Falta de um norte e de ações mais bem articuladas entre si dificulta o avanço das renováveis no Brasil
Para quem não sabe a que porto se dirige, não existe vento favorável”. A frase do filósofo e político romano Sêneca sintetiza de forma muito precisa o impasse que a matriz energética brasileira vive na entrada do século XXI. Os redatores de discursos do Planalto, em sua retórica nacionalista protocolar, adoram reafirmar as credenciais do Brasil como um dos líderes globais em energias renováveis, incluindo hidrelétricas. Mas a verdade é que, apesar de nossa considerável dianteira – ano passado usamos 41,9% de energia mais limpa enquanto a média mundial foi de míseros 13,8%, nas contas da Agência Internacional de Energia –, estamos empacados.
Na virada do milênio, a matriz brasileira tinha 40,6% de renováveis e, durante um bom tempo, parecia seguir na direção certa – chegamos em 2009 com 46,8% –, mas, daí em diante, a coisa degringolou. Com as projeções oficiais para este ano em 41,2%, no fim das contas, todo o avanço nesses 16 anos se resumirá a meio ponto percentual. Nada indica que estejamos perto de virar esse jogo. Segundo as projeções do último Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE 2024), em 2024 teremos 45,2% de energia renovável (veja a evolução interna de energia neste gráfico).
Ou seja, se tudo correr bem, daqui a nove anos teremos uma matriz quase tão renovável quanto a que tínhamos oito anos atrás!
100% EM 2050
Não precisaria ser assim. Em agosto, o Greenpeace publicou a terceira edição do relatório [R]evolução Energética. Nele, a ONG afirma que é possível chegarmos a 100% de renováveis até 2050. Apenas uma edição atrás, as projeções indicavam que não seria viável abrir mão dos fósseis – que ainda responderiam por um terço da energia consumida pelos brasileiros em meados do século.
“Quando começamos o [R]evolução Energética, em 2007, as perspectivas eram bem diferentes. O panorama está mudando muito rapidamente”, afirma a pesquisadora Larissa Rodrigues, que coordenou a elaboração do relatório. A maior mudança diz respeito à competitividade das fontes limpas. “O custo é uma questão chave. Estamos vendo uma queda acelerada. Da edição de 2013 para cá, o preço da eletricidade eólica, por exemplo, caiu 40%. É muito expressivo”, informa.
E se preço parece não ser mais o problema que um dia já foi, tampouco temos falta de matéria-prima com que trabalhar. O Brasil está muito bem aquinhoado: só em ventos, temos o equivalente a 143,5 gigawatts, segundo o Atlas do Potencial Eólico Brasileiro.
Para colocar esse número em contexto, uma consulta ao Banco de Informações de Geração (BIG) da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), feita na terceira semana de setembro, informava que o sistema elétrico brasileiro tinha potência instalada de 147,8 gigawatts – dos quais 9,4 gigawatts eólicos. Colocando de lado a notória intermitência dos ventos daria, ao menos em tese, para quase dobrar a geração. E isso sem nem encostar em outras fontes que temos de sobra como: solar, hídrica ou biomassa.
Segundo o Atlas Brasileiro de Energia Solar, cada metro quadrado do território brasileiro recebe entre 1.500 e 2.500 quilowatt-hora de energia solar. Isso é aproximadamente o dobro da Alemanha (900 a 1.250 quilowatt hora por metro quadrado). Uma conta que só faz ressaltar o sentimento de 7×1 quando se encara o fato de que o Brasil tem irrisórios 0,02 gigawatt em energia fotovoltaica, enquanto o país europeu está em quase 39,7 gigawatts.
Não bastasse isso, as renováveis se integrariam a base hídrica da matriz nacional – hidrelétricas representam 61,2% da potência instalada – como uma luva. “Se você pegar um gráfico da variação mensal dos ventos no Brasil e comparar com um gráfico da variação hidrológica perceberá que existe uma complementariedade muito forte. Isso não acontece em outros países”, explica o diretor do Instituto Ilumina, Roberto d’Araujo. Ou seja, nos meses em que temos menos chuvas venta mais e vice-versa.
FATOR POLÍTICO
Com tanto a favor, por que a energia renovável não deslancha de uma vez por todas? As explicações, evidentemente, são complexas. Mas um ponto importante está na falta de uma estratégia bem alinhada.
“Oficialmente, o governo tem planejamento de longo prazo mas, se você ler os documentos produzidos pela Empresa de Pesquisa Energética [ EPE] [1], vai encontrar só projeções. Eles não têm visão de futuro”, afirma Kamyla Borges Cunha que vem acompanhando os altos e baixos da matriz nacional há cerca de uma década para o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Essa falta de ousadia é mais grave do que soa. “[Uma visão de futuro] é importante porque sinaliza o que o priorizar em termos de investimentos e de subsídios. Sem isso, a porta fica aberta para lobbies de ocasião”, prossegue.
