Uma das características comuns às manifestações de junho de 2013 e às que se seguiram a elas nos últimos anos foi o uso das mídias sociais para sua organização – um combo da crise de representatividade e do advento de novas formas de comunicação que mudam com mais rapidez do que os gestores públicos têm conseguido acompanhar.
O aumento da conectividade – ainda que maior entre os estratos mais ricos da população – e a popularização de smartphones abrem uma janela para novas formas de participação (leia quadro abaixo – “Desigualdade no acesso à web”). Mas, ao mesmo tempo que o aumento da presença digital em meios descentralizados cresceu e foi fundamental para levar causas às ruas, a adesão a instrumentos oficiais consolidados apresentou queda nos últimos anos.
Um exemplo é o Orçamento Participativo de Belo Horizonte, iniciativa pioneira no Brasil e referência mundial, que ocorre desde 1993 e ganhou sua versão digital em 2006. No primeiro ano da experiência, foram registrados mais de 500 mil votos, de acordo com dados oficiais. Na última edição, em 2013, foram apenas 8.900.
“Pode até ser que [o aumento do uso de redes sociais e a queda em plataformas oficiais] sejam cenários isolados, mas não deixa de ser um indicativo de como o Brasil está envolvido em uma dinâmica de contradição”, avalia Júlio Andrade, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador em democracia e participação digital. Andrade destaca também que os espaços de participação oficial, juntamente com a crise da representatividade, têm tido a sua efetividade questionada. Isso leva ainda ao fortalecimento do papel do gestor e de seus canais pessoais em detrimento de canais oficiais.
O descrédito pode vir tanto do cenário político conturbado quanto de dados concretos, como a queda no número de obras do orçamento participativo executadas – atribuída também à crise econômica. O especialista aponta ainda questões como o desenho da plataforma e da participação social. Uma das formas mais comuns de envolvimento da população é apresentar demandas para votação, já a partir de uma triagem de propostas.
Ocorre que grupos com maior poder de mobilização acabam “vencendo” com suas demandas, no lugar de haver uma interação social representativa – o que prejudica também quem tem menos acesso à internet. “A própria dinâmica de construção da ferramenta não deve ser submetida a uma lógica de cima para baixo, mas trazer a visão da população para o design da ferramenta.”
Além das plataformas oficiais, os governos não podem abrir mão de observar a dinâmica de diálogos que já acontece organicamente na rede. Um dos projetos desenvolvidos pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da Fundação Getulio Vargas (FGV), por exemplo, é a análise do que se fala em mídias sociais sobre política em todo o País. A pesquisa é feita com base em menções de palavras-chave nas redes no território nacional em temas como educação, meio ambiente, saúde, segurança, mobilidade, economia e política.
“As pessoas falam muito sobre políticas públicas em redes sociais. Mas, se tivermos visão antiquada, esperar que falem sobre o programa A ou B, não vamos perceber. Elas falam sobre a vida delas, sobre como demora pra pegar ônibus, sobre segurança pública, sobre o preço do gás”, diz Pedro Lenhard, pesquisador da Dapp.
O que dificilmente se encontra nas redes são elogios a programas e ações do governo. “A gente observa, pela quantidade de informações que conseguimos coletar e pelos temas que pesquisamos, uma comprovação da hipótese de várias correntes da linguística que dizem que o cidadão tende a se manifestar, em qualquer instância, tendo como motivação inerente a insatisfação”, complementa Lucas Calil, também da Dapp.
Aprender a participar
Incentivar entre jovens de periferias o interesse pela participação política por meio da comunicação digital é uma das motivações da
Cipó Comunicação Interativa, projeto de Salvador que promove a educação para o empoderamento e empreendedorismo da juventude, em especial da juventude negra da capital baiana.
Para isso, além de formação em História, política, empreendedorismo, entre outros temas, os jovens participam de aprendizado em comunicação digital – o que envolve desde produção de conteúdo, programação e uso para promoção de pequenos negócios até navegação segura e privacidade. “O que costumo abordar com os jovens é que a internet não é só exposição da vida pessoal. Ela pode e deve ser usada para outras coisas, porque a juventude de periferia não tem espaço na mídia tradicional, mas a web possibilita ter voz”, diz Geisa Santos, educadora da Cipó e ativista em temas como privacidade na internet e inclusão tecnológica de mulheres.
Os equipamentos do projeto foram doados e a gestão e conservação são compartilhadas com a comunidade. “A comunidade criou um centro para que todos pudessem usar. A internet é paga em conjunto, assim como alguém para tomar conta – e tomar conta no sentido de suporte técnico, não de segurança. A própria comunidade pensa muito nos jovens”, relata.
Mas, para uma participação digital ativa, a formação off-line é imprescindível. “Como funcionam as eleições? Como cobrar de vereadores? A gente trabalha esses temas também, assim como leitura de editais, participação cultural, dados públicos. Não começa nas redes sociais. Eles precisam saber o caminho formal para cobrar”, afirma Santos. Além das votações, petições on-line e debates sobre políticas públicas propriamente ditas, a educadora ressalta que não se pode deixar de observar outras formas de participação digital. “Na internet tem vídeos de rap e slam, por exemplo, que falam de política, de racismo, de educação, de oportunidades. Isso deve ser considerado”, conta Santos.
