Criadas para corrigir imperfeições de mercado, as agências reguladoras parecem preocupadas apenas em lidar com o monopólio. Com isso, deixam de lado as externalidades e seus impactos socioambientais
Sempre que o assunto das privatizações é retomado, ficam evidentes as chamadas imperfeições de mercado. Hoje tanto a disputa pela privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), no Rio, quanto a proposta do governo para um novo marco regulatório do setor de saneamento têm retomado a questão.
Na literatura econômica, as imperfeições de mercado são basicamente duas: o monopólio e as externalidades. O monopólio possibilita que o ofertante dos produtos ou serviços, aproveitando da sua força de mercado, venha a cobrar preços bem acima dos seus custos e bem acima do equilíbrio. As externalidades negativas são prejuízos impostos à sociedade não são arcados por aqueles que os provocam. Mas as agências criadas para corrigir essas imperfeições, especialmente aqui no Brasil, parecem preocupadas apenas com uma: o monopólio. Com isso, deixam de lado as externalidades e seus impactos socioambientais.
A força de mercado do monopólio deriva principalmente das chamadas barreiras de entrada que obstruem novos entrantes no mercado. Em geral, os níveis de lucratividade dos monopolistas incentivariam novos entrantes, por isso os monopólios tenderiam a não se sustentar, mas uma empresa que detém o monopólio, seja legalmente, seja por força de mercado, pode cobrar um preço maior dos seus serviços do que se cobraria em um ambiente de concorrência perfeita.
No caso de monopólio natural, por exemplo, os entrantes são naturalmente desestimulados, pois sabem que não alcançarão os níveis de custos da monopolista, uma vez que o setor, em geral, exige uma grande imobilização do capital, um longo prazo de amortização dos ativos, e uma economia de rede. Além do mais, visto sob ponto de vista da alocação de recursos, em alguns setores é pouco economicamente racional oferecer várias alternativas de redes ou ligações para todas as casas. Imagine você a irracionalidade de oferecer vários provedores de água, esgotos, eletricidade, gás, tudo com infraestrutura própria de conexão e distribuição redundantes. Ou seja, duas ou mais redes de água, esgotos, eletricidade, gás canalizado, aquecimento e assim por diante, para a mesma cidade, rua e residência.
Por isso é que os serviços públicos são, em geral, regulados. Não é à toa que a proliferação das agências reguladoras ao redor do mundo partiu da onda de privatização que se deu na década de 1980, iniciada pelo governo de Margaret Thatcher no Reino Unido. Essa onda chegou ao Brasil na década seguinte, mas com o mesmo objetivo: induzir (via ação do Estado) que o monopolista se limitasse a ofertar os serviços em nível de preços e quantidade que otimizam os seus lucros, oferecendo quantidade menor e preço maior (alocação ineficiente de recursos) do que em um ambiente de concorrência perfeita.
Para atender ao cumprimento desse objetivo, as agências reguladoras desenvolveram técnicas e cálculos tarifários em busca do equilíbrio entre oferta e demanda, entre o ofertante e o usuário de serviços e assim por diante. Tudo objetivando que, de um lado, a empresa ofertante tivesse recursos para manutenção e expansão dos serviços, mas sem penalizar em excesso o usuário.
Todo o esforço para mitigar o desequilíbrio entre usuários e fornecedores, entretanto, deixa de lado a outra forma de imperfeição de mercado: as externalidades. Externalidades são os efeitos da produção e do consumo não diretamente refletidos no mercado, já que não incorrem em custos para o tomador de decisão. Os custos são alocados socialmente e, portanto, não são internalizadas na composição específica dos custos do ofertante. A poluição é um dos exemplos. A poluição por uma empresa a montante (rio acima) incorre em custos maiores de tratamento de água das empresas a jusante (rio abaixo). Mas, sem que haja regulação que determine a internalização dos custos, a empresa rio acima não vai considerar economicamente racional tratar os seus efluentes.
O setor dos serviços públicos é uma das indústrias com maior impacto socioambiental (indutor de desenvolvimento, equidade, impactos ambientais) da economia e por isso se torna objeto de interesse dos governos, inclusive para justificar a sua estatização. Por essa razão, aspectos ligados a externalidades deveriam ser fundamentais na gestão regulatória, inclusive nos seus aspectos tarifários, mas atualmente no Brasil não são considerados.
Aqui, a disputa básica, como se pode ver nas diversas consultas públicas realizadas, ocorre entre o usuário que não quer pagar mais pelos serviços e a empresa concessionária que deseja ser mais bem remunerada pelos mesmos serviços. Com isso, perde-se uma ótima oportunidade de prover melhoras contínuas também nos aspectos referentes às externalidades que as atividades das concessionárias propiciam. Aspectos extremamente relevantes de um setor não chamado de serviços públicos por acaso.
Quem, por exemplo, defenderá a universalização dos serviços essenciais de tratamento de esgotos e limpeza dos rios? Se o consumidor for afastado dos mesmos e consequentemente não for atingido no seu bem-estar, talvez não se interesse. Sem que possa cobrar dos usuários, a concessionária também não se interessará. Portanto, ambos os atores podem acordar níveis de preços aceitáveis de abastecimento de água e coleta e afastamento de esgotos (aspectos essenciais para o bem-estar do usuário) a um preço que não contemple o caro tratamento do esgoto. Esse custo será diluído socialmente, na forma de maior incidência de doenças, restrição do uso da água e até no tratamento da água de outras regiões. Mas isso não necessariamente sensibilizará tanto usuários como concessionária a cobrir esse custo.
Por essa razão, a agência reguladora precisa atuar também com relação a essa outra imperfeição de mercado. Na questão das energias renováveis, ocorre o mesmo. Caso usuários queiram usar energias mais baratas (embora mais sujas) e as concessionárias não forem instigadas a melhorar a qualidade da energia no que tange as emissões, os atores não vão se movimentar e continuarão a proporcionar aumento de custos a outros atores, enquanto economizam recursos próprios.
No que tange às externalidades, entretanto, poucos setores podem ser tão exemplares quanto ao saneamento. É também um dos principais atrasos brasileiros. Nesse momento que se discute como avançar, utilizando-se capital privado para operar os sistemas, a discussão das externalidades deveria ser uma prioridade.
*Especialista em Regulação na Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), doutorando no Instituto de Energia e Meio Ambiente da USP e ex-secretário executivo do Fórum Capixaba de Mudanças Climáticas