A potência do diálogo e da composição ainda é obstruída pela tendência de nos conectar apenas com aquilo que confirma nossa percepção de realidade
A democracia é polifônica. A palavra polifonia se refere a uma classe de composição musical, caracterizada pela “sobreposição de muitas vozes ou instrumentos, exprimindo cada qual suas ideias, quase sempre em ritmos diferentes”. Mikhail Bakhtin, filósofo e pensador russo, abordando a polifonia no universo da enunciação em textos literários, ressalta que “é preciso reconhecer que várias vozes falam simultaneamente, sem que uma entre elas seja preponderante e julgue as outras”.
Não seria esse o desejo na construção de nossa Democracia? Não seria exatamente esse sentido polifônico que queremos para nossas práticas políticas? A necessidade de abertura de espaços simbólicos, físicos e discursivos, para a efetuação de uma verdadeira polifonia democrática, não seria precisamente a Ética necessária e endereçada a cada um de nós?
Nossa cultura parece não estar madura para afirmar e viver essa ética. Ainda não fizemos a lição de casa, a de exercitar a potência do diálogo, da composição. Nossas visões ficam obstruídas pelo chamado “viés de confirmação”, uma síndrome cognitiva, um efeito mental que faz com que nos conectemos apenas com aquilo que confirma nossa percepção da realidade.
Bahktin chamou esse traço cultural de “monologismo”: quando o modo de enunciação coletiva nega o direito de outros modos de consciência de existir, simplesmente não reconhecendo sua legitimidade. O monologismo impõe-se pela convenção de expectativas e modos de autoridade, que no mundo moderno se justificam por “resolver as coisas”: o que não é funcional, que não gera resultado mensurável, torna-se irrelevante.
Como dizia a filósofa política Hannah Arendt [1], aprendemos a ser humanos no processo de conversar sobre o que acontece no mundo e em nós mesmos. Nesse sentido, as narrativas vivas não são meros discursos ou constructos ideológicos, mas experiências reais a partir das quais se formam desejos que não encontram meios de expressão nas estruturas de domínio. Da mesma maneira, o filósofo Michel Foucault [2] nos lembra que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
[1] Hannah Arendt, em Homens em Tempos Sombrios
[2] Michel Foucault, em “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”, in: Ética, Sexualidade. Política. Ditos & Escritos V.
No entanto, qualquer narrativa autêntica, na medida em que expressa desejos vivos nas pessoas, corre o risco de ser sequestrada por discursos hegemonizantes. Palavras e imagens podem ser arrancadas de seu contexto e utilizadas para induzir outros significados, antagônicos aos desejos que antes a produziram. Temos de ficar atentos. Em tempos de alta conectividade entre as pessoas e densidade informacional, a velocidade de ocupação e captura de sentidos é imensa.
A vida se afirma em sua multiplicidade sendo ela mesma diversa, ampla e generosa. Como transpor isso para as relações humanas?
Talvez o primeiro passo seja reconhecer que as narrativas que hoje disputam o nosso imaginário não oferecem muitos caminhos para além das competições imediatas de poder. Tais rivalidades nos condicionam a ver escassez onde há abundância e a construir “inimigos” como pretexto para fugir das nossas próprias contradições. Somos induzidos a delegar nossa responsabilidade aos líderes e às estruturas de poder já conhecidas. A des-identificação com estas narrativas é necessária!
É possível criar um mundo abundante de condições e espaços de diálogo, de coexistência de diferenças, de autoatualização das diferentes perspectivas. É tempo de cultivarmos esta sabedoria dialógica na prática.
Para isso temos disponíveis valiosas fontes de recursos: proliferam pelo mundo as novas tecnologias de diálogo, de cooperação, de empreendedorismo criativo, de comunicação não violenta, de responsabilidade cívica [3]. São caminhos que resgatam essa compreensão radicalmente plural da condição humana e oferecem a possibilidade de desconstruir em nós as narrativas que negam as nossas potências de vida.
[3] Drica Guzzi, em O Cuidado de Si e o Mundo Distribuído – A apropriação dos meios de comunicação e as novas práticas políticas em rede
Aprender a ficar em silêncio e a observar faz parte do processo polifônico cotidiano. O silenciar atento produz espaços para o sustento dos encontros das múltiplas vozes.
Que nosso futuro possa ser inventado a partir da polifonia.
* Membro do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University
** Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, pesquisadora da Escola do Futuro da USP e autora do livro Web e Participação: a Democracia do século XXI
*** Ativista e pesquisadora de educação, sócia das empresas de pesquisa Box1824 e TalkInc., cocriadora do estudo Sonho Brasileiro da Política