O filme, que retrata a amizade entre menina e seu porco, reflete sobre o greenwashing e cutuca a ferida da indústria da carne
Okja, filme dirigido pelo sul-coreano Joon-Ho Bong, começa com a dona da empresa Mirando, Lucy Mirando (Tilda Swinton), fazendo uma apresentação bastante ensaiada, com ilustrações coloridas em movimento, digna de um TED Talk. Ela fala de sua nova descoberta: uma espécie de superporco capaz de superar a fome do mundo.
“Nossos superporcos não apenas serão grandes e bonitos. Eles também deixarão uma pegada mínima no meio ambiente, vão consumir menos comida e produzir menos excrementos. E o mais importante: vão ser gostosos para cacete”.
São 26 filhotes de superporco que são distribuídos a fazendeiros pelo mundo todo e, em dez anos, o melhor superporco seria premiado e apresentado ao público em grande evento. Esse mundo das luzes, das câmeras, do marketing, então, dá lugar a uma floresta nas montanhas da Coreia do Sul. Conhecemos a protagonista Mija (An Seo Hyun) e a superporca Okja que vivem juntas desde pequenas. As duas brincam, buscam comida, dormem e protegem uma a outra. O cenário, e também a relação de amizade delas, remete aos filmes de Hayao Miyazaki, em especial, Meu Amigo Totoro pela semelhança de Totoro com Okja.
O conflito acontece quando Okja ganha a competição e é levada pela empresa para Nova Iorque. A garota, então, deixa sua casa para recuperar Okja das mãos da empresa e do abate e, no meio da aventura, encontra com a Frente pela Libertação Animal, liderada por Jay (Paul Dano), que tenta resgatar a superporca e revelar ao mundo as atrocidades cometidas pela Mirando.
A Mirando representa o agronegócio, da indústria da carne a agroquímica. O paralelo é mais claro com a Monsanto pela semelhança no nome e pelo passado das empresas. O pai de Lucy produzia o Napalm, líquido inflamável utilizadas em bombas na Guerra do Vietnã, assim como a Monsanto produziu o Agente Laranja, herbicida usado como desfolhante na mesma guerra.
Lucy abomina esse passado, tanto o pai que produzia a arma como a irmã gêmea que causou uma catástrofe ambiental num lago. Ela é uma CEO moderna, preocupada com as questões ambientais, o novo superporco deixa uma “pegada mínima no ambiente”. Mais eficiência, menos emissões de gases do efeito estufa. São dados e tecnologias novas que garantem que sua parte está sendo feita. Essa é uma das armadilhas do discurso sustentável incompleto, dos números desligados das questões sociais e éticas.
A apresentação de Lucy é uma aula de greenwashing. As técnicas de marketing com a apresentação multimídia que impressiona apinhada da cor verde, os desenhos dos animais segurando a bandeira com o logo da empresa, o logo que é uma árvore, tudo isso constrói uma imagem positiva que está longe da realidade. Afinal, é preciso que se consuma o produto sem culpa. Os superporcos, diz Lucy, são uma espécie natural encontrada no Chile, mas, logo, aprendemos por Jay que, na verdade, são resultado de experimentos genéticos.
Está aí, também, um pensamento incutido de que novas tecnologias são a salvação, com mais eficiência conseguimos superar o desastre ambiental que está a porta e que nada mais é preciso mudar. Se estamos falando de sustentabilidade, o que vamos sustentar? As relações e estruturas como são atualmente, o nível de consumo atual? O sofrimento de animais nas indústrias de alimento não importa?
Questões como essas nos passam, muitas vezes, despercebidas, afinal só temos acesso ao produto final, higienizado, a carne embalada e pronta para ser levada para casa. Nosso desconhecimento de toda a cadeia produtiva, a falta de transparência e o comodismo de pagar e levar no mercado nos tira o poder de reflexão e crítica. Ficamos sujeitos ao que nos contam, a publicidade. Por isso, o filme vai nos revelando, junto com Mija, os métodos da Mirando até que a busca por Okja nos leva ao abatedouro. As cercas eletrificadas e a fila que leva à morte dão a imagem de um campo de concentração.
E o filme é muito bom em causar incômodo. A construção da relação entre Mija e Okja no primeiro ato e a obstinação da menina deixam as imagens do tratamento do animal pela empresa muito mais pesadas, sofremos junto. Em certo ponto, algumas pessoas provam o produto final, a carne dos superporcos, o plano se mantém por longos segundos, o silêncio da cena evidencia o barulho da mastigação. Barulho que enoja, que cutuca, que incomoda.
O grupo da Frente pela Libertação Animal tem um objetivo nobre, mas não são os mocinhos que se esperaria, há conflitos entre eles. São pacifistas, tentam não machucar ninguém na medida do possível, mas Jay pode ser violento se as regras do grupo são quebradas. A radicalização deles também é satirizada. Em certo ponto, um de seus membros passa mal por falta de alimentação, não aceita nem um tomate porque toda produção industrial de alimento tem impactos negativos no meio ambiente.
O diretor, durante as pesquisas para o filme, afirmou que não conseguia comer carne. Mas o filme não faz uma defesa ferrenha do veganismo, ainda que cutuque a ferida e consumir carne logo após assisti-lo seja desconfortável. O filme se preocupa com o equilíbrio. No começo do filme, Mija chama Okja. Ela grita que lá tem muitos peixes e que ela quer um ensopado hoje. Okja corre ao seu encontro, pula de uma cachoeira e espalha água e peixe para todo lado. Mikha aproveita para pegar alguns peixes que ficaram entre as pedras. Ela, então, para por um instante, entre as pedras está um peixe ainda pequeno. Ela o pega e joga de volta ao lago.