Estamos na fronteira em diversos temas da sustentabilidade, mas sem resolver o básico: o esgoto
Bactérias super-resistentes na Baía de Guanabara, assustando velejadores profissionais às portas da Olimpíada; doenças causadas por exposição a esgoto e água imprópria; bairros insalubres, em que valas de rejeitos passam debaixo das casas. O retrato desolador do saneamento no Brasil começa a mobilizar a opinião pública e lança preocupações sobre as possibilidades do desenvolvimento sustentável no País.
Contribuem para a paulatina tomada de consciência eventos como a crise hídrica de São Paulo, a tragédia que destruiu o Rio Doce em Minas Gerais e no Espírito Santo, o fracasso da despoluição da Baía de Guanabara e a disseminação de doenças ligadas ao mau uso da água, como a dengue e a zika. As populações mais afetadas por esses eventos são sempre as mais pobres e vulneráveis, sobretudo em um país desigual como o Brasil. Além de uma questão de saúde e economia, o saneamento está na base da segurança alimentar e hídrica.
Os efeitos de um saneamento deficiente são sentidos em todo o espectro social: as perdas de produtividade atingem a economia como um todo e a insalubridade urbana piora a qualidade de vida de todas as cidades. As praias poluídas e os rios fétidos apontam para o papel central que o saneamento desempenha no desenvolvimento de sociedades sustentáveis. “É preciso pensar em termos de saneamento ambiental, e não só compartimentar o saneamento básico, o reflorestamento e temas conexos”, diz Maria Luiza Ribeiro, coordenadora do programa Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica. “O sanear vem do chamamento para promover a saúde dos ecossistemas e, a partir dela, nossa própria saúde. Tudo está conectado.”
“Além de coleta de lixo, destinação correta de resíduos, reciclagem, água e esgoto tratados, o saneamento ambiental envolve a conservação das florestas e do entorno de nascentes, a manutenção de restinga e manguezais, a proteção dos ecossistemas, e assim por diante”, completa. Para a ativista, a população está percebendo cada vez melhor a conexão entre a deficiência do saneamento e a crise ambiental. O impacto do descaso com a saúde do ambiente transparece em crises como o esvaziamento de reservatórios ou a quebra de safra causada por variações climáticas bruscas – neste ano, o feijão está sendo particularmente afetado.
Ribeiro cita o cenário da mudança climática para vincular o saneamento às condições de sobrevivência em tempos de eventos extremos, como secas ou enchentes onde elas não costumavam acontecer. “Se tivermos o saneamento implementado, ou seja, rios despoluídos, áreas de encosta seguras, podemos minimizar os efeitos de eventos extremos e garantir mais resiliência para as cidades, comunidades, populações. Isto é, evitar o caos.”
ABAIXO-ASSINADO NACIONAL
Desde fevereiro, a SOS Mata Atlântica recolhe assinaturas, em parceria com outras entidades, para um abaixo-assinado abrigado na campanha Saneamento Já. O abaixo-assinado está conectado à Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2016, conduzida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Neste ano, a campanha está centrada no saneamento.
“A Campanha da Fraternidade chama atenção sobre o atual modelo de desenvolvimento, que está ameaçando a vida e o sustento de muitas pessoas, sobretudo dos mais pobres”, afirma o bispo Francisco Biasin, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso da CNBB. Segundo o bispo, o objetivo da campanha é “assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas, sobretudo os últimos e os pequenos, para favorecer políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro da casa comum que é a natureza”.
A escolha do tema decorre da encíclica Laudato Si’: Sobre o Cuidado com a Casa Comum, publicada pelo papa Francisco em maio de 2015. No texto, o papa condena a destruição do planeta pelo ser humano. No Brasil, país com dados deploráveis em saneamento, não é casual que a Campanha da Fraternidade esteja voltada para esse aspecto do cuidado com a casa comum.
A campanha Saneamento Já, que recebe assinaturas tanto pessoais quanto virtuais, tem como meta chegar a 1,5 milhão de nomes. Um dos seus objetivos principais é eliminar o conceito de rios de “classe 4”, segundo a Resolução 357 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Conhecidos como “rios mortos”, esses corpos d’água não têm limite de poluição e estão perdidos tanto para o consumo humano e animal quanto para a produção de alimentos e o lazer. Outras demandas incluem mudanças de legislação, já que atualmente a lei não permite fornecer serviços de saneamento em ocupações irregulares.
