Começo dos anos 1960. Imagine que você trabalha em uma agência de publicidade. Um grande cliente corporativo quer lançar uma nova campanha para uma de suas marcas. O cliente? O suprassumo dos grandes contratos publicitários da época: uma petrolífera gigantesca, uma das maiores de seu setor no mundo.
O anunciante quer destacar a potência do seu combustível como diferencial competitivo da marca. Afinal, a melhor companhia de petróleo dos Estados Unidos precisa comercializar o combustível mais potente do mercado. Alguma ideia para o anúncio?
Há 54 anos, um publicitário teve uma ideia, que certamente deve ter sido aprovada pelo seu cliente. Eis o resultado.
“A cada dia, Humble fornece energia suficiente para derreter sete milhões de toneladas de geleira!”, destacava o anúncio publicado pela Humble, uma refinaria que pertencia à Exxon (hoje ExxonMobil), na edição de 02 de fevereiro de 1962 da antológica revista Life. “A enorme geleira permaneceu congelada por séculos. Mas a energia do petróleo fornecido pela Humble – e convertida em calor – pode descongelá-la na média de 80 toneladas a cada segundo!”
Singelo, não?
Meio século depois, provavelmente a grande geleira retratada no anúncio não existe mais. Desde 1951, antes mesmo da publicação deste anúncio, a temperatura média da Terra vem aumentando a um ritmo de 0,12 grau Celsius por década, resultando no derretimento de geleiras e coberturas de neve em vários pontos do mundo. De acordo com a Agência Espacial Norte-Americana (NASA), desde 2002, regiões como a Groenlândia e a Antártida estão perdendo sua cobertura de gelo em um ritmo de, respectivamente, 287 e 134 gigatoneladas por ano.
O leitor de 1962 pode ter achado a analogia do anúncio um exagero. Afinal, à época, a ciência do clima ainda engatinhava e o debate público sobre os impactos do uso de combustíveis fósseis sobre o meio ambiente era inexistente. Custaria quase três décadas para que a ciência pudesse apontar para os desequilíbrios que o consumo desse tipo de combustível estaria acarretando ao clima global. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) foi assinada somente três décadas depois deste anúncio da ExxonMobil na Life.
No entanto, se o público daquele anúncio demorou mais de três décadas para perceber o impacto do uso de combustíveis fósseis sobre o clima, o seu anunciante já tinha conhecimento consolidado sobre isso bem antes da assinatura da UNFCCC. Em outubro de 2015, o jornal The Los Angeles Times e o site Inside Climate News denunciaram que a ExxonMobil já tinha informações técnicas decorrentes de pesquisas próprias apontando para os riscos do uso de combustível fóssil para o clima terrestre há, pelo menos, 40 anos.
“Existe um entendimento científico geral de que a maneira mais provável a qual a humanidade está influenciando o clima global é através do dióxido de carbono [CO2] liberado pela queima de combustíveis fósseis”, apontou o cientista James F. Black, especialista do setor de pesquisa e engenharia da antiga Exxon, para o comitê de gestão da empresa em julho de 1977. Um ano depois, Black apresentou suas conclusões para gerentes e demais cientistas da companhia petrolífera, estimando que, se a concentração de CO2 na atmosfera dobrasse, a temperatura média da Terra poderia aumentar entre dois e três graus Celsius – nos polos terrestres, o aumento de temperatura poderia chegar a quase 10 graus Celsius.
Nos anos 1980, a Exxon realizou uma ampla pesquisa sobre as emissões associadas às operações da empresa e sobre cenários climáticos possíveis a partir de modelagem científica. Porém, no final daquela década, o esforço de pesquisa foi encerrado abruptamente. O ambiente científico e político sobre o tema fora da empresa tinha mudado.
Nesta época, estudos de físicos, climatólogos e meteorologistas em todo o mundo apontavam para as mesmas conclusões de Black em 1977. Incentivadas por essas pesquisas, as Nações Unidas criaram o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês) em 1988, com o objetivo de sistematizar essas informações e registrá-las tecnicamente para embasar possíveis iniciativas políticas no âmbito multilateral. O primeiro relatório do Painel, publicado em 1990, serviu como base para o esforço de negociação do texto da UNFCCC, que culminou com sua assinatura durante a Rio-92.
