Nosso trabalho bem feito incomoda e não podemos deixar que o mercado nos vença. Uma sociedade sem imprensa livre é confortável demais pro status quo. A gente precisa de mais pedras em mais sapatos. Vida longa ao jornalismo
Pra começar a ler esse texto, primeiro deixe de lado sua raiva contra a Veja. A Veja é uma (ok, talvez a mais) importante revista editada pela Abril, mas ela também é responsável pela publicação de Elle, Cláudia, Capricho, Gloss, Nova Cosmopolitan, Lola, Boa Forma, Women’s Health, Men’s Health, Placar, Playboy, VIP, Alfa, Superinteressante, Mundo Estranho, Recreio, Almanaque Abril, Guia do Estudante, Viagem e Turismo, Guia Quatro Rodas, Minha Casa, Arquitetura & Construção, Casa Cláudia, Exame, Você S/A, Veja São Paulo, Veja Rio, Veja BH, tantas outras, vou parar de nomear para não chorar mais do que já chorei pensando na derrocada desse gigante editorial que falou com tantas pessoas nesse Brasil tão grande. Dentro da editora muitos também odeiam a Veja, ela tem (tinha?) espaço para todo tipo de profissionais, da esquerda à direita, cada um em seu nicho dando seu sangue para fazer cada edição melhor que a anterior.
Em centros urbanos menores e mais distantes, a Editora Abril é que leva (levava?) conhecimento impresso por meio de suas revistas e coleções. Palavras que ajudaram crianças a aprender a ler, adolescentes a entender o próprio corpo, estudantes a passar no vestibular, mulheres a saírem de relacionamentos abusivos, aventureiros a pegar o carro e sair pelo Brasil. Levavam mundos possíveis, sonhos, desejos. Não concordo com todos os discursos que viajaram nas páginas das revistas, mas ultimamente elas estavam cada vez mais contemporâneas, a sociedade mudou e com elas também as revistas: a Elle teve capa com mulher trans, gorda, negras, demorou mas elas apareceram. E agora se despedem porque essa empresa-mamute não soube virar pombo-correio. Não entendeu que produz conteúdo, não revista impressa. E por isso não conseguiu adaptar-se aos tempos líquidos. Estamos em uma sociedade cada vez mais faminta por informação e esse gigante fecha os olhos, extinto por causa da teimosia de seus dirigentes.
Nós jornalistas costumamos falar pouco de como a salsicha das notícias é feita, mas frente ao encerramento de quase todas as revistas da Editora Abril vou quebrar o protocolo e falar do próprio rabo.
Todo mundo com mais de 20 anos lembra que nossa sociedade era cataclismicamente diferente antes da invenção do 3G e dos smartphones. Mas se tem uma coisa que nunca mudou é o tanto que jornalistas são maltratados no exercício do jornalismo. Escolhi a profissão por teimosia. Não faltaram avisos de que seria uma carreira de pouco sono, café ruim, altos níveis de stress, feriados e folgas fugazes e pouquíssimo (ou nenhum) reconhecimento. Mas a vontade de descobrir, ouvir e contar histórias foi mais forte que qualquer sensatez. Por isso me formei, empacotei meia dúzia de brusinhas e fui pra São Paulo fazer o Curso Abril de Jornalismo em janeiro de 2010 com uma dívida de 500 reais e muita vontade de participar da História.
Eu tinha 21 anos quando me formei e o mundo ainda não tinha quebrado e fumado minhas esperanças como se fossem pedras de crack. Hoje tenho 31 e não posso dizer que estou mais sábia.
Ainda acredito que as pessoas são essencialmente boas e tento olhar para o mundo com os olhos frescos das primeiras vezes (por isso tenho um blog de viagens, por isso escrevo crônicas, contos e poesia), mas também já tomei umas lambadas: já fui demitida, já levei calote, já me demiti pra fazer uma volta ao mundo, já trabalhei em redação, em agência de publicidade, em instituto de educação, já fui recepcionista de hostel, passeadora de cachorro, atendente de livraria, bartender, massagista. Hoje sou blogueira e frila: trabalho onde houver computador e conexão de internet.
