Uma das consequências mais imprevisíveis – e perigosas – da mudança do clima é a propagação de doenças infecciosas causadas por vírus, bactérias, protozoários e parasitas multicelulares. Um exemplo do potencial danoso está sendo visto hoje no norte da Rússia, assolado por uma praga “adormecida” há mais de sete décadas.
No verão de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, a então União Soviética não sofria apenas com o ataque surpresa das forças militares da Alemanha nazista: na Rússia ártica, a chamada “praga siberiana” também ameaçava a vida de animais e pessoas na região.
A praga de carbúnculo – também conhecido como antraz – matou milhares de animais naquele ano. Causada pela bactéria Bacillus anthracis, o antraz é uma doença comum em animais herbívoros selvagens e domésticos, que também pode afetar os seres humanos quando expostos a animais, carne, lã ou couro infectados. A contaminação pela via aérea é considerada a mais grave, com taxa de mortalidade de praticamente 100%.
Quando o inverno chegou no norte da Rússia, os restos dos animais abatidos pelo antraz foram enterrados pela neve e permaneceram assim por 75 anos. Porém, as altas temperaturas observadas nas tundras russas no verão 2016 descongelaram as carcaças contaminadas, liberando as bactérias novamente ao ar livre.
Nas últimas semanas, milhares de renas no círculo ártico morreram contaminadas pela bactéria. Consequentemente, dezenas de pessoas foram internadas neste período com sintomas de intoxicação por antraz apenas na região autônoma de Yamalo-Nenets. Uma morte associada a esse surto (um jovem de 12 anos) já foi confirmada pelas autoridades russas.
O governo local declarou estado de emergência e providenciou a quarentena de rebanhos de rena e a relocação de comunidades em toda a região. “Estamos literalmente lutando pela vida de cada pessoa, mas a infecção está resistente”, disse ao Guardian Dmitry Kobylkin, governador de Yamalo-Nenets. “Ela voltou depois de 75 anos e tirou a vida de uma criança”.
De acordo com o bacteriologista George Stewart, da Universidade do Missouri, citado pelo The Washington Post, a bactéria do antraz se transforma em esporos quando congelados. Isso permite que ela resista a esse ambiente inóspito, aguardando temperaturas mais altas para que ela possa retornar ao seu estado natural – exatamente o que aconteceu neste verão.
“Tal aquecimento anômalo é raro para [a região de] Yamalo, e isso é provavelmente uma manifestação da mudança do clima”, opinou Alexei Kokorin, chefe do programa de clima e energia do WWF Rússia, também ao Guardian.
As temperaturas deste verão no norte da Rússia chegaram a quase 35 graus Celsius, uma situação meteorológica bastante incomum para esta região. Nos últimos dez anos, a temperatura média na Rússia cresceu 0,43 grau Celsius, com impacto maior nas áreas do extremo norte. O resultado disso foi a intensificação do degelo do permafrost, camada de solo congelado que cobre boa parte do território russo próximo ao Ártico.
Com o permafrost descongelado, o material orgânico nessa camada de solo (entre eles, os restos mortais de animais e pessoas contaminados com antraz no norte da Rússia) ficam expostos ao ar livre. Estima-se que o permafrost global pode conter o dobro do carbono que existe hoje na atmosfera terrestre: caso esse material orgânico seja decomposto, os gases resultantes desse processo poderão aumentar exponencialmente o aquecimento do planeta.