Porém, mesmo com o volume de informações e pesquisas sobre o tema, a ExxonMobil resolveu tomar o caminho contrário: ainda que tivesse consciência plena da gravidade do problema, a empresa destinou milhões de dólares nas décadas seguintes para alimentar uma campanha de desinformação pública e para pressionar lideranças políticas dependentes de suas contribuições eleitorais para impedir o avanço de qualquer medida de restrição das emissões de carbono.
Além disso, gigantes do petróleo como a ExxonMobil atuaram intensamente nos bastidores das negociações da UNFCCC como lobistas para reduzir a ambição dos compromissos sobre redução de emissões, aproveitando seu acesso privilegiado aos negociadores oficiais – em alguns casos, representantes dessas empresas chegaram a fazer parte das delegações oficiais dos países membros da UNFCCC durante as conferências sobre clima (saiba mais).
Hoje, 97% dos estudos científicos publicados em revistas especializadas concordam com a correlação entre o aumento na temperatura média da Terra desde os anos 1950 e o aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera terrestre decorrente de atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis. No entanto, tanto a ExxonMobil como outras companhias petrolíferas continuam minimizando publicamente essa correlação, inclusive para seus investidores, e rejeitando iniciativas mais abrangentes para a restrição do uso de combustíveis fósseis, uma medida fundamental para conter o aquecimento global neste século.
O impacto dessa conduta das empresas do petróleo não é pequeno, vide a situação do debate público sobre mudança do clima nos Estados Unidos, coração da indústria petrolífera global. Lá, o debate político sobre o tema cultiva um tipo de radicalização comum aos chamados “grandes temas sociais”, como a legalização das drogas, o direito ao aborto e o casamento civil de pessoas do mesmo sexo: ou você apoia ou você não apoia a ciência do clima – ou seja, se apoia, provavelmente você tende a se alinhar com os democratas; se não, possivelmente você tenha mais apreço pelos republicanos. Inserido nessa disputa entre conservadores republicanos e liberais democratas (uma simplificação da realidade política de cada partido e das dezenas de outros partidos sem representação política no país), o problema climático tornou-se menos uma questão de constatação científica e mais uma questão de opinião política (saiba mais).
O setor do petróleo é um grande contribuidor de campanhas eleitorais nos Estados Unidos, destinando recursos principalmente para o Partido Republicano, que historicamente se opõe a medidas para reduzir emissões e contesta a ciência sobre mudança do clima, rejeitando a responsabilidade humana sobre o aquecimento global. Em situações mais radicais, que não são raras, lideranças republicanas sequer reconhecem que a mudança do clima esteja efetivamente acontecendo – como é o caso do atual candidato republicano para a presidência do país, o empresário Donald Trump (saiba mais).
Nos anos 2000, a influência do setor sobre este partido foi crucial para que os Estados Unidos, sob o comando do então presidente republicano George W. Bush, rejeitassem participar do Protocolo de Quioto, que estabeleceu metas de redução de emissões para diversos países desenvolvidos, em particular os Estados Unidos. A saída do governo norte-americano do esforço de Quioto foi um baque duríssimo aos esforços internacionais para conter a mudança do clima na década passada, atrasando e dificultando a implementação de medidas de redução de emissões.
Em suma, a postura negacionista do setor petrolífero nas últimas décadas foi um fator crucial para que o desafio da mudança do clima ganhasse contornos ainda mais dramáticos neste período, ao desinformar o público e atuar junto aos políticos para bloquear medidas e dificultar negociações internacionais sobre o tema. Assim, a responsabilidade da indústria fóssil na questão climática não se resume apenas o impacto de seu negócio sobre o clima em si – o setor também é responsável pelo retardamento de respostas por parte de governos e empresas para o problema nas últimas décadas.
Em artigo anterior, apontei para a similaridade de postura e estratégia entre a indústria fóssil hoje e a indústria do tabaco no passado. Da mesma forma que as petrolíferas atuam de maneira articulada para desacreditar a ciência sobre mudança do clima, os gigantes tabagistas financiaram pesquisas falsas para contrapor estudos que associavam o consumo de cigarro com a ocorrência de diversos tipos de câncer a partir dos anos 1950. No plano político, as empresas do setor apoiaram financeiramente políticos para rejeitar medidas públicas para restringir o comércio e o consumo de cigarro em diversos países. E, somado a tudo isso, essas empresas despejaram bilhões de dólares em publicidade para incentivar o consumo de cigarro.
