Como transformar árvores em hambúrgueres? No último domingo (12/3), um grupo de jovens da ONG Engajamundo chamou a atenção dos pedestres que aproveitavam o dia para passear pela Avenida Paulista para mostrar o segredo por trás dessa “mágica” – o desmatamento de áreas florestais em todo o mundo para alimentar o gado que fornece a carne para os hambúrgueres consumidos todos os dias em todo o mundo.
O alvo da ação era uma lanchonete da cadeia Burger King, uma das maiores redes de fast food no mundo, com operações em 100 países e receita de US$ 4,1 bilhões em 2016. Para conseguir esse desempenho , o Burger King vende mais de 11 milhões de sanduíches diariamente. No entanto, de acordo com o relatório O Maior Mistério da Produção de Carne – Os Segredos do Burger King, a empresa fornece quase nenhuma informação sobre como sua carne é produzida e nem conseguiu adotar até o momento uma política séria para proteger os ecossistemas nativos na produção de seus alimentos.
O relatório, publicado pela organização norte-americana Mighty Earth e pela norueguesa Rainforest Foundation Norway, aponta que o Burger King está muito atrás de concorrentes como o McDonald’s e de outros gigantes do varejo e alimentação, como o Wendy’s e o Wal-Mart, no que diz respeito à transparência quanto à forma como a carne utilizada em seus sanduíches é produzida ao redor do mundo.
De acordo com o relatório, ao contrário do McDonald’s, que se comprometeu a eliminar o desmatamento de suas cadeias de suprimentos e estimular seus fornecedores nesse sentido, o Burger King se recusou a assumir compromissos de comprar sua carne apenas de fornecedores que não tenham envolvimento com a destruição de florestas ou mesmo fornecer informação pública sobre a origem de seus produtos.
Os pesquisadores responsáveis pelo relatório traçaram a rota entre os matadouros e frigoríficos e as lanchonetes da rede e os insumos utilizados para a produção da carne em diferentes partes do mundo, inclusive o Brasil. Para isso, eles utilizaram mapeamento por satélite, ferramentas de análise da cadeia de suprimentos, entrevistas com produtores de soja e uma extensa pesquisa de campo que envolveu visitas a 28 localidades, cobrindo 3 mil quilômetros de extensão entre o Brasil e a Bolívia.
O ponto-chave para entender a relação entre a pecuária e o desmatamento atualmente é o cultivo da soja, principal alimento do gado que fornece a carne para os sanduíches. Cerca de 75% da produção mundial desse produto é destinada para alimentação de animais, e a pressão do consumo crescente dos rebanhos cada vez maiores sobre a terra está deixando cicatrizes, principalmente em regiões florestais sob perigo de desmatamento ilegal, como o Cerrado e a Amazônia.
De acordo com o relatório, as principais gigantes do agronegócio global, como a Cargill, Bunge e ADM (que, por sua vez, são fornecedoras do Burger King), estão presentes nessas localidades e contribuem decisivamente para a expansão das áreas cultivadas de soja sobre a floresta nativa no Centro-Oeste e no Norte do Brasil. Essas empresas compram grãos, constroem silos e estradas, fornecem fertilizantes e até financiam operações de limpeza da terra.
A investigação constatou que mais de 500 mil hectares da área em que a Bunge opera foram desmatados entre 2011 e 2015 apenas no Cerrado. No mesmo período de cinco anos, a Cargill operou em áreas do Cerrado que apresentaram 130 mil hectares de desmatamento. Nem todo o desmatamento registrado entre 2011 a 2015 pode ser atribuído a essas empresas, mas os dados colhidos demonstram que elas têm um papel direto e nado desprezível na destruição da sociodiversidade da região.
A Cargill e a Bunge vendem soja a produtores da carne que é utilizada na produção de hambúrgueres, nuggets de frango, cachorros-quentes e outros produtos. Segundo os pesquisadores, não foi possível obter o número exato de quanta soja produzida no Cerrado está na cadeia de suprimentos do Burger King, pois a empresa não divulga a lista completa de seus fornecedores.
O relatório também destaca a tensão no campo decorrente do conflito entre o agronegócio e ativistas ambientalistas no Brasil. De acordo com a ONG Global Witness, o Brasil é o país mais mortal para ambientalistas, sendo que a maioria dos assassinatos ocorreu nas regiões com maior proporção de terras ocupadas por fazendas de gado e plantação de soja.
Uma medida importante que diminuiu o impacto da soja sobre o desmatamento foi a implementação de uma moratória na qual os principais negociantes do produto concordaram em não comprar mais soja cultivada em terras desmatadas na Amazônia após 2008. O efeito desse acordo foi imediato e claro: nos dois anos antes do anúncio, 30% das novas plantações de soja na Amazônia Brasileira eram provenientes de floresta desmatada; depois do acordo, esse número baixou para 1%. Mesmo com a restrição, a indústria da soja conseguiu crescer do mesmo jeito, expandindo seus cultivos sobre áreas desmatadas antes do acordo e aprimorando suas práticas de produção.
O sucesso da moratória da soja na Amazônia motivou o governo brasileiro, através do ministro do Meio Ambiente José Sarney Filho, a propor sua extensão para o Cerrado. No entanto, a despeito da resposta positiva de empresas como McDonald’s e Louis Dreyfus, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), da qual fazem parte da Cargill e a Bunge, rejeitou essa possibilidade, contestando que o Cerrado estivesse sob uma “situação de emergência” similar àquela vivida pela Amazônia em 2006.
O relatório cobra que o Burger King – administrada desde 2010 pela empresa brasileira de investimentos 3G Capital, que também atua em gigantes corporativas como a Kraft Heinz Company e a Anheuser-Busch InBev – tome medidas efetivas para garantir que seus produtos tenham origem livre de desmatamento e apoie a extensão da moratória da soja para o Cerrado brasileiro.
Em nota pública, a Cargill afirmou estar empenhada na proteção das florestas e no esforço de assegurar cadeias de abastecimento livres de desmatamento, reafirmando seu compromisso de acabar com o desmatamento em suas cadeias de fornecimento agrícola de maneira escalonada – pela metade até 2020 e totalmente até 2030. Entre outras ações, a Cargill destacou medidas como a colaboração com agricultores de soja, autoridades públicas e sociedade civil para implementar o Código Florestal Brasileiro; a parceria com a ONG The Nature Conservancy (TNC) no uso de satélites para monitorar e gerenciar o desmatamento ligado à cadeia de suprimentos.
A Bunge aponta que o relatório faz uma “correlação enganosa entre a presença [da empresa] no Cerrado brasileiro e os números totais de desmatamento na região”. Em comunicado encaminhado pela sua assessoria de imprensa à PÁGINA22, a empresa destaca que a maioria das mudanças de uso da terra não está diretamente relacionada às safras adquiridas pela Bunge e que a sua participação de mercado nos municípios onde operam silos é de apenas 20%. “O relatório está certo em um ponto: uma empresa sozinha não pode resolver este problema”, afirma a Bunge. “Um passo positivo seria que mais empresas adotassem compromissos de desmatamento zero, aplicassem controles para bloquear que safras cultivadas em áreas desmatadas ilegalmente possam entrar em suas cadeias de fornecimento, informassem publicamente seu progresso e investissem alguns milhões de dólares para apoiar os esforços de planejamento sustentável do uso da terra. Tudo isso a Bunge tem feito.”
A reportagem tentou contato com o Burger King Brasil, mas não obteve resposta até o publicação deste post.