No tabuleiro da mudança do clima, todos arcam com o prejuízo da jogada – principalmente aqueles que não estão no jogo
O noticiário internacional foi tomado nas últimas duas semanas pela cobertura da passagem dos furacões Harvey e Irma pelo Caribe e, principalmente, pelos Estados Unidos. Em todas as mídias, a todo o tempo, informações chegavam ao público sobre o dia-a-dia do desastre ao vivo, direto dos locais afetados pelas tempestades.
As redes de TV noticiosas norte-americanas, como CNN, MSNBC e Fox News, dedicaram longas horas para registrar a preparação das cidades para as tempestades, a destruição causada no Texas (pelo Harvey) e na Flórida (pelo Irma) e o drama das vítimas após o desastre. Nos jornais impressos e na internet, as imagens de Houston tomada pela água e do litoral sudeste da Flórida sendo varrido pela tempestade eram destaque nas primeiras páginas e nos portais web. Sem falar nas redes sociais, igualmente tomada por informações (ora reais, ora inventadas) sobre a destruição causada pelos furacões.
O poder destrutivo e os prejuízos gerados por Harvey e Irma reacenderam o debate político sobre mudança do clima nos Estados Unidos de Donald Trump. Em junho passado, com toda pompa e circunstância, o presidente norte-americano anunciou a saída do país do Acordo de Paris (saiba mais) – o principal (ainda que imperfeito) instrumento multilateral em prol da redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) e de combate às alterações no clima global. A Casa Branca também interrompeu os repasses financeiros para os fundos associados à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês).
Os desastres causados pelos furacões nas últimas semanas colocaram o governo Trump na defensiva no que diz respeito à questão climática. Para muitos cientistas, os desastres recentes no Texas e na Florida, ainda que não possam ser diretamente conectados com a mudança do clima em si, evidenciam o quão dramático será o futuro caso a concentração de GEE na atmosfera continue crescendo nas próximas décadas, levando ao aumento da temperatura dos oceanos – elemento crucial para a geração de novas tempestades tropicais nos Oceanos Atlântico (furacões) e Índico e Pacífico (tufões).
Nesse cenário, qualquer ação para reduzir as emissões de GEE pode ser benéfica no longo prazo, pois reduz a probabilidade de termos tempestades tropicais tão fortes como Harvey e Irma. O problema é que, para o presidente dos Estados Unidos e para seus aliados políticos, qualquer ação não vale a pena – ou porque, segundo eles, a mudança do clima em si não existe (se existe, não é culpa do ser humano), ou porque é desvantajoso nas circunstâncias atuais da economia do país.
As distorções do debate político norte-americano sobre mudança do clima são, em grande parte, o motivo pelo qual o mundo se arrasta há mais de 20 anos na definição sobre como podemos efetivamente encarar este desafio.
Após o desastre dos furacões Harvey e Irma, surge uma ponta de esperança de que a opinião pública do país, que vem reconhecendo cada vez mais a pertinência e a necessidade de enfrentar a mudança do clima, pressione o governo Trump para agir mais nesta questão (ainda que a Casa Branca continue rejeitando qualquer citação ao termo “mudança do clima” aplicada aos furacões).
O problema é que o custo de esperar por alguma definição dos Estados Unidos é cada vez maior para as regiões mais pobres e vulneráveis à mudança do clima no mundo. Se os norte-americanos sofrem com as perdas pontuais de um Harvey ou Irma, países na Ásia e na África são forçados a enfrentar desastres climáticos de proporções similares de forma cada vez mais frequente, com efeitos negativos potencializados pela falta de recursos, condições e capacidade de resposta e reconstrução.
A mudança do clima potencializa as desigualdades que marcam a economia global contemporânea. Os maiores emissores históricos de GEE do planeta – que são, não por coincidência, as nações desenvolvidas atuais – estão longe de ser aqueles que mais sofrem com os efeitos negativos das alterações climáticas.
Para as parcelas mais pobres e vulneráveis do mundo, a discussão política “encardida” sobre clima nos Estados Unidos não passa de desperdício de tempo – afinal, quem mais sofre com a mudança do clima são os países subdesenvolvidos, que têm menos condições a responder a eventos extremos, como tempestades e estiagens.