O conceito de emprego líquido sonhado pelo TemerVampiro eu já vivo desde 2012 e aviso que desse lado da ponte não existe plano de saúde, previdência privada nem investimento em CDB. Neste momento não pago nem aluguel, tô morando com meus pais, que ainda bem deixaram o quarto que tinha virado escritório voltar a ser meu quarto. Mas tá tudo bem, é o que eu tento repetir como mantra todas as manhãs. Foi consequência das minhas tentativas de ser feliz e não me arrependo de nada. Um dia eu volto a ter grana pra pagar aluguel… mas esse texto não é sobre mim, é sobre o menino jornalismo. Voltemos a ele (e mandem frilas pra mim!).
2010 foi um ano de auge pra Editora Abril. Talvez não O Ano dO Auge, mas certamente um ano bom: a editora inaugurou as revistas Lola, Alfa, Minha Casa e Máxima, o portal Exame.com, expandiu o MdeMulher… e com essa bonança absorveu a maioria dos integrantes do meu Curso Abril em sua folha de pagamentos para compor a base da força de trabalho nessas marcas. Éramos repórteres, designers, fotógrafos e videomakers baratos, com a energia e o brilho nos olhos de quem acha que é especial porque foi selecionado entre centenas de profissionais para compor a elite do jornalismo de revistas no Brasil, quiçá do mundo. E éramos bons mesmo, talvez não Os Melhores mas entre os melhores, o Edward Pimenta, responsável pela seleção do Curso Abril, descobriu talentos preciosos ao longo de sua carreira. Ele saiu da Abril pra Editora Globo antes que o navio afundasse.
Era sensacional trabalhar num prédio ao lado de nomes do jornalismo que eu admirava — até que fomos expulsos. Nós chão-de-fábrica e eles pica-grossa também. Passaralho atrás de passaralho, as redações foram reduzindo, os títulos foram fechando até que a empresa que ocupava os 26 andares de um edifício espelhado na Marginal Pinheiros em São Paulo passou a ocupar só quatro desses andares, depois foi transferida pra um outro edifício comercial no Morumbi e então, hoje [7 de agosto de 2018], demitiu ainda mais gente, restando apenas 15 marcas, entre sites e revistas, do que era antes um império comparável a Condé Nast e Hearst. Passaralho, em jornalistês, significa demissões em massa, como uma revoada de aves que trazem desgraça profissional por onde passam. Muito ruim pra quem vai, péssimo pra quem fica e precisa assumir mais funções pra manter a máquina funcionando. Podem botar meu nome no bolão de apostas: a editora não dura mais 5 anos. Haja coração para seguir tocando violino enquanto o Titanic afunda.
O que aconteceu com a Abril? A crise do jornalismo assola todas as redações do mundo, mas por que ela, especialmente, teve uma derrocada tão feia em tão pouco tempo? E o que os outros meios de comunicação podem aprender com sua queda — e evitar o próprio fim?
Lá em 2010, durante o Curso Abril de Jornalismo, a gente teve palestras sobre a crise do impresso: as verbas de publicidade estavam migrando das páginas de revistas e jornais para a internet. Os conglomerados de comunicação ainda não sabiam como fazer para atrair esse investimento de volta. O ideal teria sido assumir que o mundo estava mudando e descobrir um jeito de impedir que toda a grana que seria remanejada do papel pro digital fosse diretamente pro Google e Facebook. Talvez desse para manter uma parte desse dinheiro nas marcas em sua versão digital… Mas isso não foi possível. Tanto porque Facebook e Google entregam publicidade com precisão cirúrgica (dá pra segmentar um anúncio só para mulheres grávidas entre o 6º e o 9º mês de gravidez, por exemplo. Sim, é MUITO assustador!) como porque as empresas jornalísticas demoraram a aprender — e talvez não tenham aprendido totalmente ainda — como fazer para ganhar dinheiro com jornalismo na internet. E a gente lá dentro da empresa desesperado vendo o Titanic se aproximar do iceberg.
E sabe quem pegou uma fatiazinha do mercado que as revistas e jornais poderiam ter ocupado? Eles, os produtores de conteúdo: influenciadores. Enquanto as revistas estavam batendo cabeça para manter os jornalistas longe dos holofotes, a nossa sede por contato humano foi saciada por gente que não tem problema em expor a própria vida na rede.
