As queimadas na Amazônia brasileira afetam a qualidade do ar não apenas na região, mas em todo o continente sul-americano – e os impactos sobre a saúde humana podem ser ainda mais graves do que o esperado
Secura, irritação nos olhos e gargante, dificuldades para respirar, temperaturas altas, tempo abafado e o horizonte tomado por uma densa capa de fumaça. Para quem vive em qualquer grande centro urbano do mundo, particularmente na América Latina, este cenário não é incomum. Principalmente nas temporadas secas, o clima urbano se torna bastante adverso: a poluição se acumula na atmosfera, o que reduz significativamente a qualidade do ar e, consequentemente, aumenta a incidência de problemas de saúde associados ao sistema respiratório.
No Brasil, cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre convivem há décadas com este tipo de problema durante o inverno. A estiagem da temporada fria resulta na formação de uma nuvem de poluição evidente sobre o espaço urbano, que se acumula na medida em que o período sem chuvas se prolonga. Os impactos são potencializados em localidades com cobertura vegetal reduzida, que dificulta a renovação dos estoques de oxigênio, piorando a qualidade do ar e acentuando os problemas respiratórios da população local.
No entanto, o cenário descrito no começo deste texto não se refere a nenhuma grande cidade do centro-sul brasileiro, como São Paulo: estamos falando de Rio Branco, capital do Acre, no coração da maior floresta tropical do planeta – a Amazônia.
Poluição no céu amazônico
No último inverno, Rio Branco viveu dias dignos de São Paulo. No final de setembro, o nível de contaminação do ar chegou a 400 microgramas (mcg) por metro cúbico. Para efeitos de comparação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que uma pessoa pode respirar no máximo 25 mcg deste tipo de partícula por dia. Como uma cidade com menos de 310 mil habitantes, localizada no meio da floresta, chegou a esta situação?
A resposta está exatamente na floresta, cada vez mais reduzida por conta do avanço do desmatamento nos últimos anos. Boa parte da fumaça resultante das queimadas acaba se concentrando na região, o que afeta diretamente a situação do ar em Rio Branco. A falta de chuvas, característica do inverno amazônico, permite que uma camada de material particulado permaneça sobre a capital do Acre, reduzindo a qualidade de seu ar. A nuvem de fumaça em Rio Branco foi tão densa em alguns dias que, em muitos lugares da cidade, a visibilidade ficou comprometida.
A camada de contaminantes faz com que as temperaturas amenas do inverno fiquem acima do normal, resultando em um efeito estufa que intensifica os impactos da poluição sobre a saúde humana e permitindo a proliferação de incêndios florestais dentro e fora da cidade.
“Além da estiagem, temos também o acumulado de tempo seco, e isso acaba piorando a situação, propiciando a maior incidência de queimadas que podem se estender tanto a áreas florestais como urbanas, e isso aumenta a concentração de contaminantes”, explicou Alejandro Fonseca, pesquisador da Universidade Federal do Acre, em entrevista para a Rede Amazônica em setembro passado.
Este tem sido um cenário frequente nos invernos de Rio Branco e das principais cidades da região. No ano passado, as piores medições de qualidade de ar na capital do Acre também chegaram a 400 mcg por metro cúbico. O recorde de acúmulo de material particulado na região ocorreu em 2005, ano marcado por uma seca prolongada e por sucessivas queimadas florestais nas cercanias da cidade – nesse ano, a contaminação chegou a 600 mcg.
Queimadas na Amazônia, poluição por todo o continente
As queimadas são um elemento central para entender a degradação da qualidade do ar no Acre. Um estudo de 2014 do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que os principais focos de queimada associados ao desmatamento da Amazônia estavam localizados na porção brasileira da floresta, particularmente nos Estados do Pará, Rondônia, Amazonas e no próprio Acre.
Em muitos casos, as queimadas na Amazônia brasileira afetam os níveis de poluição nos países vizinhos. “A maior geração de fumaça resultante da queima da floresta na América do Sul é brasileira”, assinalou Saulo Ribeiro de Freitas, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo. “O Brasil realmente exporta fumaça de queimada e polui os demais países da região”.
Assim, os impactos da queima da floresta amazônica vão muito além do Acre. Transportadas pelas massas de ar produzidas no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, as nuvens de fumaça chegam ao sul do continente sul-americano e podem cobrir áreas de até 5 milhões de quilômetros quadrados.
“O tipo de circulação do ar predominante na estação seca na região Norte do Brasil faz com que exista um corredor de exportação que canaliza a fumaça produzida pelas queimadas nesta região para o oeste da América do Sul, invadindo áreas no Peru, Bolívia e Paraguai”, explica Freitas. “Muitas vezes, este corredor alcança a Argente e somente é bloqueado quando uma frente fria chega, que faz com que a fumaça retorne ao Brasil. Quando esta inversão acontece, é possível observar colunas de fumaça passando sobre a cidade de São Paulo, por exemplo”.
Os impactos das queimadas sobre a saúde humana
O acúmulo de gases contaminantes na atmosfera resulta em diversos problemas respiratórios, como rinite, bronquite e asma. Todos os anos, milhares de pessoas, especialmente crianças e idosos, são internados nos hospitais com dificuldades de respiração decorrentes da poluição do ar nas grandes cidades brasileiras.
Entretanto, o impacto da poluição sobre a saúde humana pode ser ainda mais grave. De acordo com estudo recente publicado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) na revista Scientific Reports, as células do pulmão humano podem sofrer danos em seu DNA quando são expostas a contaminantes resultantes da queima de biomassa amazônica.
Os pesquisadores recolheram amostras de contaminantes em uma área natural próxima da capital de Rondônia, Porto Velho, durante a estação de queimadas, cujo pico acontece entre setembro e outubro. No laboratório, células pulmonares foram expostas a eles e os efeitos foram quase imediatos.
Nos primeiros momentos, as células produziram grandes quantidades de moléculas pró-inflamatórias. A inflamação foi seguida por um aumento na liberação de espécies reativas de oxigênio, substâncias que, em grande quantidade, podem causar danos às estruturas celulares. Tudo isso pode agravar problemas respiratórios e facilitar o surgimento de câncer nos pulmões.
“Todos esses danos foram observados em apenas 24 horas de exposição”, explicou Nilmara Alves Brito, uma das principais pesquisadoras do estudo. “À medida em que o tempo passava, o dano genético aumentava e as células entravam em processo de apoptose [uma espécie de morte celular não inflamatória] e de necrose [tipo de morte em que a célula libera seu conteúdo interno, induzindo inflamação no lugar]”.
Segundo o estudo, o principal responsável por este quadro é o reteno, um composto químico pertencente à classe dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA), que é liberado a partir da combustão de biomassa. Em todo o mundo, aproximadamente 3 bilhões de pessoas estão expostas a contaminantes provenientes da queimada para desmatamento e prática agrícola, além da queima de madeira ou carvão para uso como combustível.
“A combinação de incêndios florestais e ocupação humana transformou a queima de biomassa em uma séria ameaça à saúde humana”, apontam os autores do estudo. “A maioria dos incêndios florestais ocorrem no chamado ‘arco do desmatamento’ [uma área de 500 mil quilômetros quadrados que vai do sul do Pará em direção oeste, passando pelo Mato Grosso, Rondônia e Acre], impactando diretamente a mais de 10 milhões de pessoas na região”.