colheita e durabilidade, só se vê no mercado os tipos italiano, débora e carmem, que são os mais insossos. “E os tomates negros, brancos, amarelos, roxos, doces, ácidos, compridos, de formatos e cores que não estamos acostumados? Eles existem, mas, por imposição do mercado, não são produzidos em grande escala e não entram nas grandes redes de varejo”, comenta Guilherme Reis Ranieri, gestor ambiental, membro do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana e do Muda-SP (Movimento Urbano de Agroecologia) e também autor do blog sobre plantas alimentícias, gastronomia, dicas de cultivo e agroecologia.
Ranieri mantém uma loja on-line para venda de espécies que desapareceram das prateleiras dos supermercados. As plantas comestíveis não convencionais (Panc), espécies nativas ou exóticas se tornaram uma raridade após a revolução agrícola e tiveram seu cultivo restrito a fundos de quintal, hortas caseiras e pequenas populações do interior. “É uma questão de olhar e entender que o que achamos que é mato muitas vezes pode ser alimento. É uma reconexão com o ambiente que nos cerca, com a nossa biodiversidade e, muitas vezes, com a nossa história”, defende.
Engrenagem invisível
Os impactos sociais e ambientais do sistema alimentar são a engrenagem invisível por trás de cada refeição. O modelo atual de produção e distribuição de alimentos pode causar prejuízos à sociedade, ao meio ambiente e também à nossa saúde.
A produção de monoculturas em latifúndios facilita e padroniza a colheita, porém o baixo índice de biodiversidade desses cultivos os torna mais frágeis a doenças e insetos. Esse modelo demanda grandes extensões de terra, uso intenso de mecanização, alto consumo de água e combustíveis, emprego de fertilizantes químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos e antibióticos e, ainda, transporte por longas distâncias. Sem falar na concentração de poder de negociação de preços dos grandes varejistas. Ou seja, trata-se de um modelo repleto de externalidades.
Em 2009, o Brasil alcançou a indesejável posição de maior consumidor mundial de agrotóxicos, pelo uso de 1 milhão de toneladas, o que equivale a um consumo médio de 5,2 kg de veneno agrícola por habitante. A liberação do uso de sementes transgênicas no País contribuiu muito para que chegássemos a essa colocação, uma vez que o cultivo dessas sementes geneticamente modificadas exigem o uso de grandes quantidades desses produtos.
Esse risco à saúde pública é abordado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), que publicou um posicionamento sobre agrotóxicos, no qual informa que “entre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos, podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”.
A experiência de Ranieri com plantas não convencionais, desenvolvida na chácara da família, em Itu (SP), deu certo graças à aplicação de técnicas de manejo orgânico baseado na permacultura. Apesar do clima seco e quente e do solo compacto e pedregoso, o cultivo tem dado frutos.
Inspirado em sua própria experiência, Ranieri acredita que formas alternativas de produção, como os sistemas agroflorestais e práticas de cultivo consorciado, têm muito a contribuir para amenizar impactos da agroindústria. Os sistemas agroflorestais (SAF) são consórcios de culturas agrícolas com espécies arbóreas que podem ser utilizados para restaurar florestas e recuperar áreas degradadas. A tecnologia ameniza limitações do terreno, minimiza riscos de degradação inerentes à atividade agrícola e otimiza a produtividade a ser obtida, conforme a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Ainda segundo a Embrapa, as práticas de cultivo consorciado são amplamente utilizadas por pequenos produtores das regiões tropicais, apresentam vantagens sobre o monocultivo, como maior estabilidade da produção, melhor utilização da terra e da força de trabalho, maior eficiência no controle de ervas daninhas e disponibilidade de mais de uma fonte alimentar.
Um modelo de produção familiar, em pequena escala e orgânica, permite também o cultivo de muitas espécies simultaneamente e em conjunto, resultando na produção de diversos alimentos e em ambientes de alta biodiversidade.
No entanto, a agricultura familiar e técnicas tradicionais de cultivo e manejo do solo que promovam uma maior diversidade de alimentos não são predominantes no País. As monoculturas, que fornecem matérias-primas à produção da indústria para alimentos ultraprocessados ou rações animais, ocupam a grande maioria das terras agricultáveis no Brasil. Isso faz com que apenas 24,3% dessa área seja destinada a pequenos produtores que, mesmo assim, são os principais fornecedores dos alimentos básicos e aqueles que mais geram empregos no campo, segundo o Censo Agropecuário ‒ Agricultura Familiar: Primeiros Resultados 2006. Para se ter uma ideia, a agricultura de pequena escala produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 34% do arroz, 58% do leite, 59% da carne suína e 50% das aves, ou seja, são os pequenos que conseguem diversificar nosso menu.