DIREITO FUNDAMENTAL
O saneamento básico é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2010 como direito humano básico. Nesse mesmo ano, um projeto para incluí-lo entre os direitos fundamentais da Constituição foi apresentado no Senado (PEC 07), mas arquivado em 2014. Indiretamente, porém, o saneamento está na Carta Magna: no artigo 6º, que determina os direitos fundamentais, consta a saúde. No artigo 225, lê-se que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.
No entanto, como outros direitos fundamentais, o saneamento está fora do alcance de muitos brasileiros. Mais especificamente, a metade: 51,4% da população, mais de 100 milhões de pessoas, não têm acesso a esgoto e 35 milhões não recebem água tratada, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) e do Instituto Trata Brasil (que participa da campanha Saneamento Já). O problema reflete também as disparidades regionais. Enquanto no Sudeste 91,7% da população pode contar com atendimento total de água, no Nordeste são apenas 54,51%.
A universalização do acesso a água e esgoto tratados está prevista no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), apresentado em dezembro de 2013. A elaboração do Plansab já constava na Lei de Saneamento Básico, editada em 2007 (Lei nº 11.445). O custo estimado para chegar aos 99% de abastecimento de água tratada, 88% dos esgotos tratados, 100% dos resíduos sólidos coletados e o fim dos lixões a céu aberto era de R$ 508,4 bilhões. Desses recursos, 59% viriam do governo federal e o restante de estados, municípios, iniciativa privada e órgãos internacionais.
A meta, porém, dificilmente será atingida. Em estudo publicado no início do ano, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) calculou que, seguindo no ritmo atual, o saneamento só será universal em 2054 (leia mais na Entrevista). O Instituto Trata Brasil, que lança anualmente um relatório de acompanhamento das obras de saneamento do Programa de Aceleração do Crescimento (De Olho no PAC), informa que mais de 50% dos projetos estão “em ritmo inadequado”: paralisados, atrasados ou nem mesmo iniciados. Comparando os dados do SNIS com levantamentos realizados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o Instituto Trata Brasil situa o nosso país em 11º lugar no ranking continental do saneamento, entre 17 países. “Estamos vivendo no século XIX quando o assunto é saneamento básico”, afirma Édison Carlos, presidente-executivo do instituto.
São muitos os problemas que separam o País da meta de universalização. Um deles está na dificuldade administrativa de muitas prefeituras. Grande parte da responsabilidade sobre a implantação do esgoto e do fornecimento de água recai sobre os municípios, por meio dos Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB). Poucas administrações locais têm a estrutura necessária para formular seu plano. Por isso, em janeiro o governo federal estendeu o prazo de elaboração dos planos até 31 de dezembro de 2017.
“As decisões deveriam ser debatidas pelos municípios em conjunto, ao menos os da mesma bacia hidrográfica”, afirma Édison Carlos. “Não podemos pensar apenas na cidade. Nossas águas circulam pra lá e pra cá sem entender a linha administrativa que nos separa.”
Outro problema é que a presença da rede de esgoto não garante que as casas serão ligadas aos canos. Segundo o Instituto Trata Brasil, 3,5 milhões de domicílios brasileiros não estão conectados às redes de esgoto que passam em suas ruas. “Esse é um problema muito grave no País, de Norte a Sul. Temos essa resistência mesmo em localidades de alta renda, o que mostra ser um problema não totalmente vinculado ao poder aquisitivo”, diz o executivo. “Por ser um serviço tarifado, as companhias de saneamento básico não podem obrigar a ligação”, completa.
O esgoto industrial também preocupa. Na Região Metropolitana de São Paulo, quase 10 milhões de litros de efluentes são despejados ilegalmente por hora, segundo pesquisa do Grupo de Economia da Infraestrutura e Soluções Ambientais, da Fundação Getulio Vargas (FGV), coordenada por Gesner Oliveira. “Um litro descartado pela indústria gera sete vezes mais poluição que um de esgoto doméstico. É uma poluição fenomenal”, diz Oliveira. “A Cetesb [Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental] é, das agências ambientais, a mais rigorosa do Brasil. Mas ela ainda não tem os meios adequados para fazer uma fiscalização forte.”
Segundo a Cetesb, o combate ao despejo ilegal de esgotos industriais na região é parte do programa de despoluição do Rio Tietê. Calcula-se que entre 1992 e 2008 a carga orgânica de esgoto lançada no Tietê (medida por demanda bioquímica de oxigênio [1]) foi reduzida de 369,2 para 26,4 toneladas por dia. Hoje, a Companhia está “atualizando a base de dados referentes à situação das cargas poluidoras industriais geradas e tratadas e iniciando as abordagens para elaborar um inventário de cargas poluidoras”.