A Editora Abril tá falida porque não entendeu que seu negócio era produzir conteúdo, não imprimir revista. As mentes dinossáuricas na dirigência da Abril nunca deram o valor devido à tal da internet. Acharam por muitos anos, até tarde demais, que a net era moda passageira, ou algo do tipo. Acreditavam que as pessoas jamais trocariam um impresso folhudinho por telas touch. Ou, se trocassem, seria para ler revista em tablets. Eram apegados demais ao meio, à materialidade, falhando em perceber que o que mantinha os assinantes e compradores fiéis era o excelente conteúdo produzido por jornalistas, designers, ilustradores, cronistas, fotógrafos que recheavam as revistas.
Esses profissionais incríveis poderiam ter continuado seu trabalho em qualquer meio, adaptados os formatos devidamente… mas estavam sempre entre os primeiros a serem expulsos da editora nos passaralhos. Os donos da Abril tinham que ter demitido os cabeça-duras que teimavam em investir no impresso como sempre tinham feito, os profissionais de marketing que só sabiam vender anúncio de página, os resistentes às mudanças inevitáveis da sociedade.
Tinham que ter investido num núcleo de inovação que tivesse poder real para empreender mudanças nas redações, pra testar formatos de conteúdo aliado com vendas… e não só pra parecer que fazem bonito, tolhendo todas as boas ideias que a galera de chinelo e espinha na cara, mas que manjava de tecnologia, sugeria. Trabalhar com web na Abril era desesperante, digo por experiência própria.
E mais! A Editora Trip (que também não tá bem, mas enfim, outra história) faz conteúdo pra marcas desde sua criação e só em 2015 a Editora Abril percebeu que essa poderia ser uma saída pra aumentar a rentabilidade da empresa. 2015, gente. Tarde demais. A fatia do mercado de publieditoriais já tinha migrado pros blogueiros. Eu sou blogueira e adoraria fazer vários publis pra pagar boletos e viagens, mas somos poucos os que têm algum tipo de compromisso com conteúdo de qualidade. Tem muita gente ruim ganhando dinheiro na internet. E não só gente ruim de coração, não, gente ruim de serviço mesmo.
Outra característica da atualidade é que todo mundo pode produzir conteúdo. Basta ter internet, saber escrever, tirar fotos, editar vídeos e publicar.
Bom jornalismo respalda as informações que veicula com fontes especializadas, pesquisas, livros, compromisso com o leitor. Produtor de conteúdo… nem sempre. Depende de quem publica, la garantía soy yo. E muita gente não liga a mínima para a veracidade do que veicula. Quer lacrar, bombar, virar meme, angariar muitos seguidores e interações para ganhar dinheiro com eles.
Como as empresas de publicidade só querem saber de quantidade de seguidores e interações do influenciador, tanto faz como ele consegue isso: se é produzindo conteúdo de qualidade, somando na vida das pessoas que os assistem e leem, ou ficando nu, ofendendo gente, abusando do grotesco e do sensacionalismo. As marcas contratam olhando números e financiam gente que representa o pior da humanidade. Aí, quando o ~famosinho é racista, machista ou homofóbico, as marcas acionam seu departamento de relações públicas pra se desculpar “não compactuamos com esse tipo de comportamento” e retirar o patrocínio. Mas a fama do escroque já tá feita e os boletos dele já foram pagos.
Tem youtuber andando de jatinho hoje em dia, pra quê? Dividam essa grana com a Editora Abril e impeçam que a Mundo Estranho feche, pelamordedeus. Quer dizer, a ME já fechou… mas a Superinteressante ainda tá lá. Eu amo a Super, eu lia muita Super quando era uma jovenzinha adolescente, foi lá onde eu escrevi umas matérias bem loucas, tipo uma sobre a inteligência das plantas e outra sobre como escapar de uma ilha deserta. Eu queria muito que essa marca sobrevivesse por gerações. Mas não vou me enganar achando que isso vai acontecer.