Referência a poetry slam, batida de poesia, em tradução livre do inglês, uma “batalha” de poetas
Lenhard, da Dapp, avalia que ações para ampliar a participação política digital devem ocorrer em várias frentes e ser concomitantes. “Temos questões de conectividade em dois polos. Um são as soluções de governo eletrônico, serviços – o polo administrativo; o outro é o aumento da conexão, que depende de uma série de fatores”, diz. “Nem todos podem ser resolvidos pela administração pública. Conectividade depende de infraestrutura, mas também de acesso a renda e diversos outros fatores da economia.” Para Júlio Andrade, da UFF, o estado da arte em transparência e interação digital é ter sistemas integrados, que reúnam dados de redes sociais, de ouvidorias (sejam elas à moda antiga, sejam digitais), de conselhos gestores e informações técnicas, gerando um grande centro de inteligência pública. “Isso possibilitaria a mineração de dados e, a partir daí, realizar política pública mais proativa e alinhada ao anseio da sociedade. No âmbito municipal, tudo ainda é muito fragmentado, então todo esse potencial acaba se perdendo.”
Desigualdade no acesso à web
O acesso à internet é crescente no Brasil, mas essa evolução ainda revela desigualdades socioeconômicas. A boa notícia é a difusão maior dos smartphones, aparelhos mais acessíveis para a população de menor renda.
Em 2015, o Brasil alcançou o índice de 58% da população conectada à internet, de acordo com dados da última pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). O aumento foi de 5% em relação a 2014. Porém, a pesquisa aponta também o nível de desigualdade no acesso à rede: 95% dos entrevistados da classe A e 82% da classe B haviam utilizado a rede menos de três meses antes da entrevista. Na classe C, o número cai para 57%; e, nas classes D/E, para 28%.
Os dados coincidem com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta que 57,8% dos lares do País tiveram acesso à internet. Ainda de acordo com a Pnad, os smartphones já se consolidaram como o maior meio de acesso à internet no Brasil – 92,1% do total, o que é atribuído ao valor mais baixo dos aparelhos em relação a computadores. (CF)
Realidade reprogramada
Quando se mora “longe de tudo”, como se costuma dizer, as carências em infraestrutura e a falta de acesso a educação, cultura e serviços de qualidade podem desanimar. Mas são justamente essas condições que motivam algumas pessoas a criar soluções localizadas, mas com potencial de replicação. Nesta hora, as novas tecnologias são grandes aliadas, na medida em que reduzem as distâncias físicas, agilizam a comunicação e dão voz àqueles que têm pouco espaço e escuta na sociedade.
Inspirado por tais fatores, o Comitê de Democratização da Informática (CDI), organização carioca que atua em sete países, lançou em 2015 o Recode, movimento voltado para jovens de 14 a 29 anos que pararam de estudar e estão sem emprego formal. Com base em conceitos do educador Paulo Freire, o Recode habilita o jovem a ser um “reprogramador” da sua realidade.
Organização criada em 1995 voltada para a transformação social por meio da inclusão digital
O resultado são histórias emocionantes, como a de Ricardo Pereira, de 23 anos, morador de Itaboraí, na Grande Niterói (RJ). Com as habilidades adquiridas no programa, ele pôde ajudar Pedro Paulo de Almeida, de 46 anos, vizinho, portador de paralisia cerebral. “Pedro é independente e trabalha como auxiliar administrativo, mas enfrentava obstáculos para se locomover”, conta o jovem que prototipou, com Pedro e a colega carioca de curso Raíssa Rodrigues, o aplicativo Repare de mapeamento de buracos, desníveis e má conservação nos caminhos para pedestres. Hoje, contam com apoio empresarial para aprimorar o produto e lançá-lo no mercado.
Damares Muniz, da Zona Leste de São Paulo, de 19 anos, desenvolveu com três amigas o Wiggs Perfect, aplicativo para facilitar a doação de cabelo a pacientes com câncer. “Pude ver como posso mudar o mundo ao meu redor de uma forma acessível”, declara a jovem. Já a doula Camila Habdallah, 27, de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, usou sua experiência no Recode para incentivar partos humanizados no Complexo do Alemão. Seu projeto foi selecionado para apoio financeiro e de formação pelo British Council, com viagem de aprendizado ao Reino Unido. Em outros pontos do Brasil acontecem iniciativas similares.
Organização internacional do Reino Unido para relações culturais e oportunidades educacionais
Em São Paulo, o movimento Periferia Hacker realizou sua primeira oficina em outubro de 2016, na qual foi desenvolvido um aplicativo para divulgar a agenda cultural do Grajaú (bairro da periferia da Zona Sul). Na mesma cidade, o FabLab Livre SP põe impressoras 3D à disposição da população para que aprendam a produzir diversos objetos em diferentes escalas através de processos colaborativos de criação, compartilhamento do conhecimento e do uso de ferramentas de fabricação digital.
No Nordeste, comunidades unem-se para ter acesso à internet. Uma das pioneiras foi a associação de pescadores da cidade de Congo, na Paraíba. Suas 56 famílias uniram-se para instalar um computador com acesso à rede e “ficarem mais integradas ao mundo”, como definem. Na periferia do Recife, moradores compartilham o sinal trazido por rádio e o mesmo acontece na zona rural pernambucana. – por Neuza Árbocz