[1] Órgão ligado do Ministério de Minas e Energia responsável por subsidiar os processos de tomada de decisão relacionados à matriz energética
É uma crítica que encontra eco na visão da secretária executiva do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), Andrea Santos. “[O governo] usa uma linguagem sem ambição [nos documentos de planejamento energético]. Eles falam mais em ‘garantir’ do que em ‘estimular’ ou ‘promover’”, sintetiza. O PDE 2024, por exemplo, cita o primeiro termo – e derivados – 39 vezes, enquanto os outros aparecem em 25 ocasiões.
O governo nega que falte planejamento. Segundo o superintendente da EPE, Jeferson Soares, manter o nível de renovabilidade da matriz brasileira já é um desafio. Ele admite que haja problemas a resolver, mas diz que será possível promover a expansão do setor de modo a atender as metas do Acordo de Paris [2]. “As diretrizes de planejamento do setor elétrico brasileiro têm priorizado a expansão de fontes renováveis na matriz energética brasileira. No longo prazo, essa diretriz é claramente explicitada nos compromissos assumidos pelo Brasil na COP 21”, assegura.
[2] Negociado no final do ano passado durante a COP 21, o Acordo de Paris tem como meta limitar a elevação das temperaturas médias globais a 1,5 grau em relação aos níveis pré-industriais
A despeito dos compromissos assumidos pelo governo, o coordenador de campanhas da 350.org, Juliano Bueno de Araújo, aponta que a política energética apresenta movimentos erráticos. “Por um lado, temos um governo que ratifica o Acordo de Paris e, por outro, continua incentivando hidrocarbonetos. É, no mínimo, uma dissonância”, diz ressaltando que as políticas de incentivo à exploração de gás de xisto [3]são um sintoma dessa incongruência. “Já temos 372 cidades brasileiras impactadas”, lamenta.
[3] Gás natural armazenado em um tipo de rocha chamado xisto argiloso, ou folhelho, cuja exploração exige o emprego de uma técnica ambientalmente problemática chamada fraturamento hidráulico
Um bom exemplo das reviravoltas às quais o planejamento energético brasileiro está sujeito vem dos biocombustíveis. Depois de viver um boom nos tempos do Pró-Álcool [4], o etanol quase desapareceu antes de ser resgatado pela chegada dos motores flex e pela alta do petróleo no começo dos anos 2000. Depois da descoberta do pré-sal, o entusiasmo em torno dos biocombustíveis esfriou novamente: “Investimos em uma iniciativa inovadora que chegou quase a acabar porque priorizamos o petróleo”, diz Andrea Santos.
[4] O Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool) foi lançado pelo governo brasileiro em 1975 como resposta à crise do petróleo dos anos 1970
CORRENDO ATRÁS
Sem um rumo definido, a impressão é que ficamos andando em círculos. “Esse é um problema estrutural. O governo brasileiro se limita a correr atrás do prejuízo”, resume Larissa Rodrigues, do Greenpeace, apontando como paradigmática a forma como Brasília lidou com os desdobramentos do Apagão de 2001 [5]. “Com isso inundamos o país de termelétricas. Em 2014 tivemos problemas causados pelas térmicas e, novamente, estamos correndo atrás do prejuízo”, reclama.
[5] Crise do sistema elétrico brasileiro que se estendeu entre 2001 e 2002 e foi caracterizada pelo risco de um racionamento por meio de cortes no fornecimento de eletricidade
Quem passou pelo racionamento de 2001 certamente se lembra que as térmicas foram a tábua de salvação da época. A potência instalada em termelétricas quase dobrou em um período de cinco anos – de 7 gigawatts em 2001 para 13,4 gigawatts em 2005. Foi uma solução que resolveu o curto prazo sem cuidar do futuro. “Embora tenha, de fato, dado mais segurança para a matriz, essa diversificação teve um custo elevado”, explica o presidente executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), Rodrigo Sauaia.
Segundo Roberto d’Araújo, isso criou um paradoxo dentro do sistema elétrico. Como sua energia é cara, as térmicas recebem para ficar desligadas a maior parte do tempo – pense nisso como um seguro – enquanto as hídricas seguram o tranco. “O governo contratou uma oferta cara e continuou esvaziando os reservatórios”, protesta. O resultado é uma espécie de profecia autorrealizada que não só suja a matriz como deixa a conta mais salgada.
COM ATRASO
Para Andrea Santos, a manutenção de políticas conservadoras nos levou a um descuido crônico em relação à construção de uma indústria nacional de energia renovável. “Em termos de capacitação técnica para produzir, instalar e operar sistemas de energia renovável, o Brasil está muito atrás do resto do mundo. Perdemos o timing”, completa.
Num setor onde todas as decisões são de longo prazo, sai caro chegar depois. “O Brasil está 15 anos atrás dos países desenvolvidos”, admite Rodrigo Sauaia. “Em um primeiro momento, o que faltou foi uma diretriz governamental e vontade política para que os investimentos tivessem acontecido”, diz. O presidente da Absolar informa que somente nesses últimos dois anos os fabricantes de equipamentos para a geração fotovoltaica começaram a anunciar investimentos no Brasil. “Ainda não temos uma boa política industrial para incentivar a produção de módulos solares no País. Nossos insumos chegam a ser tributados em 40%, o que nos deixa menos competitivos”, pondera.
