“Esta será uma COP de ação”, afirmava o ministro marroquino Salaheddine Mezouar, presidente da Conferência do Clima de Marrakech (COP 22) antes da abertura dos trabalhos, no último dia 07. O contraste era prático: até a Conferência de Paris, no ano passado, o desafio era político – costurar um entendimento em torno de um novo regime internacional para reduzir as emissões globais de carbono nas próximas décadas em todo o mundo. Com a aprovação do Acordo de Paris, o desafio passou a ser operacional: tirar esse entendimento diplomático do papel.
Assim, a expectativa era de que Marrakech não fosse palco de declarações políticas de impacto, mas sim de discussões de caráter técnico. Até o 2º dia de encontro, alguns ainda tinha essa esperança, mas a vitória do empresário – e cético da mudança do clima – Donald J. Trump na eleição presidencial nos Estados Unidos causou um verdadeiro terremoto do outro lado do Atlântico.
Cumprindo aquilo que era vaticinado por pesquisas de opinião e pelos analistas políticos nos Estados Unidos, a expectativa geral da maioria esmagadora dos negociadores e observadores da COP 22 era a de que Hillary Clinton se consagraria a primeira mulher eleita presidente do país, sucedendo Barack Obama no comando da Casa Branca. Na manhã de 09 de novembro, dia seguinte à votação nos Estados Unidos, o ambiente tinha mudado completamente. A partir daquele, a COP 22 não se tratava apenas de um encontro técnico para tratar de questões operacionais da implementação do Acordo de Paris, mas sim de um momento crucial para garantir a sua sobrevivência política pelos próximos quatro anos.
Encerrada na madrugada de sábado (19/11), a COP 22 teve que se repensar enquanto acontecia. O choque da surpresa Trump foi se diluindo nos dias seguintes com um revigoramento da vontade política de governos e da sociedade civil organizada presente em Marrakech. Ao final, o temor de que Donald Trump detone uma crise na agenda internacional sobre clima continua, mas a disposição daqueles fora dos Estados Unidos em manter vivo o Acordo de Paris deixou claro que a oposição isolada do governo Trump não será suficiente para derrubar o trabalho multilateral feito nos últimos anos na luta contra mudança do clima.
Liderança pelo exemplo
Uma provável saída dos Estados Unidos poderia causar um vazio tremendo na liderança política das negociações sobre mudança do clima. O governo norte-americano, sob liderança do presidente Barack Obama e de seu secretário de Estado John Kerry, foi ator vital para a costura diplomática que permitiu a conclusão do Acordo de Paris durante a COP 21, em dezembro de 2015.
A liderança dos Estados Unidos também foi importante para manter o momentum político do sucesso de Paris no decorrer de 2016, com avanços na luta contra a mudança do clima em outros fóruns importantes, como o Protocolo de Montreal (que incluiu os HFCs, com alto potencial de efeito estufa na atmosfera, na relação de gases proibidos) e a Organização Internacional da Aviação Civil/ICAO (que firmou um acordo para controlar e reduzir as emissões das empresas do setor). O auge desse momentum se deu no começo de novembro, quando o próprio Acordo de Paris entrou formalmente em vigor, antecipando-se em quase três anos.
Ninguém tem a ilusão de que Donald Trump manterá essa postura na agenda climática pelos próximos quatro anos. Pelo contrário, teme-se que ele coloque os Estados Unidos num posicionamento ainda mais reticente que o do governo de George W. Bush (2001-2009), que também duvidava publicamente da responsabilidade humana sobre a mudança do clima. Nos últimos dias, a imprensa norte-americana especulou sobre a possibilidade do novo governo retirar os Estados Unidos não apenas do Acordo de Paris, mas também da própria Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês), o que significaria o abandono completo de qualquer negociação sobre o tema no âmbito das Nações Unidas.
A despeito de rumores que tomaram conta de Bab Ighli, onde a COP 22 foi instalada em Marrakech, o presidente eleito ainda não afirmou publicamente qual é a sua pretensão para o futuro governo no que diz respeito à mudança do clima. De toda forma, os negociadores em Marrakech buscaram relativizar uma possível saída norte-americana e destacar o protagonismo de outros países e governos nessa agenda.
