Poucas espécies nos são tão familiares como os cães. Eles são um dos resultados mais notáveis da interferência humana sobre os processos de evolução da vida no planeta: quase todas as raças caninas domesticadas que hoje temos são herdeiras dos lobos selvagens domesticados pelos humanos há milhares de anos para ajudar na caça de outros animais. Não é à toa que eles são considerados por muitos como nossos “melhores amigos” – de certo modo, eles são um produto nosso.
Milênios de interação e domesticação tornaram os cães uma das espécies mais simples de se criar, inclusive como um companheiro de recreação e divertimento – especialmente no Ocidente. Muito mais do que isso, os cães se tornaram uma espécie quase onipresente em todo o planeta: sua presença nas casas e ruas afora é quase tão universal quanto o nascer e o pôr do sol.
Pois bem, depois dessa breve digressão histórica eu retorno à pergunta que dá título a este post: que tipo de país não tem cães? Para entender a pergunta, gostaria de fazer outra digressão, voltando exatas duas décadas no tempo. Antes, um aviso: os próximos parágrafos não serão tão amigáveis como os nossos companheiros de evolução…
É difícil resumir o que a pequena Ruanda viveu entre abril e julho de 1994.
Desde os anos 1960, quando conseguiu sua independência da Bélgica, Ruanda era administrada por uma elite política pertencente à etnia majoritária do país, os Hutus, a partir de um sistema político abertamente orientado para a preservação dos interesses dessa elite representativa em detrimento das minorias étnicas de Ruanda, particularmente os Tutsis. Essa polarização tinha raízes históricas intimamente relacionadas com o colonialismo europeu do final do século XIX e começo do XX: os colonizadores europeus em Ruanda (primeiro os alemães, depois os belgas) elaboraram uma teoria racial que serviu para dividir comunidades que até então não viviam em conflito, apoiando-se em uma minoria que os colonizadores consideravam “superiores” (os Tutsis), que por sua vez reprimia a maioria “inferior” (os Hutus). Bem, quando o poder colonial deixou de existir, a pirâmide social ruandesa virou de cabeça para baixo, com os Hutus reprimindo os Tutsis e transformando o ódio étnico em instrumento de poder.
Entre os anos 1960 e 1990, os Tutsis sofreram ondas periódicas de violência que forçaram muitos deles a deixar o país, uma diáspora que espalhou quase um milhão de pessoas em trinta anos. Boa parte dos Tutsis ruandeses se dirigiu à Uganda, ao norte de Ruanda, e muitos deles acabaram fazendo parte do grupo rebelde que derrubou o governo de Milton Obote no país em 1985. Depois do sucesso, os exilados resolveram aproveitar as armas e o apoio político do novo governo de Uganda para atacar o governo Hutu de Ruanda, formando a Frente Patriótica Ruandesa (FPR). Entre 1990 e 1993, choques frequentes entre a FPR e o governo ruandês forçaram as Nações Unidas a intervir politicamente em prol de um acordo de paz, finalmente assinado em 1993. O acordo forçava o governo Hutu a abrir espaço político para a oposição em prol da normalização institucional do país, pautada no multipartidarismo, na reforma das instituições e na aceitação dos direitos da minoria por parte da maioria.
Não deu certo. Pior, grupos radicais ligados à família do então presidente Juvénal Habyarimana conseguiram mais espaço, aproveitando os temores que muitos ruandeses nutriam com relação aos rebeldes e aos Tutsis. Nas ruas, esses grupos eram representados pelas Interahamwe, milícias de jovens que bradavam hinos anti-Tutsis, usavam roupas extravagantemente coloridas e eram abastecidos com cerveja de banana e com facões importados da China. Desde a assinatura do acordo de paz, estes jovens recebiam treinamento para usar o facão “na lavoura”, como justificavam alguns militares. Para os radicais, o acordo de paz jamais poderia sair do papel, e eles fariam tudo para impedir isso – especialmente matar.