Uma premissa é clara hoje que não era em 2010: não dá pra competir por clique. Sempre vai ter um site ruim especializado em SEO para catar cliques fazendo mais dinheiro com google ads do que empresas que pagam jornalistas para investigar e produzir conteúdo de qualidade. Bom jornalismo precisa de tempo (pero no demasiado), de procrastinação, de um mix de gente jovem com energia e gente experiente que transmita conhecimento.
Uma boa matéria tem entrevistas com especialistas que dão informações além do que o que está escrito na Wikipedia. É preciso manter relacionamento com fontes, triar os releases ruins dos bons e ligar pra pessoas que não estão citadas neles para saber se o que foi escrito pelas assessorias de comunicação procede mesmo, ler livros, ir a exposições, peças de teatro, ciclos de palestras, a eventos que não vão dar em nada e, no táxi da volta, descobrir que existe uma pauta ali adiante que ninguém mais vai publicar.
Quando bem feito, jornalismo é uma competição entre jornalistas pra ver quem encontra mais pérolas no mar. Fazer bom jornalismo é uma mistura de faro treinado, ouvido atento, curiosidade, jogo de cintura e sorte — robôs jamais conseguirão nos emular. Ou pelo menos acreditarei nisso até o fim.
As histórias continuam na rua para quem tem sentidos para perceber. Mas faz tempo que os jornalistas não saem das redações pra reportar o mundo. Quando a informatização chegou, imaginava-se que os jornalistas e designers iam trabalhar muito menos, mas o que aconteceu é que muita gente foi demitida e quem ficou continuou trabalhando no limite da adrenalina. São muitas pautas por dia pra cuspir, as assessorias já mandam conteúdo suficiente para preencher a cota necessária, porque sim, as assessorias de comunicação desonestas mandam matérias já prontinhas pra jornalista preguiçoso botar o próprio nome e publicar. Essa prática é muito comum e pouca gente sabe disso. Isso não é jornalismo, isso é preencher espaço, fazer o mínimo. Menos que o mínimo.
O leitor percebe que está sendo enganado. Pouco depois de um passaralho vai embora também uma parte da audiência, que se chateia com o conteúdo piorado feito por menos profissionais equilibrando pratinhos. Por que vou pagar 16 reais numa revista que não me dá nada que já não esteja na internet de graça? Não vou. E o ciclo segue vicioso: menos público gera menos verba de publicidade que gera arrocho nas redações que gera conteúdo pior que gera menos público…
O leitor deveria ser o chefe do jornalista. É isso que a gente sai da universidade acreditando e é isso que diferencia um jornalista de um produtor de conteúdo contratado por uma empresa.
Rapidinho percebemos que entre nossa matéria e o leitor tem o editor, o editor-chefe, o dono do meio de comunicação, as empresas que anunciam nele e os meios de distribuição do veículo… É um trabalho coletivo de equilíbrio tênue, mas um bom jornalista seria aquele que consegue driblar todas as camadas de censura para fazer sua apuração chegar o mais pura possível na prensa, esperando que o pessoal do marketing e da distribuição façam com que ela chegue até os leitores. Ufa.
Se fosse assim já seria estressante, mas na fábrica de salsicha é bem pior. Não é nem nunca foi interessante pras grandes famílias que detém os meios de comunicação e as grandes corporações que o jornalismo seja isento. Sempre foi um campo minado para quem, idealisticamente, quisesse denunciar os injustos e ajudar os justos a obter justiça.
O tal jornalismo isento 100% não existe. Não. Existe. Nunca. Existiu.
Mas hoje em dia até o jornalismo meia-boca respira por aparelhos.
Nas grandes empresas tradicionais brasileiras, é essa insalubridade que falei aí em cima. Aí tem as as iniciativas gringas com filial no Brasil: El País Brasil, BBC Brasil, The Intercept Brasil, Vice News… outra parada, nem me atrevo a analisar porque não manjo, mas parece que o El País tá mal das pernas também. God Save The Queen of England e o imposto que mantêm a BBC de pé, amém.
