As crises hídricas que afligiram diversas regiões do Brasil nos últimos anos deixaram evidente que padecemos de problemas de gestão e consumo de água que podem se agravar com as alterações no clima nas próximas décadas
São Paulo, fins de 2014. O cenário era desolador. Ao invés do imponente lago, o que se via era um descampado ressecado. Em alguns trechos, o chão que servia como leito dos reservatórios do Sistema Cantareira, o maior da região metropolitana paulista e responsável pelo abastecimento hídrico de milhões de pessoas todos os dias, tinha virado terra rachada.
Naquela época, a maior metrópole da América do Sul caminhava rumo a um cenário de restrição absoluta na disponibilidade de água para milhões de pessoas. A situação era dramática: no auge do que seria a estação chuvosa, as precipitações na região dos reservatórios do Sistema Cantareira estavam muito abaixo das médias históricas. Por quase dois anos, os níveis definharam dia após dia, até chegar efetivamente ao fundo do poço. Sem volume operacional, a Sabesp (responsável pela gestão do sistema e pelo abastecimento de boa parte das cidades metropolitanas de SP) foi forçada a utilizar as chamadas “reservas técnicas”, apelidadas pela imprensa e pela população como “volume morto” – um estoque de água nos trechos mais profundos das represas, abaixo dos canos de captação, com qualidade bem abaixo do normal.
Mas o desastre não era resultado apenas da falta de chuva: a crise hídrica de 2014-2015 explicitou a pouca atenção do poder público para a gestão de recursos hídricos em todo o Brasil, um país que sempre se vangloriou de ter mais de 1/10 de toda água doce do mundo.
A mesma São Paulo que torcia para que as chuvas voltassem logo para encher seus reservatórios continuava ignorando os três rios de porte que cruzam a região: o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, todos extremamente poluídos – sem falar na represa Billings, uma dos maiores reservatórios da região, mas com água igualmente tóxica para saciar a sede dos paulistanos. Assim, São Paulo viveu um paradoxo curioso: ao mesmo tempo em que a região metropolitana paulista era forçada a conviver com suas torneiras cada vez mais secas, os rios que poderiam servir como algum alento estavam inutilizados.
Avancemos um pouco no tempo. As mesmas imagens dramáticas vistas nos reservatórios paulistas no verão de 2015 agora podem ser vistas hoje no Distrito Federal: reservatórios esvaziados, terra ressecada, restrição ao abastecimento de água. A capital brasileira, planejada nos mínimos detalhes na época de sua construção, convive hoje com o resultado da ausência completa de planejamento de sua expansão urbana e demográfica nas últimas décadas.
No auge do que deveria ter sido o período mais chuvoso do ano, em janeiro passado, a Barragem do Descoberto, responsável pelo abastecimento de 61,5% do DF, tinha apenas 18,94% de sua capacidade. A expectativa é que, em outubro próximo, após o inverno, este índice esteja na casa dos 9%.
Desde o começo de 2017, a região sofre com o racionamento de água, com um dia de corte integral no abastecimento durante a semana. Com o avanço da temporada seca no Centro-Oeste brasileiro, o governo distrital não descarta a possibilidade de ampliar o racionamento, principalmente se as chuvas esperadas para setembro não caírem como o esperado.
Em São Paulo e no Distrito Federal, as medidas tomadas pelo poder público são similares: investimentos em obras emergenciais para ampliar a captação de água de novas fontes e medidas de restrição no abastecimento, como racionamentos e a cobrança de taxas adicionais para evitar o consumo excessivo. No caso paulista, mesmo após a recuperação dos níveis dos reservatórios, decorrente do retorno das chuvas nos últimos dois verões e da redução do consumo de água, algumas medidas restritivas perduram até, como a diminuição da pressão na rede de distribuição durante a madrugada.
Da falta de gestão à falta d’água
Os dois casos recentes de crise hídrica evidenciam a forma problemática com a qual o Brasil lida com sua água. A pujança hídrica brasileira contrasta com a distribuição desigual do estoque de água potável no país: mais de 80% dessa água está concentrada na região amazônica, que, por sua vez, abriga uma parcela ínfima da população brasileira. No resto do país, a situação é mais delicada. O caso do Semiárido nordestino é notório: a seca faz parte do imaginário cultural e da experiência histórica do nordestino brasileiro. Viver no sertão é viver a escassez de água em seus limites.
A crise hídrica no Sudeste mostrou que a situação desta região não é muito diferente do drama nordestino. Um relatório da Agência Nacional de Águas (ANA) de 2013 apontou que a disponibilidade de águas superficiais na bacia do Alto Tietê, do qual fazem parte os rios que abastecem os reservatórios do Sistema Cantareira, estava em 135,8 metros cúbicos ao ano por habitante em 2010. As Nações Unidas considera que qualquer índice abaixo de 1,5 mil m³/habitante é “crítico” em matéria de abastecimento hídrico (saiba mais).
