Inédito na História do capitalismo, o modelo por trás das gigantes digitais abre caminho para a manipulação comercial e política. A esperança está em iniciativas da sociedade civil que preconizam a responsabilidade e a transparência
O poder não só econômico – mas também político e cultural – daquilo que Scott Galloway chama The Four (Google, Facebook, Amazon e Apple) é cada vez mais visto como ameaça para a vida social. A revista The Economist publicou em maio deste ano um editorial em que lembra sua oposição à atitude do governo norte-americano de forçar a divisão da Standard Oil em 1929. O gigantesco tamanho da empresa, na época, diz o editorial, beneficiava o consumidor com preços baixos do petróleo e, portanto, não deveria ser combatido. Agora, entretanto, o poder das corporações digitais ultrapassou, prossegue a revista, todos os limites aceitáveis em uma sociedade cuja economia deveria apoiar-se na livre concorrência.
O que está por trás da magnitude dessas empresas não é simplesmente sua eficiência. É um modelo de negócios inédito na História do capitalismo, que ameaça um dos mais importantes valores da sociedade moderna, a privacidade dos indivíduos e, por aí, abre caminho para que a vontade das pessoas seja manipulada com finalidades comerciais e também políticas. Esta manipulação motivou a capa da edição de 4 de novembro da mesma Economist, que estampa a pergunta: “As mídias sociais ameaçam a democracia?” Do que se trata?
Os smartphones permitem que sejam rastreadas não apenas as consultas que as pessoas fazem no Google (que concentra 88% das buscas na internet nos EUA) ou suas compras na Amazon (que detém 51% do comércio norte-americano on-line), mas, na verdade, o conjunto de sua vida cotidiana.
Os mecanismos de localização, as fotografias, as conversas por celular, o Waze, os diferentes aplicativos a que recorremos, mas sobretudo o que postamos no Facebook (por onde passa 77% de tudo o que circula por dispositivos móveis nos EUA) oferecem aos gigantes digitais um conjunto de dados sobre a base dos quais são elaborados algoritmos que abrem caminho ao conhecimento específico de cada um de nós. O que na história da publicidade do Século XX era feito por estudos massivos, que se traduziam em mensagens genéricas, agora é particularizado.
Tornou-se célebre a máxima de que seu smartphone sabe mais sobre você do que seus familiares e amigos próximos.
As técnicas de reconhecimento facial, por exemplo, já são capazes não apenas de identificar pessoas em manifestações de massa, mas acertam com pequena margem de erro quando se trata de saber sua orientação sexual. Tristan Harris, que ocupou o cargo de “designer ético” da Google, conta que trabalhou na Stanford Persuasive Lab Tech, onde uma das disciplinas é a “captologia”, a interface entre a ciência da persuasão e as tecnologias digitais.
O desafio, para estas corporações, está em manter a atenção das pessoas ligada aos dispositivos digitais. Isso se consegue oferecendo-lhes exatamente o que corresponde a seu desejo, segundo o conhecimento individualizado que os algoritmos formulam, a partir dos dados que lhes fornecemos gratuitamente. Assim, a internet, que deveria abrir as pessoas para horizontes cada vez mais amplos, colocando-as em contato com mundos diferentes daqueles em que vivem, converteu-se no seu contrário. Conhecendo a intimidade das pessoas, é possível dirigir-lhes mensagens particulares que correspondem exatamente ao que os algoritmos sabem que elas querem ler, ver ou ouvir.
Este conhecimento particularizado tem contribuído a enfraquecer o debate democrático contemporâneo e ampliar a polarização, uma vez que confina os indivíduos em mundos que já são os seus. E como o espetacular, o bizarro e o grotesco atraem muito mais a atenção do que o sóbrio, o elegante e o racional, isso cria o ambiente propício a que as pessoas reforcem sua identidade social, participando destas bolhas de repetição, por meio de seus posts e de seus likes.
Os impactos destes casulos de redundância em processos eleitorais podem ser devastadores, como mostraram recentemente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha.
Um exemplo basta: 33% de todos os tuítes da campanha de Donald Trump foram enviados por robôs. Isso criava a imagem de um apoio político inexistente, mas tanto mais verossímil que as mensagens dos robôs correspondiam exatamente àquilo que as pessoas queriam ouvir de um candidato. Ou seja, opacidade total!
Ninguém sabe bem como enfrentar este problema tão grave, mas tão recente. A esperança atual está em iniciativas vindas de organizações da sociedade civil experientes no emprego de tecnologias digitais e que preconizam responsabilidade e transparência inclusive no uso de robôs. Este uso só será legítimo se claramente identificado como tal, ou seja, se não escamotear do eleitor que quem a ele se dirige é uma máquina e não uma pessoa.
Vale a pena ler o manifesto lançado recentemente por organizações da sociedade civil brasileira sob a inspiradora hashtag #naovaletudo.
Leia mais sobre esse assunto aqui.
*Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP, autor de Muito Além da Economia Verde (Planeta Sustentável/Abril). Twitter: @abramovay – www.ricardoabramovay.com