O inferno ruandês começou na noite de 06 de abril. Habyarimana retornava de viagem oficial junto com o presidente do Burundi (país vizinho que também sofria com a polarização Hutu-Tutsi, mas no sentido contrário ao ruandês, com os Tutsis sendo maioria). Seu avião particular foi abatido enquanto se preparava para pousar em Kigali, capital de Ruanda. Não se sabe quem o fez, mas as suspeitas mais fortes são de que os próprios aliados de Habyarimana articularam a sua morte para impedir a aplicação do acordo de paz. De toda forma, a morte do presidente foi o pontapé para a matança. Listas de cidadãos Tutsis e de Hutus moderados já estavam prontas, com informações sobre residência e local de trabalho. Nos primeiros dias, o exército ruandês realizou a tarefa de eliminar as “baratas“. Depois, e na medida em que a ordem para matar avançava no interior do país, todos os cidadãos Hutus tiveram que participar ativamente da matança – profissionais liberais, professores, médicos, agricultores, prefeitos, estudantes… Pois bem, fez-se o genocídio.
A presença militar internacional em Ruanda foi totalmente inútil. Desde o final de 1993, a ONU mantinha uma missão de paz formada por alguns milhares de soldados, que tinha como base a bem-treinada e armada tropa belga presente na missão. No entanto, e mesmo durante o auge do genocídio, os soldados da ONU somente tinham autorização para atirar no caso de serem atacados – e mesmo assim eles precisavam de uma autorização prévia do Secretariado, em Nova York.
A situação piorou consideravelmente depois que a Bélgica retirou suas tropas da missão, após o assassinato de alguns de seus soldados pelo exército ruandês. Alguns dias depois, graças à pressão dos EUA, a missão ainda perderia mais algumas centenas de soldados, por “problemas de segurança” para as tropas. Eram tempos complicados para as grandes potências manterem soldados em países do Terceiro Mundo: alguns meses antes, soldados norte-americanos tinham sido massacrados por rebeldes somalis em Mogadíscio, com direito a cenas de mutilação e execução transmitidas no horário nobre nos lares dos EUA.
Bem, os soldados da ONU que ficaram em Ruanda nada podiam fazer, a não ser assistir ao desastre.
Foram quase 100 dias de assassinatos. Mais de 800 mil mortes. O genocídio mais sistematizado desde a Solução Final aplicada pela Alemanha nazista contra os judeus da Europa, nos anos 1940. O genocídio ruandês foi o mais efetivo quando considerado o tempo (média de 80 mil mortes por dia), o custo (o facão era o instrumento de execução mais utilizado, pela sua simplicidade de operação e seu baixo custo de importação) e a mão-de-obra (todos os Hutus deveriam participar, sem exceção). A mobilização da população Hutu no genocídio foi quase total; não foi à toa que, depois da derrota militar do governo Hutu para a FPR em Ruanda, quase dois milhões de pessoas atravessaram a fronteira em direção à República Democrática do Congo (na época Zaire) em pouco mais de três dias, o maior fluxo de refugiados no menor tempo até hoje.
Então, depois de parágrafos tão sombrios – o que os cães têm a ver com o genocídio em Ruanda?
Um reflexo curioso do que aconteceu em Ruanda é percebido até hoje por quem visita a capital do país, ou mesmo vilarejos no interior: latidos são raríssimos. Pode-se dizer que Ruanda é um país quase sem cães, ou pelo menos sem que eles façam parte do universo sociocultural da sua população. Mesmo nas camadas sociais com maior poder aquisitivo, que vem crescendo bastante nos últimos anos, criar cães não é algo muito comum. Nas camadas mais simples, a figura do cão foi substituída pela cabra, animal dócil que também tem valor econômico a partir do seu leite, algo interessante para um povo acostumado com crises políticas e econômicas.