Pensando em como as escolhas de consumo impactam as atividades agrícolas do campo, o Ministério da Saúde desenvolveu o Guia Alimentar para a População Brasileira, com informações e recomendações sobre alimentação adequada e saudável. O objetivo é estimular um sistema alimentar social e ambientalmente sustentável, por meio das escolhas individuais de consumo. “Quanto mais pessoas buscarem por alimentos orgânicos e de base agroecológica, maior será o apoio que os produtores da agroecologia familiar receberão e mais próximos estaremos de um sistema alimentar social e ambientalmente sustentável”, destaca o Guia.
De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, alimentos de base agroecológica são aqueles produzidos com o uso sustentável dos recursos naturais, livres de contaminantes, que protegem a biodiversidade, contribuem para a desconcentração das terras produtivas e para a criação de trabalho e que respeitam e aperfeiçoam saberes e formas de produção tradicionais
Carne em excesso
O Guia também desafia antigos paradigmas alimentares, como a importância de alimentos de origem animal. O brasileiro consome uma quantidade de carne muito superior ao valor máximo estipulado pelo Ministério da Saúde, chegando à média de 220 gramas de carne por dia, em vez de 100 gramas.
Mas uma alimentação baseada predominantemente em alimentos de origem vegetal propicia relações de trabalho mais justas para os produtores, de acordo com o Guia. Um padrão de consumo que privilegie arroz, feijão, milho, mandioca, batata e vários tipos de legumes, verduras e frutas têm como consequência natural o estímulo à agricultura familiar e à economia local. São esses cultivos, segundo o Guia, que favorecem a biodiversidade e reduzem o impacto ambiental da produção e distribuição dos alimentos, além das emissões de gases de efeito estufa, o desmatamento e o uso de água.
Para Cynthia Schuck, diretora do departamento de meio ambiente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), cortar a carne do cardápio pode trazer uma série de benefícios à saúde, já que ajuda a prevenir doenças crônicas (diabetes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer) responsáveis por perda acentuada na qualidade de vida e alta mortalidade.
A transição para uma dieta vegetariana deve ser gradual para permitir a familiarização de novos alimentos, receitas e adquirir hábitos duradouros. Para saber mais, assista aos vídeos do nutricionista Eric Slywitch e a inscrição na iniciativa Desafio 21 dias sem carne.
Em 2014, a pecuária bovina de corte ocupou 167 milhões de hectares somente em pasto, com a produção média de apenas 60 kg de carne por hectare. No mesmo ano, o Brasil produziu em média por hectare 25 mil kg de laranja, 28 mil kg de batata, 1.000 kg de feijão, 15 mil kg de mandioca, e 2.500 kg de soja, dentre outros cultivos. Segundo o estudo Comendo o Planeta – Impactos Ambientais da Criação e Consumo de Animais, elaborado pela SVB.
“Somos 7 bilhões de seres humanos, mas todos os anos criamos e abatemos mais de 70 bilhões de animais terrestres e uma quantidade muito maior de animais aquáticos. Só no Brasil são quase 6 bilhões de animais mortos por ano. A produção e exploração desses animais é uma das principais fontes de degradação ambiental, por exigir o uso de áreas extensas e um grande volume de recursos naturais e energéticos, além de gerar bilhões de toneladas de resíduos sólidos, líquidos e gasosos”, comenta Cynthia Schuck. (mais na edição 85, sobre Ética e Animais)
Consumir carne de forma responsável é uma tarefa difícil. Dificilmente sabe-se a origem do produto e resolver essa falha de informação é a bandeira da campanha “Carne ao molho madeira”, do Greenpeace.
Além de assegurar o direito do consumidor de saber de onde vem a proteína que leva para casa, a campanha espera garantir que os supermercados se comprometam com o desmatamento zero. “Os consumidores não têm o seu direito de acesso à informação garantido, que é um dos direitos fundamentais do código de defesa do consumidor”, comenta Adriana Charoux, coordenadora da campanha.
Maluh Barciotte, bióloga e doutora em Saúde Pública e Ambiental, participou da elaboração do Guia Alimentar da População Brasileira e diz que é “importante que temas [alimentação adequada e sustentável] tão fundamentais sejam inseridos como prioritários nos programas escolares, iniciando pela capacitação dos educadores, uma vez que escolhas alimentares fazem parte do nosso dia a dia, do café da manhã ao jantar”.
A educação pode ser a chave para um dia a dia mais rico em sabores. “Imagine quantas possibilidades na cozinha, quanta diversidade de sabores e nutrientes que poderiam estar na mesa! Cabe a nós valorizar, resgatar e, juntamente com o governo e a academia, realizar esforços no sentido de cultivar comercialmente essas variedades”, complementa Ranieri.
Leia também Território | Formação