Coincidentemente, ao mesmo tempo em que as atenções globais estavam voltadas para as tempestades nos Estados Unidos, milhões de pessoas sofriam com os efeitos da pior temporada de chuvas no sul da Ásia em décadas. As fortes precipitações causaram inundações e deslizamentos de terra em Bangladesh, na Índia e no Nepal, causando 1,2 mil mortes e afetando diretamente quase 20 milhões de pessoas.
Mumbai, uma das principais cidades indianas e a 10ª mais populosa do mundo, passou dias inteiros debaixo d’água nas últimas semanas. Os distritos menos elevados, próximos à área costeira, ficaram debaixo de metros d’água, invadindo casas e desalojando milhões de pessoas apenas nesta cidade.
Em Bangladesh, que lida há meses com um grande fluxo de refugiados Rohingya fugidos de Myanmar, as chuvas pioraram a situação, já que agora as autoridades também precisam lidar com os desabrigados bengalis. De acordo com o departamento meteorológico nacional, no auge das chuvas, em 11 de agosto passado, o equivalente a uma semana de precipitação média durante a temporada de monções desabou sobre partes de Bangladesh em um intervalo de poucas horas. No final de agosto, 1/3 do território bengali estava debaixo d’água, matando 142 pessoas e desalojando 8,5 milhões.
Ao mesmo tempo em que o mundo acompanhava a destruição dos furacões nos Estados Unidos, dezenas de milhões de pessoas sofriam com enchentes e deslizamentos de terra causados por fortes chuvas no sul da Ásia, particularmente em Bangladesh, Índia e Nepal.
Já na África, o problema é o contrário: a seca. Na região do Sahel, na parte central do continente, a forte estiagem que se arrasta há seis anos afetou diretamente a subsistência de milhões de pessoas, o que alimentou tensões sociais e políticas em diversos países, como Chade, Mali e Niger.
A situação na bacia do Lago Chade é desesperadora. Até 50 anos atrás, o lago era um dos maiores corpos d’água do mundo. No entanto, neste período, ele perdeu entre 90% e 95% de sua extensão. Dentre os fatores responsáveis por essa redução significativa do Chade (saiba mais), a mudança do clima tem um papel importante: nas últimas décadas, o cinturão de chuva tropical que incidia sobre o Sahel e a região do Chade se moveu para o sul, resultando em menor precipitação sobre o lago e seus arredores. A degradação da bacia do Chade afeta diretamente a subsistência de 20 milhões de pessoas, que hoje são afligidas por desnutrição crônica, sendo que muitas delas sofrem efetivamente com a fome.
Na Somália, afligida por secas e guerras civis sucessivas, a situação consegue ser ainda mais dramática. Nos últimos dois anos, as chuvas estão caindo bem abaixo da média na região do Chifre da África (Puntlândia e Somalilândia) e no sul do país (Jubalândia). De acordo com o Escritório das Nações Unidas para Coordenação Humanitária (OCHA, sigla em inglês), até meados de junho passado, mais de 730 mil pessoas estavam desalojadas no país por conta da seca. Desse total, quase 65% era composto por jovens com até 18 anos de idade.
A situação humanitária no Sahel e na Somália é dramática: a estiagem prolongada espalhou insegurança alimentar, desalojou milhões de pessoas e intensificou tensões sociais e políticas, resultando no recrudescimento ou no surgimento de novos conflitos armados locais.
Tanto na Ásia quanto na África, nações pobres já estão enfrentando os efeitos negativos da mudança do clima na pele, de modo mais intenso e custoso do que seus contrapartes mais ricos, como os Estados Unidos ou os países europeus. Se a concentração de GEE na atmosfera terrestre continuar subindo e elevando a temperatura média do planeta, a ocorrência de eventos climáticos extremos poderá aumentar exponencialmente nas próximas décadas, o que pressionará ainda mais as regiões mais pobres e vulneráveis do globo.
Enquanto o cenário for de incerteza sobre o enfrentamento efetivo da mudança do clima e a disponibilidade de recursos financeiros para apoiar estas nações mais pobres na recuperação de situações de desastre e na construção de resiliência para crises futuras, não há motivos para otimismo. As catástrofes climáticas se intensificarão, causando perdas humanas e materiais incalculáveis. Para as nações mais ricas, as perdas acontecerão, mas a recuperação será mais fácil; para as mais pobres, será cada vez mais difícil.