Mas por que não temos cães em Ruanda? Há alguns anos, um filme britânico retratou com certo grau de realismo e uma boa pitada de liberdade artística o que aconteceu em Ruanda a partir de um evento real ocorrido durante o genocídio: o ataque das forças Hutus à École Technique Officielle, uma instituição católica de ensino em Kigali que abrigou algumas centenas de Tutsis nos primeiros dias de matança. O título em inglês é bastante sugestivo: Shooting Dogs – “Atirando em Cães”, numa tradução literal.
Antes do genocídio, os cães faziam parte do universo dos ruandeses da mesma forma que no restante da África ou em qualquer parte do Ocidente. Além dos cães domesticados, Ruanda também tinha cães selvagens e de rua, o que não era nenhuma extravagância. Tudo mudou naqueles meses de 1994.
É difícil de entender exatamente a lógica que governava os processos cotidianos de extermínio, mas podemos dizer que a rotina de trabalho diário tinha sido substituída por uma rotina de caça aos Tutsis, que geralmente terminava com um tipo de happy hour regado à cerveja de banana e a contabilização da pilhagem do dia. Os assassinos sequer pensavam em esconder o que estava acontecendo, muito menos cavar valas para enterrar os mortos. Milhares de corpos foram deixados ao relento, para que a natureza fizesse a sua parte a céu aberto. E ela fez, através dos nossos melhores amigos.
Um relato frequente daqueles que chegavam a Kigali nos dias que se seguiram à queda do governo Hutu é a quase onipresença de cães fartos e gordos que ainda se atracavam para comer o que restava dos corpos abandonados pelos assassinos. Para os rebeldes Tutsis que chegavam, depois de um combate violento com forças Hutus, ver os corpos de compatriotas Tutsis servindo como alimento para cães era demais. Assim, uma das primeiras medidas não-oficiais que o novo governo tomou foi a eliminação desses cães, medida que chamou a atenção na época de entidades de direitos dos animais na Europa. Em meio ao caos do pós-genocídio e da descoberta dos horrores, não é preciso pensar muito para deduzir como o novo governo ruandês respondeu a esses protestos.
Não eram apenas os rebeldes fartos da guerra e horrorizados com o genocídio que não aguentavam ver os cães se alimentando dos mortos. Muitos dos soldados da missão de paz da ONU, frustrados com toda aquela experiência e estresse, também atiravam nos cachorros como forma de preservar os corpos daqueles que já tinham sido assassinados – uma contradição quase doentia, já que quando essas pessoas estavam vivas os soldados não podiam fazer nada para protegê-las. O sistema que os impedia de atirar em genocidas para proteger a vida daquelas pessoas lhes dava espaço para atirar em cães para preservar os restos mortais das pessoas que eles não puderam proteger – essa irracionalidade evidencia o grau de monstruosidade em Ruanda naqueles meses de 1994.
Podemos dizer que os cães foram as principais “vítimas colaterais” do genocídio. O que eles fizeram de errado? Seguiram os instintos naturais e os adquiridos por milênios de domesticação pelo ser humano. Seguiram os homens na caça e encontraram o alimento.
Assim, os cães tornaram-se objeto de trauma coletivo na Ruanda pós-genocídio. O retorno do “melhor amigo do homem” a Ruanda tem sido lento e gradual, mas aos poucos a imagem canina se recupera, especialmente junto aos mais jovens, que não vivenciaram na pele o horror de 20 anos atrás.
Ah, é bom relembrar: os colonizadores europeus que levaram para Ruanda as ideias raciais que serviram de base para o ódio étnico entre Hutus e Tutsis, que por sua vez reverberou no último grande massacre humano do século XX, também foram os mesmos que trouxeram consigo muitas raças de cães e ajudaram a popularizar a espécie no país. À bientôt!
*Post publicado originalmente em maio de 2014 no blog Coletivo Sustentável, do FGVces