O impacto desse comportamento das empresas do tabaco foi dramático para os seus consumidores. Entre 1900 e 1964, o consumo per capita de cigarros nos Estados Unidos, o principal mercado nacional desse produto no século XX, escalou de 54 para 4,3 mil unidades anuais. De forma similar, a média de mortes causadas por câncer pulmonar aumentou consideravelmente entre 1930 e 1990, de 4,9 para 75,6 a cada 100 mil casos (números do Centro de Controle de Doenças dos EUA). Hoje, a cada cinco mortes nos Estados Unidos, uma está associada ao consumo de cigarro.
Nos últimos 20 anos, a indústria do tabaco vem sendo forçada pelos tribunais a pagar a conta pela sua irresponsabilidade pública. Em 1999, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos processou a Philip Morris e outras gigantes do setor por conduta ilegal, acusando-as de desinformar o público durante mais de 50 anos sobre os riscos do fumo e o potencial de vício da nicotina e de direcionar publicidade para o público mais jovem, entre outros. Em 2006, a Justiça norte-americana considerou as empresas culpadas por fraude e violação às leis referentes à conduta corporativa, condenando-as a pagar uma multa de US$ 10 bilhões. Na esfera privada, diversos consumidores e associações de consumidores de cigarros entraram com processos contra as empresas, conseguindo indenizações milionárias na Justiça nos Estados Unidos e em diversos países europeus.
Hoje, a indústria do tabaco sofre com restrições crescentes à produção e comercialização de cigarros em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil. O poder público tem investido recursos e esforços em campanhas educacionais para afastar os mais jovens do vício do fumo e apoiar os fumantes no processo de desintoxicação. Aos poucos, essas medidas vêm surtindo efeito em matéria de saúde pública, com a redução gradual no número de casos anuais de câncer e de óbitos associados ao consumo de cigarro.
O exemplo do enfrentamento à indústria do tabaco pode servir como inspiração para que a indústria da energia fóssil seja responsabilizada pelo impacto de seu negócio sobre o clima e pela conduta pública fraudulenta. Os primeiros passos nessa direção estão começando a ser dados.
Nos Estados Unidos, a procuradoria-geral do Estado de Nova York iniciou em 2015 uma investigação criminal contra a ExxonMobil para determinar se a empresa mentiu ao público sobre o impacto dos combustíveis fósseis sobre o clima global e se ela omitiu de seus investidores o quanto esse impacto poderia ameaçar o negócio, impactando aqueles que investem nele. Já em julho passado, a Comissão de Direitos Humanos das Filipinas, país que vem sofrendo com a intensificação de eventos climáticos extremos nos últimos anos, abriu procedimento oficial para investigar a responsabilidade de 47 grandes empresas petrolíferas e mineradoras por violações aos direitos humanos causadas pela mudança do clima (saiba mais).
No plano internacional, no entanto, ainda não existe algo similar ao que a Organização Mundial da Saúde (OMS) implementou para facilitar a responsabilização da indústria tabagista pelos danos causados pelo seu negócio. O artigo 19 da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (FCTC, sigla em inglês) da OMS permite aos países processar legal e financeiramente as empresas do setor do tabaco pelos seus abusos, auxiliando-os na restituição dos custos de saúde pública associados a doenças e óbitos decorrentes do consumo de cigarro. Se a UNFCCC tivesse alguma provisão legal nesse sentido, a responsabilização legal da indústria fóssil pelos seus abusos poderia ser facilitada de maneira significativa, principalmente por parte dos países mais pobres – que, mesmo sendo os que menos contribuíram historicamente para a mudança do clima, são os mais afetados pelos seus impactos.
A indústria fóssil é parte crucial da estratégia para conter o aquecimento do planeta e evitar mudanças mais abruptas do clima. A questão aqui não é criminalizar o setor, mas engaja-lo na busca de soluções que superem a dependência da fonte fóssil de energia. Não há mais espaço para que essas empresas neguem a realidade da mudança do clima e a responsabilidade de seu negócio sobre esse problema e continuem tentando desinformar o público. Para as empresas que continuam atuando de maneira irresponsável, não há outro caminho senão a penalização legal.
Precisamos disso não apenas pelo bem desta e das próximas gerações, mas também pela justiça por aquilo que já sofremos e perdemos por causa da mudança do clima – como aquela geleira gigantesca do anúncio da ExxonMobil, por exemplo.
*Bruno Hisamoto é mestre em Relações Internacionais pela USP, pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-EAESP (GVces) e colaborador da Revista Página22.
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