O que a política e a energia têm em comum? Em ambas, há uma oportunidade histórica de estabelecer fluxos mais distribuídos e independentes de grandes centros de controle
Energia elétrica só vira assunto quando falta ou quando o preço aumenta. É que o acesso à energia se tornou tão trivial que nem reparamos em tudo o que se passa para que um simples celular seja carregado na tomada. Ficamos alheios ao impacto devastador de Belo Monte na vida dos povos indígenas do Xingu. E também não nos damos conta do potencial que a revolução energética oferece para superarmos os desafios sociais e ambientais, na vida no campo e nas cidades.
Essa relação inconsciente com nossa matriz energética é semelhante à que estabelecemos com um outro tipo de energia: o nosso poder político. Nosso ato político mais elementar, o voto, também entrou numa espécie de piloto automático. Não honramos o direito conquistado nem fazemos bom uso das infinitas possibilidades que existem além das urnas para transformar frustrações em ações efetivas para alguma mudança.
Que outras semelhanças podemos observar entre estes dois assuntos: Democracia e Energia?
Assim como a atual matriz energética utiliza os recursos naturais disponíveis abaixo das suas potencialidades, a matriz de nossa Democracia ainda está desconectada do potencial criativo disponível em nossa natureza humana. Isso porque ambas matrizes, atualmente centralizadas e controladas por pequenos grupos, muitas vezes servem para perpetuar privilégios.
Há esperança de que esta lógica possa ser revertida na medida em que a revolução das tecnologias sirva ao despertar de uma consciência ampliada dos riscos que a vida humana enfrenta.
Sim, temos a oportunidade histórica de estabelecer fluxos mais distribuídos e independentes de grandes centros de controle. Está ao nosso alcance a escolha de um futuro em que indivíduos, comunidades e empresas possam cooperar mais, com menos intermediários, usufruindo de mais abundância de recursos, causando menor impacto ambiental.
A imagem de uma cidade com ampla utilização de energia solar ilustra esse futuro desejável. Se qualquer telhado pode se tornar gerador de energia, podemos também criar outras maneiras mais benéficas de relação com a natureza.
Voltemos à Democracia que, em essência, é a possibilidade de escolher juntos o nosso futuro. De onde pode advir a força de uma renovação em nossa vida política tão potente quanto a revolução energética promete ser? De onde pode emergir um poder distribuído realmente capaz de modificar o curso de nossos destinos?
O ponto de partida é reconhecer que esse futuro já está presente. É um futuro que germina quando optamos por alimentos locais e saudáveis; quando aprendemos a cuidar integralmente de nossa saúde; quando a família vai a um parque; quando reduzimos o consumo de bens supérfluos.
O futuro desejável desenvolve raízes quando contribuímos com uma horta comunitária; quando ocupamos o espaço público com arte e cultura; quando optamos por serviços de economia compartilhada; quando vamos de bicicleta ou transporte público ao trabalho. E floresce a cada vez que comunicamos os benefícios de todas essas práticas para o mundo à nossa volta, mobilizando sonhos e vontades de participar de um outro destino possível.
São experiências que, ao renovar nossas energias vitais, dissolvem o “pensamento fóssil” que nos impedia de acessar os potenciais humanos e naturais que podemos ter em abundância.
Lembremos do dito popular: “O que os olhos não veem o coração não sente”. Não se trata mais de seguir uma ideologia baseada em abstrações sobre a realidade. São mudanças de hábito e atitude que já estão ao nosso alcance, e é a partir dos benefícios que estas mudanças causam em nós que emerge o desejo e a visão deste futuro.
Assim como um mosaico feito de incontáveis peças singulares inicialmente dispersas numa mesa, o conjunto dessas práticas, se observadas como partes de um todo, compõem uma imagem surpreendentemente bela da vida que já podemos viver neste planeta.
E então podemos reconhecer que, assim como milhares de painéis solares podem tornar Belo Monte desnecessária, nossas escolhas democráticas cotidianas mais conscientes podem de fato destituir grupos que usurpam nossas instituições democráticas.
Enquanto os exemplos vivos de um futuro desejável renovam a Democracia, a participação democrática é energia em movimento para tornar possível o nosso desejo.