Tanto em São Paulo como no DF, a estiagem prolongada catalisou um processo de restrição que está intimamente associado à falta de atenção do poder público, das empresas e dos cidadãos para a gestão dos recursos hídricos no Brasil.
Nas últimas décadas, os investimentos para aumentar a disponibilidade de água e reduzir as perdas na rede de distribuição foram tímidos – sem falar no eterno desafio do saneamento básico no Brasil, que ainda tem metade de sua população vivendo sem esgoto tratado, o que acaba resultando na contaminação de água potável por efluentes não tratados. Aliada aos investimentos pobres na melhoria da oferta, a demanda crescente e abusiva de água também pressiona a situação, alimentada por uma cultura que reforça o desperdício deste recurso por parte dos consumidores.
O mau uso da água não se restringe ao Brasil. Segundo as Nações Unidas, o consumo de recursos hídricos cresceu a uma taxa duas vezes maior que o aumento da população ao longo do último século. Até 2025, o consumo deve subir 50% nos países em desenvolvimento e 18% nas nações desenvolvidas – isto em um mundo onde dois bilhões de pessoas viverão em regiões de absoluta escassez de água (saiba mais).
Sem clima, sem água
Durante o auge da crise hídrica no Sudeste, um questionamento frequente que surgia nos debates era o quanto a mudança do clima estava por trás da falta de chuvas na região entre 2014 e 2015. Ainda que não exista uma resposta científica mais clara sobre esta pergunta, o que podemos notar é que, no contexto das alterações no clima global, situações dramáticas como as vividas em São Paulo há pouco mais de dois anos e no DF atualmente podem se tornar mais frequentes, com impactos negativos mais profundos e imprevisíveis.
Um exemplo de cenário de restrição mais frequente e dramático é a seca pela qual o Semiárido do Nordeste brasileiro passa há cinco anos. Desde 2012, os índices pluviométricos do sertão nordestino estão abaixo dos níveis históricos, resultando em perdas sucessivas de safra, baixa vazão da água dos rios e, consequentemente, problemas socioeconômicos graves para sua população. Quase 80% das cidades do Nordeste já decretaram estado de emergência ou de calamidade ao menos uma vez nos últimos cinco anos. No Piauí, este número é assombroso: mais de 98% dos municípios do estado recorreram à situação de emergência ou calamidade para conseguir recursos externos para aliviar o problema. No Ceará, a estiagem atual já pode ser considerada a pior seca de sua história.
A ocorrência de secas no interior do Nordeste é normal, mas a intensidade e o prolongamento de sua ocorrência levantam sérias preocupações no contexto da mudança do clima. De acordo com o Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês), em seu relatório publicado em 2012, “um clima em transformação leva a mudanças na frequência, intensidade, extensão espacial, duração e na temporalidade de eventos climáticos e meteorológicos extremos, e pode resultar em eventos extremos sem precedentes”.
Ou seja, ainda que não se possa afirmar categoricamente que a seca atual no sertão nordestino e as estiagens no Sudeste entre 2014 e 2015 e no Centro-Oeste desde o ano passado sejam decorrente da mudança do clima, não se pode igualmente ignorar que algumas características deste fenômeno recente, como sua intensidade e duração prolongada, podem ser efeitos das alterações no clima global. Se isto for efetivo, desenha-se um cenário futuro problemático para os municípios e estados nordestinos e, consequentemente, para o Brasil (saiba mais).
Tudo normal, vida que segue?
Passados mais de dois anos da pior fase da crise hídrica no Sudeste, os paulistas voltam a viver um cenário de normalidade no abastecimento de água. A situação dos reservatórios no auge do inverno de 2017 está muito melhor do que no verão de 2015. O infame “volume morto” faz parte do passado.
No entanto, os fatores que nos levaram ao cenário de crise persistem. A despeito dos investimentos recentes na melhoria e na integração das redes de captação e armazenamento de água nos reservatórios, as perdas na rede de distribuição continuam altas. A redução forçada da demanda de água, vital para evitar que a região metropolitana de São Paulo entrasse em colapso no inverno de 2015, começa a se dissipar com os consumidores voltando a antigos e maus hábitos de consumo, o que aumenta o desperdício de água.
Mais importante, a gravidade da crise hídrica não trouxe uma mudança na forma como governos, iniciativa privada e cidadãos enxergam a água nas cidades no seu dia-a-dia. A esperança de que a escassez forçasse uma redefinição no paradigma de gestão e consumo de água se dissipou junto com a ameaça de colapso total no sistema de abastecimento.
Essa conduta é extremamente perigosa, especialmente se colocarmos a questão climática na conta. Se hoje estamos em uma situação mais tranquila e confortável, nada nos garante que voltemos a enfrentar uma crise hídrica num futuro próximo, talvez até mais forte que a vivida há dois anos. Não é porque a situação melhorou e a água voltou a sair de nossas torneiras é que devemos voltar aos velhos hábitos. A “síndrome da torneira seca” continua a nos assombrar, e (re)negá-la é o primeiro passo para a crise hídrica retornar.
Afinal, como escreveu certa vez Guimarães Rosa, “água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba”.