Não que as fontes renováveis estejam completamente abandonadas em termos de apoio governamental. Existem incentivos. “A solar e a eólica são, inclusive, tratadas como ‘fontes incentivadas’ e recebem descontos importantes nas tarifas pagas para usar os sistemas de transmissão e distribuição”, explica Kamyla Borges. Mesmo assim, a falta de um norte dificulta. “Sem uma meta clara de onde chegar cria-se uma insegurança. Eu posso ter um apoio hoje e não ter mais amanhã”, continua.
INCONSISTÊNCIA
Poder contar com maior constância é especialmente importante em projetos de menor porte como são, em geral, os de energia renovável, avalia o presidente executivo da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel), Leonardo Sant’anna. “As grandes usinas recebem atenção de forma concentrada porque são projetos estruturantes. Quem é menor precisa de um apoio mais constante”, avalia. Essa falta foi sentida após o encerramento do Programa de Incentivo às Formas Alternativas de Energia (Proinfa) que, entre 2004 e 2010, deu um empurrão para projetos de eólicas, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCH). “Durante o programa, houve um maior avanço, mas recentemente o desenvolvimento tem sido menor que o possível”, diz.
Foi graças ao Proinfa – e aos 1,3 gigawatt que este programa contratou – que o setor eólico conseguiu engrenar e, agora, parece estar caminhando com as próprias pernas. No final de agosto, o Brasil chegou a marca de 10 gigawatts em potência eólica instalada e já tem contratos assinados para chegar a 18,4 gigawatts até 2020 com um leilão marcado para dezembro que deve garantir o crescimento pelos próximos anos. “[O Proinfa] proporcionou a primeira entrada de grandes projetos eólicos no Brasil quando eles ainda não eram competitivos”, reconhece a presente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum.
Graças a esse apoio inicial a indústria de equipamentos eólicos pôde entrar no país e, desde 2010, já investiu R$ 48 bilhões para chegar a 80% de produção nacional. “A nacionalização foi fundamental no processo de expansão da eólica”, afirma a executiva a ABEEólica. Sem isso, os projetos ficam à mercê das andanças do câmbio que pode ter um impacto significativo.
Há outros entraves de ordem bastante prática como desencontro entre projetos de geração e de transmissão. “Temos tido muita restrição quanto a transmissão. Esse é um dos problemas que precisamos resolver no médio prazo”, conta Sant’anna. Elbia Gannoum da Abeeólica também considera esse um ponto fundamental para agilizar o crescimento das renováveis. “A disponibilidade de linhas de transmissão, principalmente no Nordeste e no Sul do País, é nosso grande gargalo”, diz.
Nem sempre é uma questão de dinheiro. Há pontos de ordenamento que também dificultam bastante. Para Sant’anna, um dos nós está no licenciamento ambiental. Não é que ele advogue processos mais frouxos, o problema é que há regras desencontradas. “Cada estado tem uma regra diferente. Se todos seguissem os mesmos parâmetros, facilitaria a vida do investidor, que saberia o que precisa entregar, e a do próprio licenciador”, propõe.
A solar fotovoltaica é um bom exemplo de como a regulação pode alavancar – ou barrar – indústrias inteiras. Desde que a Resolução Normativa 482 da Aneel regulamentou a ligação de sistemas de microgeração à rede de distribuição, as vendas dispararam. “Até o final de 2011, tínhamos só quatro sistemas de geração distribuída conectados. Em 2015 já eram 1.788 e, este ano, a expectativa é de um crescimento de 800%”, comemora Sauaia.
A luta agora é para a criação de linhas de financiamento que acelerem a adoção de projetos distribuídos. “São investimentos relativamente elevados e que só se pagam no longo prazo”, diz Sauaia, contando ainda que a Absolar tem pleiteado que o governo federal crie linhas específicas. “Seria possível que os próprios equipamentos fossem usados como garantia, como acontece, por exemplo, nos financiamentos automotivos”, argumenta.
Na opinião de Juliano Bueno de Araújo, para reinventar a atividade de geração por meio de fontes renováveis e dos sistemas distribuídos, seria preciso desviar-se radicalmente do modelo de grandes empreendimentos que domina o setor energético. “Na distribuída, eu não tenho envolvimento de grandes grupos econômicos bem estabelecidos politicamente e que querem ser donos do negócio de energia”, avalia. Para ele, esses grupos usam sua influência para evitar que governo saia da rota. “Se a gente pegasse as linhas para grandes empreendimentos de energia do BNDES e colocasse tudo em geração diversificada e autonomia, resolveria o [problema] no País. Mas isso não gera lucros para esses grupos empresariais”, diz.
Ao fim, se quisermos mesmo destravar o futuro, será preciso vencer essa oposição. “Há muitos interesses consolidados que não querem que as coisas mudem. As lutas terão de ser vencidas uma a uma”, diz Larissa Rodrigues, do Greenpeace. E ela reconhece que não será nada fácil: “Vamos precisar de uma frente de trabalho forte e persistente”.