Apesar de figurar entre as oito maiores economias e ter uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo, o Brasil falha no controle da poluição e registra 51 mil mortes por ano
No documento Qualidade do Ar e Saúde – Perguntas e Respostas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresenta os motivos para apresentar os seus indicadores de qualidade do ar a título de “recomendações”, feitas em 2005 aos países-membros das Nações Unidas, no qual se inclui o Brasil.
Note-se de antemão que qualquer organismo das Nações Unidas, como a OMS, deve observar, por questão protocolar, um elevado tato diplomático, que implica em sugerir, aconselhar – e não impor – sua orientação. A OMS justifica claramente o objetivo do formato “recomendação”: este se dá para ressalvar os diferentes estágios e desafios para o desenvolvimento em que se encontra grande parte da humanidade, onde condições adversas afetam principalmente os países mais pobres.
Diz a OMS: “Em muitos países em desenvolvimento, a consideração das emissões de poluentes no planejamento urbano, aquecimento, produção de energia e desenvolvimento dos transportes ainda não é uma prática comum. A ignorância dos efeitos da poluição na saúde ou sob apreciação de sua magnitude são grandes obstáculos na definição das ações e na mobilização de recursos locais e internacionais. Mesmo intervenções relativamente simples, como a melhoria dos fogões de cozinha ou o aquecimento com eletrodomésticos, podem reduzir radicalmente a exposição das pessoas à poluição, produzindo ganho a um custo mínimo”.
O Brasil não se enquadra no estágio de pauperidade que preocupa a OMS. Entre 194 países listados no mundo, o Brasil ocupa o 8º lugar entre as maiores economias, à frente da França e da Grã-Bretanha, em que pese ser o 64º lugar no ranking do PIB per capita, devido à sua má distribuição de renda, o que ainda precisa ser equacionado. Está entre os G20, os países mais ricos do planeta. Apesar da crise econômica atual, as perspectivas internacionais são otimistas, em médio prazo, para o crescimento econômico do Brasil – e apontam sua ascensão para o 7º lugar em 2027, e 6º lugar em 2032.
O Brasil também possui uma Constituição Federal democrática e ambientalmente robusta. Conta com uma das legislações ambientais das mais avançadas do mundo, e já está muito distante da situação de precariedade institucional de países com baixo índice de desenvolvimento, onde o controle da poluição não esteja previsto e não é, portanto, uma prática comum.
Além disso, também não há no País a ignorância sobre os efeitos da poluição sobre a saúde. Basta verificar as notícias e informações veiculadas pelos meios de comunicação há décadas. O Brasil conta ainda com ampla institucionalização na área de saúde pública (SUS) e com um Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), que abrange as instâncias federal, estadual e municipal. Ressalte-se ainda os milhares de conselhos de saúde e meio ambiente existentes, decorrentes da instituição da participação social nos processos decisórios.
Mas apesar disso, segundo dados atuais da OMS, o Brasil contabiliza 51 mil mortes por ano em decorrência da poluição do ar, o que exige medidas urgentes, com a implementação de políticas públicas para proteger a população. O primeiro passo é o estabelecimento de valores indicadores para a qualidade do ar, e que sejam seguros.
A melhor referência médico-científica internacional são, sem sombra de dúvida, os valores preconizados pela OMS, publicados em 2005, resultantes de uma ampla pesquisa científica desenvolvida por cientistas e pesquisadores em mais de 100 países. O Brasil adota ainda os valores da OMS de 1990, que foram institucionalizados por meio da resolução Conama 03/90, cuja revisão tem sido objeto de pedidos insistentes por parte do Proam, já que abarca um referencial desatualizado para a proteção da saúde.
Um dos poluentes mais agressivos apontados pela OMS é o material particulado (MP), cujos efeitos adversos atingem principalmente crianças, idosos e as populações economicamente desfavorecidas. O MP decorre principalmente da queima do diesel em veículos pesados, especialmente caminhões e ônibus.
Países muito pobres e pouco desenvolvidos, especialmente na Ásia e na África, utilizam a queima de combustíveis fósseis e de madeira até dentro das residências, e encontrariam dificuldades para atingir os padrões da OMS. Mas nenhuma das condições estruturais apontadas pela OMS como impeditivas da adoção imediata de bons padrões de qualidade do ar se aplica ao Brasil, cuja realidade socioeconômica, institucional e cultural é indubitavelmente melhor que a dos países em estado de pobreza.
Além disso, não temos dificuldades climáticas rigorosas que impliquem aquecimento a carvão, madeira ou diesel no inverno – e contamos com uma preponderante matriz hidrelétrica, além de imensa possibilidade para as matrizes solares e eólica. E temos cozinhas movidas a gás (dos males fósseis, o menor).