[1] A demanda bioquímica de oxigênio (DBO5,20) mede a quantidade de oxigênio consumido por microrganismos na decomposição de elementos orgânicos
DIARREIA E INTELIGÊNCIA
O vínculo entre o saneamento básico e a saúde pública está expresso nos números: para cada 1 real investido no fornecimento de água limpa e esgoto, R$ 4 são economizados em tratamento de doenças, segundo publicação da Organização Mundial da Saúde. Moradores de áreas deficientes em saneamento faltam mais ao trabalho e têm produtividade menor. Segundo Édison Carlos, em determinados casos, esse número pode ser ainda mais expressivo, chegando a uma relação de 1 real investido em saneamento para R$ 40 poupados na saúde.
Também é possível calcular a proporção de internações hospitalares vinculadas ao saneamento e o efeito da expansão da rede sobre a saúde pública. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 400 mil pessoas foram internadas por causa de diarreia em 2013 no País, “a maioria crianças de 0 a 5 anos, e certamente grande parte desse número é resultado da falta de saneamento básico”, diz o executivo.
Por isso, um aumento de 1% no número de domicílios ligados à rede coletora de esgotos gera uma redução de 1,74% na taxa de internações hospitalares, segundo a pesquisa Relação entre Saneamento Básico no Brasil e Saúde da População sob a Ótica das Internações Hospitalares por Doenças de Veiculação Hídrica, realizada por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e publicada em março passado.
A idade mais vulnerável (até 5 anos) é também a mais determinante na formação da capacidade de aprendizado. Em consequência, o alto índice de internações por diarreia no Brasil tem impacto durável na formação do capital humano. Em um estudo, pesquisadoras da Universidade de Freiburg, na Alemanha, concluíram que crianças moradoras de áreas com coleta de esgoto adequada têm resultados 14% melhores em exames escolares do que suas colegas sem saneamento. Já a consultoria econômica Ex Ante calculou em 6,8% o impacto das deficiências de saneamento no atraso escolar dos estudantes brasileiros. Neste artigo, o médico Drauzio Varella escreve que “quadros diarreicos de repetição durante os primeiros cinco anos de vida podem privar o cérebro das calorias necessárias para o desenvolvimento pleno e comprometer a inteligência para sempre”.
A notícia boa é que, apesar de deficiente, o avanço do saneamento básico já produziu resultados animadores no campo da saúde. Entre 2003 e 2013, o número de internações hospitalares por doenças relacionadas ao saneamento inadequado teve redução de 44%. No lançamento dos dados, a gerente de estudos ambientais do IBGE, Denise Kronemberger, atribuiu o número ao “maior acesso da população ao saneamento básico”.
ESGOTO E TELEFÉRICO
É comum explicar a dificuldade em avançar o saneamento no Brasil pelo desinteresse das lideranças políticas, que veriam mais vantagens nas grandes obras vistosas, como escolas e estádios, em detrimento dos canos invisíveis do esgoto. Mas a mudança de percepção da sociedade civil pode alterar esse quadro.
Uma mensagem foi passada ao poder público pelos moradores da Rocinha, comunidade na Zona Sul do Rio de Janeiro. Em 2013, moradores iniciaram uma série de protestos sob a bandeira “Saneamento Sim, Teleférico Não”. Na época, o governo estadual havia anunciado a intenção de construir um teleférico semelhante ao do Complexo do Alemão, na Zona Norte.
“O movimento por saneamento na Rocinha vem desde a década de 60. Mas o anúncio das obras do PAC foi visto como uma oportunidade para dizermos ao governo onde queríamos que o dinheiro fosse investido”, diz o jornalista Eduardo Casaes, 48 anos, morador da Rocinha e participante das manifestações, que se tornaram conhecidas depois de atravessar os túneis que separam São Conrado e Rocinha de Gávea, Jardim Botânico e Leblon.
A Rocinha é cortada por inúmeras valas que carregam o esgoto, a maior delas conhecida como “Valão”. O saneamento da Rocinha envolveria o alargamento de ruas e a remoção de casas em áreas de risco, com impactos sobre a circulação do ar e a incidência de doenças como a tuberculose. Mesmo com a movimentação, diz Casaes, o governo estadual e a prefeitura não demonstraram inclinação a receber representantes ou ouvir as demandas da população local. “E, agora que o Estado está quebrado, o assunto morreu”, acrescenta.