Na semana passada, Paris viveu (mais uma vez) dias complicados. Dessa vez, ao invés do terrorismo, dos protestos contra reformas na legislação social proposta pelo governo francês ou mesmo da agitação da Eurocopa 2016 que começa em breve no país, os parisienses tiveram que enfrentam um inimigo bem íntimo: o rio Sena.
A cada centímetro que as águas do rio subiam, resultado do excesso de chuvas que atingiu parte da Europa ocidental nas últimas semanas, aumentava o temor de que a capital francesa revivesse o drama de 1911, quando o Sena subiu mais de oito metros e praticamente paralisou a cidade por quase um mês, destruindo estações de metrô e inundando residências e estabelecimentos.
Uma das medidas tomadas pelas autoridades para preparar a cidade para eventuais enchentes foi o fechamento dos museus do Louvre e d’Orsay, que ficam nas margens do rio Sena. Andares inferiores dos dois museus precisaram ser interditados e esvaziados para evitar dano ao acervo artístico e histórico, um dos mais ricos e importantes do planeta.
Ao ler a notícia sobre o fechamento dos museus, me veio à mente uma cena do filme “Os Caçadores de Obras-Primas” (2014), dirigido e estrelado por George Clooney, que trata (ainda que romanticamente) do esforço militar dos Aliados para recuperar e restituir obras de arte roubadas pela Alemanha Nazista por toda a Europa entre os anos 1930 e 1940.
A cena é marcante: bem no começo do filme, em meio ao barulho de explosões, podemos ver um grupo de pessoas carregando sacos de areia para erguer uma barreira de proteção para o afresco “A Santa Ceia”, de Leonardo Da Vinci, localizado no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).O convento foi severamente bombardeado no decorrer do conflito. A foto ao lado mostra o estrago feito pelas bombas no edifício e a parede de areia erguida pelos milaneses para proteger um dos seus maiores patrimônios artísticos.
Milão, assim como Florença e Nápoles, sofreu com a guerra, mas teve seu acervo relativamente ileso, graças à dedicação e ao cuidado de admiradores – que, em muitos casos, arriscaram suas próprias vidas para preservar pinturas, esculturas e construções de importância fundamental para a cultura mundial. No entanto, outras cidades na Europa e na Ásia não tiveram a mesma coisa: os acervos históricos e culturais de Dresden, Roterdã, Varsóvia, Xangai e Tóquio foram praticamente incinerados durante a guerra.
Óbvio que não podemos comparar as bombas que caíram sobre a Europa durante a guerra com a chuva histórica que cai sobre a França em 2016. Mas o episódio do esvaziamento dos museus em Paris nos conduz a uma reflexão sobre a ameaça das mudanças do clima sobre o nosso patrimônio histórico e cultural. Há duas semanas, a Unesco publicou relatório apontando que o aumento da temperatura média global, o derretimento das geleiras, a elevação dos mares e a intensificação dos fenômenos climáticos extremos ameaçam patrimônios mundiais por todo o planeta – não apenas aqueles com aspectos de importância natural, como as Ilhas Galápagos, mas também aqueles com importância artística e histórica, como Veneza.
O caso veneziano é um exemplo frequente nas análises sobre os impactos das mudanças do clima. Veneza é uma obra-prima de engenharia: construída a partir de ilhotas dispostas entre uma lagoa e o mar Adriático, a cidade precisou expandir seu território sobre a água para comportar o crescimento demográfico a partir do século IX. Isso foi feito a partir de aterros feitos a partir de blocos de pedras calcárias, suportados por pilares de madeira fincados no caranto, camada subterrânea de argila compactada. Esse esforço permitiu a ocupação de novos espaços, ainda que sob a ameaça sazonal de enchentes, que dificulta a vida, sem necessariamente inviabilizar o dia-a-dia dos venezianos.
No entanto, a elevação do nível do mar traz um desafio adicional para Veneza: no último século, a cidade afundou quase 23 centímetros, sendo que 7,3 deles foram em função do avanço dos níveis do mar Adriático. Pontos turísticos históricos da cidade, como a Piazza San Marco, frequentemente ficam debaixo d’água. Para se ter uma ideia do potencial de destruição das mudanças do clima, de acordo com o IPCC, se a temperatura média do planeta manter a tendência atual e avançar 4,8 graus Celsius neste século (com relação aos números pré-Revolução Industrial), o nível do mar poderá ser elevado em até 82 centímetros, com impactos significativos na maior parte das regiões costeiras do globo. Um aumento dessa magnitude seria catastrófico não apenas para Veneza, mas também para outras cidades costeiras com importância cultural mundial, como Nova York e Londres.
Mas a ameaça das mudanças do clima não se limita apenas ao avanço do nível do mar. O episódio da semana passada em Paris é um exemplo do tipo de medida que cidades em todo o mundo serão forçadas a tomar em situações climáticas extremas, como chuvas massivas e enchentes acima da média ou secas prolongadas com risco de incêndio natural. Esta questão será ainda mais delicada nas cidades mais pobres, que também possuem acervos artísticos e históricos relevantes, mas que não têm a infraestrutura e os recursos de Paris para proteger o seu patrimônio cultural. Nas próximas décadas, poderemos assistir à destruição de sítios históricos e obras de arte nos países pobres por causa de eventos climáticos extremos ou por situações catalisadas por essas alterações nos padrões climáticos – como, por exemplo, a demolição de Palmira, na Síria, causada pelo Estado Islâmico (saiba mais).
Em suma, o potencial destrutivo das mudanças do clima vai muito além da degradação do bem estar humano: estamos colocando em risco não apenas o nosso presente e futuro, mas também o nosso passado – e tudo aquilo que milênios de civilização humana legou à humanidade moderna.