Um exemplo disso foi o anúncio feito pelo Fórum dos Países Vulneráveis no último dia da COP 22. O grupo, que reúne as principais nações que sofrem e que poderão sofrer com os efeitos da mudança do clima, comprometeu-se em Marrakech a ampliar a sua própria ambição nas medidas de mitigação, como ter 100% da sua geração de energia por fontes renováveis o mais rápido possível, de maneira a incentivar outros países a fazer o mesmo. Esses governos também se afirmaram que atualizarão suas contribuições nacionalmente determinadas (NDC, sigla em inglês), que baseiam os compromissos de cada país no Acordo de Paris, o mais cedo possível antes de 2020.
“Esta declaração é inspiradora, porque esses países são exatamente os mais afetados pela mudança do clima”, afirma Wael Hmaidan, diretor-executivo da Climate Action Network (CAN International). “Avançar é a melhor forma de pressionar os demais a fazer o mesmo”.
Para Mattlan Zackhras, ministro das Ilhas Marshall, este é um momento crucial na liderança e transformação do clima que pode garantir um futuro mais seguro para as comunidades vulneráveis. “Estamos sendo pioneiros na transformação para 100% de energia renovável, mas queremos que os outros países sigam nossos passos para evitar os impactos catastróficos que estamos sofrendo por conta de furacões, inundações e secas”, diz Zackhras.
O exemplo dos pequenos pode ser um alento para possíveis retrocessos de um gigante. A grande dúvida que se mantém depois de Marrakech é se o retrocesso de um gigante pode motivar outros gigantes – em especial, a Índia, que atuou com uma cautela peculiar nessa Conferência do Clima – a fazer o mesmo nos próximos anos. Por ora, os Estados Unidos estão sozinhos nesse deserto.
Resultados finais da COP 22
Mesmo sem anúncios tão ambiciosos como o dos países vulneráveis, outras potências globais também reafirmaram o seu compromisso com o Acordo de Paris, como a China, a União Europeia e o Reino Unido (que ratificou o texto durante a Conferência de Marrakech, depois da vitória de Donald Trump). A Proclamação de Marrakech, texto final do segmento de alto nível da COP 22, incorpora essas reafirmações e deixa claro que o Acordo de Paris continua tendo apoio suficiente para ser implementado plenamente mesmo sem a participação dos Estados Unidos.
“Nós chamamos pelo mais alto compromisso político para combater a mudança do clima, como uma questão de prioridade urgente”, diz o documento. “Nós reiteramos nossa resolução em inspirar solidariedade, esperança e oportunidade para a geração atual e para as futuras”.
No texto, os países reafirmam o compromisso financeiro de destinar ao menos US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020 para financiar projetos de mitigação e adaptação nas nações mais pobres, além de reforçar o desenvolvimento e a transferência de tecnologia de baixo carbono.
No entanto, a despeito das declarações políticas, a Conferência de Marrakech trouxe pouco avanço prático no ponto mais dramático para os países pobres: o financiamento climático. Negociadores destas nações pressionavam os governos ricos em torno de mais clareza para a forma como eles viabilizarão o compromisso financeiro assumido há sete anos, durante a Conferência do Clima de Copenhague (COP 15).
A questão do financiamento tornou-se ainda mais delicada depois da vitória de Trump: o presidente eleito chegou a afirmar antes da eleição da sua pretensão de usar o dinheiro que iria para financiar projetos de clima no mundo em desenvolvimento para “consertar o meio ambiente” dos Estados Unidos. Sem o dinheiro do governo norte-americano, não se sabe se as cifras de financiamento continuarão viáveis no futuro.
Na parte operacional da agenda de Marrakech, a COP 22 concordou em finalizar as regras de implementação do Acordo de Paris até 2018, de maneira a apoiar um processo global de revisão dos compromissos nacionais com vistas a angariar mais ambição para as ações de mitigação e adaptação. Além disso, um comitê de criação de capacidade (Capacity-Building Initiative for Transparency) foi constituído para apoiar financeira e tecnologicamente países com dificuldades para implementar seus compromissos no âmbito do Acordo de Paris.
Fora da agenda diplomática de negociação, outro destaque foi a criação da NDC Partnership, uma coalizão de países desenvolvidos e em desenvolvimento e de instituições internacionais com o objetivo de garantir apoio técnico e financeiro para o processo de revisão das NDC antes de 2020.
Além disso, os negociadores também definiram as sedes das próximas duas Conferências do Clima. Em 2017, o escritório central da UNFCCC em Bonn (Alemanha) sediará a COP 23, sob a presidência de Fiji, um estado-arquipélago no Pacífico fisicamente ameaçado pela mudança do clima. Já em 2018, pela terceira vez em dez anos, a Polônia receberá a COP 24, em cidade a ser definida.