Você já parou para pensar no que pode vir depois de toda essa crise moral, econômica e política? Se o País conseguir realmente livrar as instituições públicas dos esquemas e quadrilhas, o que pode mudar nesse jogo?
Se é verdade que “todo o poder emana do povo”, a resposta está em nós. O colapso que estamos atravessando é uma oportunidade de rompermos o muro que nos separa da vida política e mudarmos o comando deste imenso barco desgovernado em alta velocidade rumo ao iceberg.
Tenho acompanhado e participado de diversos movimentos pelo Brasil que buscam criar e fortalecer outras formas de engajamento dos cidadãos na esfera pública e no jogo da política. São iniciativas como o Nossas, o Politize!, a Virada Política, o Jogo da Política, o Update, o Pé na Escola e o Vem pra Roda. Surgem também cada vez mais iniciativas que estimulam a cidadania renovada a incidir diretamente nos espaços da política institucional. Entre estes estão o Agora, o Acredito, a Bancada Ativista, o Eu Quero Prévias, o Livres, a Nova Democracia, o Raiz Cidadanista e a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps).
Esses movimentos sabem que não é possível responder aos desafios históricos de nossa democracia apenas com a Reforma Política e com novos líderes ocupando os espaços que ficarão vazios. Com perspectivas diferentes de interpretar o contexto, compreendem que é necessária uma renovação das atitudes, das mentalidades e das práticas da política – não apenas nos partidos e novos candidatos, mas a partir de todo o conjunto da sociedade.
Em junho de 2013, a grande inovação foi a possibilidade de levantarmos bandeiras diversas em um mesmo movimento político. Pela primeira vez, nosso país viu uma multidão se aglutinar sem um comando geral e palavras de ordem uníssonas. O que “dava liga” àquela polifonia era um senso generalizado de insatisfação que se expressava nos mais diversos cartazes, que ressoavam em torno da ideia de que os políticos ‘não nos representam’.
A partir daí surgiram movimentos eficazes na capacidade de aproveitar desta insatisfação para aglutinar amplos setores da sociedade em torno de agendas retrógradas. A assim chamada onda conservadora se fortaleceu, a suposta esquerda ficou acuada e reagiu de maneira imoral para manter-se no comando do País, e tudo isso tornou ainda mais aguda a polarização de nosso ambiente político.
Os movimentos de renovação da política aqui mencionados fazem parte de um conjunto maior de iniciativas emergentes pautadas por outras formas de lidar com nossas insatisfações e sonhos de mudança e não se pautam pela polarização. São expressões sociais de menor visibilidade mas que vislumbram novos cenários, pautados por inovações que surgem das bordas da sociedade nos mais diversos campos de atuação.
Em vez de se ancorar em ideologias, partidos e segmentos sociais, essa outra geração de movimentos se organiza a partir de causas comuns. Seus protagonistas emergem por fora do sistema político tradicional em torno de transformações que já ocorrem na prática, criando pontes entre as causas comuns e o jogo da política institucional.
O “chão de fábrica” desses novos movimentos não é mais a simples disputa de ideias e de espaços, e sim a confluência de práticas, espaços, vínculos e narrativas diversas. As visões que anunciam não mais se ancoram em idealizações como “Estado mínimo” versus “Estado de bem-estar social”; em “liberalismo” versus “socialismo”. Eles reconhecem essas ideias como parte das concepções existentes do cenário nacional e internacional, mas projetam o futuro que desejam realizar no País com base em dados empíricos de realidade associados a inovações que já demonstram na prática como pode ser o futuro.
Há 18 anos, quando iniciei meu ativismo social e político, participei de iniciativas que buscavam superar a divisão entre aqueles que “faziam o bem” nas ONGs e trabalhos voluntários enquanto os “militantes políticos” debatiam o futuro da sociedade e pouco valorizavam as mudanças práticas cotidianas. Hoje, a separação entre o pensar e o fazer já não tem mais sentido. A transformação é cada vez mais integrada e integradora, e nos remete à premissa de Gandhi de que é preciso “ser a mudança que se quer ver no mundo”.
Do fortalecimento do transporte público ao da agricultura familiar, da regulamentação das drogas à radicalização da transparência pública, da defesa dos direitos animais à difusão das energias renováveis, do combate à discriminação racial à proteção das Terras Indígenas, as causas comuns na prática são transversais a todos os tipos de instituição e movimentos. Nem mesmo a separação entre Primeiro, Segundo e Terceiro Setor é mais tão relevante como era há poucos anos. Qualquer pessoa que se sinta chamada pode fazer algo concreto para apoiar uma causa comum, seja como cidadão, seja como profissional, seja como ativista.
Aqueles que mobilizam a sociedade a se engajar nessas causas nos incentivam a praticar pequenas transformações significativas em nosso viver. São mudanças nos hábitos de saúde, de consumo, de lazer, do trabalho, na relação com nossos amigos e familiares. São mudanças que reforçam outros valores, o “ser” acima do “ter”, e que oferecem maneiras efetivas de nos tornarmos menos egocêntricos, ignorantes e consumistas e mais solidários, cooperativos, respeitosos, íntegros, enfim: felizes.
É possível que as mudanças de comportamento individual e coletivo que ajudam a melhorar nossa sociedade tenham, após essa crise, uma oportunidade de influenciar também as instituições e espaços de governança. Ao tecerem espaços que possam servir como pontes entre estas causas comuns e a política institucional, os renovadores da política terão o papel de dar mais escala a essas práticas. As novas arenas políticas que estão criando, os discursos e os projetos que defendem se sustentam na convergência dessas causas comuns como alicerce de um novo futuro.
Gosto de associar a emergência de práticas em torno de causas à imagem de um mosaico. Na medida em que se expandem e geram modificações concretas em nosso viver, as mudanças positivas se inter-relacionam como componentes de um todo maior, construído a incontáveis mãos. Somos coordenados por uma espécie de inteligência coletiva que não separa o que é nosso “ser” do nosso “pensar” e “agir”. É uma maneira mais proativa e efetiva de catalisar a diversidade de bandeiras e direcionar nossa indignação com a política em um caminho possível de ocupação e renovação deste sistema em colapso.
Já não faz mais sentido depositar esperanças em grandes líderes e intelectuais iluminados que apontarão qual o melhor caminho com a ajuda de marqueteiros. A maneira de criarmos uma visão compartilhada de futuro muda radicalmente. O trabalho agora é tornar amplamente visível que podemos somar forças para fortalecer as nossas causas comuns na prática e demonstrar como os órgãos públicos podem acolher, consolidar e dar escala a esse mosaico.
Manifestar esse mosaico significa resgatar o propósito maior de qualquer ação política: o de servir ao bem comum para produzir a felicidade coletiva.
* Mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University