As polêmicas têm potencial de clarear a relação da empresa de Zuckerberg com o jornalismo
Por Moreno Cruz Osório*
Um dos assuntos mais recorrentes da newsletter que o Farol Jornalismo envia semanalmente a seus assinantes é o Facebook. Mais especificamente, o papel que a rede social de Mark Zuckerberg tem no jornalismo atual e, consequentemente, na construção da realidade social.
É interessante acompanhar como essa relação vem evoluindo. Trata-se de observar, por um lado, como o Facebook vem reagindo aos posicionamentos que escancaram a responsabilidade pública inerente à condição de maior plataforma de distribuição de conteúdo do planeta. Por outro, notar como evoluem as críticas de quem está disposto justamente a expor o papel desempenhado pelo Facebook na sociedade. Uma queda de braço entre um ente todo-poderoso e diversos pequenos atores sociais que se municiam de polêmicas para fazer seu argumento valer.
Poderíamos dizer que o Facebook é uma caixa-preta social, e o que esses atores estão tentando fazer é abri-la. Essa metáfora é utilizada pela Teoria Ator-Rede para tentar entender como se dá essa entidade que entendemos por sociedade. A ideia dessa ontologia é abrir caixas-pretas sociais, desnaturalizando-as, verificando as redes que as fazem ser vistas como unidades em pleno funcionamento. Dessa forma é possível enxergá-las, questioná-las, e reinventá-las se for preciso.
Ninguém sabe muito bem como o Facebook funciona. Suas lógicas internas são guardadas a sete chaves, tal como um segredo industrial. Seu algoritmo é um emaranhado de instruções cujo entendimento possível há tempos se afastou de uma compreensão por não especialistas.
No caso do consumo de conteúdos jornalísticos, sua influência é direta, porém pouco problematizada – justamente pelo fato de o Facebook passar a impressão de ser um lugar por onde as relações sociais fluem espontaneamente, sem qualquer tipo de mediação. Posição, aliás, defendida pela própria empresa, que diz querer apenas proporcionar a melhor experiência para os usuários.
Segundo a Teoria Ator-Rede, uma das melhores formas de abrir caixas-pretas é por meio de polêmicas. Pontos sensíveis no funcionamento da rede servem como porta de entrada, uma maneira de encontrar o fio da meada. Seguindo esse fio, é possível fazer emergir o múltiplo que parecia ser uno, possibilitando uma melhor análise.
Em 2014, o Facebook foi fortemente criticado nos EUA pelo fato de o NewsFeed ignorar o que acontecia em Ferguson [1], especialmente nas primeiras horas de revolta. Como a situação nas ruas evoluiu muito rápido, não deu tempo de o algoritmo interpretar a gravidade da situação, fazendo com que as timelines das pessoas permanecessem recheadas de vídeos do desafio do balde de gelo, enquanto o Twitter – que funciona pela ordem cronológica reversa – estava em chamas.
[1] Cidade americana que foi palco de violentos protestos em decorrência da morte do jovem negro Michael Brown por um policial
Após esse episódio, o Facebook decidiu contratar jornalistas para atuar como curadores em uma seção chamada Trending Topics (indisponível no Brasil). O trabalho desses profissionais seria destacar os tópicos que o algoritmo apontava como tendência, “empacotando-os” jornalisticamente. Isso por si só já se configura uma interferência jornalística, mas é só a pontinha do novelo.
Segundo reportagens publicadas pelo site Gizmodo nas últimas semanas, os curadores do Facebook também utilizavam critérios muito subjetivos para montar o conteúdo da seção de trendings. Inclusive inserindo assuntos que o algoritmo ainda não tinha observado, como seria o caso dos protestos de Ferguson. E como foi o caso, segundo depoimentos de entrevistados pelo Gizmodo, do desaparecimento do voo MH17 e do ataque ao Charlie Hebdo. Sem falar na polêmica envolvendo pautas conservadoras, preteridas pelos curadores, que fez com que o Partido Republicano questionasse a empresa de Zuckerberg.
Esses exemplos servem para demonstrar que o Facebook adota critérios editoriais parecidos com os que guiam as escolhas em uma redação jornalística.
Importante sublinhar que, em tese, não há problema de o Facebook agir como um player jornalístico (o.k., há, mas isso é outra questão).
O que importa aqui é expor uma postura que, se não houvesse tanto poder ($$) envolvido, seria de uma ingenuidade atroz: vender aos seus usuários e anunciantes uma imagem de isenção em relação às disputas discursivas que atravessam a sociedade em todos os níveis. Se é possível discutir a existência de juízos de valor nas escolhas feitas por um algoritmo, não dá pra ignorar as feitas por uma equipe de jornalistas.
A polêmica exposta pelo Gizmodo possibilita começar a enxergar as engrenagens que tecem a rede Facebook. Desnaturalizar seu modus operandi é essencial para que possamos abrir sua caixa-preta e exigir mais clareza em suas posturas. Especialmente na relação com o jornalismo, pois a “isenção” vendida pela empresa ao público consumidor não combina com a necessidade de transparência cada vez mais exigida pelo público cidadão.
* Jornalista e sócio fundador do Farol Jornalismo