Isso leva o Brasil à condição de fazer o que já se faz em países desenvolvidos e industrializados: controlar as emissões das fontes fixas, especialmente em áreas industriais, assim como dos veículos diesel pesados – não esquecendo os geradores a diesel que alimentam grandes estabelecimentos em horários de pico quando a energia elétrica é mais cara.
Para combater o material particulado e diminuir a exposição da população, há anos o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) vem solicitando ao Ministério do Meio Ambiente, à Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo e à Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Cidade de São Paulo uma série de medidas emergenciais. Destas, destacamos a necessária atualização tecnológica para veículos pesados com motores a diesel de tecnologia Euro V para Euro VI (conhecida aqui como P8), além da urgente inspeção veicular obrigatória, especialmente para veículos diesel, enquanto a sociedade brasileira aguarda o último update dos avanços técnicos que possibilite a implementação das desejáveis matrizes automotivas limpas, como a elétrica, assim como a diversificação para modais mais sustentáveis de transporte.
Segundo o International Council on Clean Transportation (ICCT), “a tecnologia Euro VI é umas das políticas públicas mais importantes para o combate à poluição local e proteção à saúde pública”. Essa mudança tecnológica já ocorreu em países desenvolvidos e estão sendo implementadas com sucesso no Chile, México e Colômbia.
O Brasil jamais poderá postergar a adoção dos valores da OMS, buscando metas firmes para garantir a saúde da população, sob os argumentos econômicos de subdesenvolvimento. Para cortar o ciclo da poluição, trata-se aqui de simples equacionamento de custo industrial, com a adaptação da linha de produção – o que poupará sofrimento e salvará a vida de milhões de brasileiros ao longo das próximas décadas.
Note-se que o Brasil fabrica e exporta veículos com tecnologia Euro VI para o México e o Chile, enquanto continua a vender aqui o Euro V que, além de ser muito poluente, apresenta a possibilidade de fraudes com a supressão do aditivo antipoluente Arla 32, só para economizar no consumo.
Outro poluente, como o ozônio troposférico (O3), pode ser combatido reduzindo os compostos orgânicos voláteis (COVs) e óxidos de nitrogênio (NOX) com a atualização tecnológica para o abastecimento dos tanques de postos de combustível, assim como novos dispositivos de tecnologia veicular amplamente utilizada nos países desenvolvidos.
É inaceitável que custos à saúde decorrentes dos efeitos adversos de tecnologia obsoleta sejam repassados para a conta da saúde pública.
Também não há de se alegar falta de recursos públicos para monitorar o ar, já que o custo atribuído ao material particulado, em perda de vidas humanas precoces e o custo de saúde pública, está estimado, só nas 29 regiões metropolitanas brasileiras, no patamar de US$ 1,7 bilhão ao ano.
Tampouco podemos aceitar a estratégia postergatória do fala-e-não-faz, que temos assistido e documentado, em São Paulo e Brasília, por gestores que utilizam a prática populista do discurso fácil e das promessas vazias, apoiados pela memória curta da população, e que, para sobreviver em sua zona de conforto e omissão, não cobram devidamente os avanços da indústria e continuam a apostar na inércia da justiça. Em nossa prática política cartorial, visar de forma prioritária o financiamento de campanhas eleitorais tem sido um impeditivo do bom planejamento e gestão.
A situação de inércia no Brasil ultrapassou os limites da razoabilidade. É preciso responsabilizar os que continuam a financiar a poluição, mantendo a tecnologia Euro V, como faz o BNDES, assim como a própria indústria que a fornece, obviamente com lucros. A omissão que ocorre no Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve) há anos – e outras propostas correlatas como a Rota 2030 (programa de incentivo fiscal), devem estar sob forte controle ambiental, social e de transparência, sob pena de continuarmos mergulhados no atual ostracismo que se mantém escudado pela burocracia estatal.
Nossa legislação é provida de elementos normativos para a responsabilização dos poluidores, sendo estes quaisquer que contribuam para o dano ambiental, seja financiador, seja fabricante, seja gestor público omisso/conivente. Independente da obtenção das licenças devidas, não ficam isentos da reparação do dano ambiental os poluidores, desde que haja o nexo causal.
A motorização diesel atualmente utilizada no Brasil, como fonte de poluição do ar e sua relação com os episódios críticos de poluição em áreas saturadas, assim como a ocorrência das internações e óbitos, não deixam mais dúvidas, pois acumulamos décadas de pesquisa em saúde pública sobre a matéria, além de farto material disponível com dados internacionais.
É hora de agir, de proteger o direito fundamental ao ar limpo da população brasileira, de tirar a indústria e os gestores ambientais públicos do imobilismo e elevar o Brasil ao patamar saudável e civilizado de ar limpo recomendado pela OMS.
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) e membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)