E tem as pequenas. As empresas criadas por comunicadores que foram espremidos das grandes indústrias, os levados pelos passaralhos que estão apostando economias e energias no jornalismo independente. Nexo, Agência Pública, Jornalistas Livres, Mídia Ninja, a Revista Bravo!, que tinha sido fechada pela Abril e cujos direitos foram comprados por editores varridos num chefaralho (o passaralho de chefes). Empresas embrionárias que experimentam modelos de negócios, arriscam novas formas de ganhar dinheiro com jornalismo, que sejam eternos enquanto durem.
Eles são pequenos ainda para absorver esse grande mercado de jornalistas desempregados, suas redações compostas por alguns grandes jornalistas experientes e vários recém-formados de olhos brilhantes. Eu adoraria que prosperassem, me contratassem, contratassem boa parte dos jornalistas que foram demitidos hoje na Abril e muitos outros ótimos que foram embora em passaralhos anteriores e pudéssemos viver uma longa e duradoura relação. Mas meus poucos 10 anos com o jornalismo me ensinaram a ser mais cabreira que a minha já desconfiada mineiridade.
Quem vai pagar para que possamos produzir matérias, veiculá-las e pagarmos nossos boletos para seguirmos produzindo e veiculando notícias verdadeiras? Há experiências interessantes. A International Journalist’s Network listou 7 modelos de negócio que talvez possam salvar o jornalismo. O mais adotado hoje é o de paywall, aquele esquema que permite ler 10 matérias grátis por mês, mas depois bloqueia e pra ler mais tem que pagar mensalidade.
O New York Times inaugurou sua paywall timidamente em 2011, mas o número de assinantes está crescendo cada vez mais e parece que ela vai dar conta de segurar o forninho da empresa do tamanho que está (com todos os 1300 jornalistas) mesmo se perder os assinantes do jornal impresso. Pode ser a salvação do jornal e por isso o modelo tem sido replicado aqui pela Folha, Globo, Estadão… Mas eu temo que não seja o melhor jeito de fazer. Quem não paga pra atravessar esse muro acaba lendo só as manchetes, um mal que vivemos nesse mundo de pós-verdade.
O jornalismo está em crise (houve época em que não esteve?), mas a sede por notícia não acabou. Nunca lemos tanto. Todo mundo lê postagem no Facebook, legenda do Instagram, legenda de vídeo fofo ou de notícias que assistimos com o som desligado, tweets, mensagens no WhatsApp, posts de blog e ainda assistimos a canais no YouTube, ouvimos podcasts, e, gente do céu, as pessoas ainda leem livros! No século XXI! As editoras tradicionais podem estar em crise, mas o mercado editorial independente está crescendo real oficial. É bonito de ver. É fato que a sociedade em que vivemos é uma sociedade leitora, mesmo que seja leitora de memes. Analfabetos não nos tornamos.
Lemos, mas temos sérios problemas de interpretação de texto: a gente lê manchete, uma legenda ou duas, o olho (aquele pedaço da matéria em letras grandes) e se dá por satisfeita, interpreta como convém. Com paywall, temos até a desculpa que não dá pra ler e tem que se contentar mesmo só com a manchete porque não pagamos a mensalidade do jornal em questão. Mas a gente lê. O desafio é entender como fazer com que as pessoas leiam mais, leiam melhor — e leiam menos mentiras.
O resultado da crise de credibilidade no jornalismo aliado ao crescimento de blogs que não precisam de legitimidade alguma pra existir e crescer é que as notícias falsas se espalham feito fogo no inverno do Cerrado. Eu vejo uma manchete ultrajante que confirma meus preconceitos e compartilho, sem clicar. Manchete falsa cresce mais que pão orgânico no calor das nossas bolhas e aí caras bizarros tipo o Trump são eleitos. Acendo uma vela todo dia para que o Bozonada não consiga o mesmo feito. Precisamos aprender com os erros dos outros, é urgente!
Atrasados em uns dois, três anos, Facebook e Google se aliaram a empresas jornalísticas para checar notícias espalhadas em suas redes… talvez esteja aí o futuro do financiamento do jornalismo diário..? A verba da publicidade voltando dos gigantes da internet pros gigantes do jornalismo que mantém estúdios de checagem para derrubar as notícias falsas que os dois, em sua disputa pelo dinheiro das marcas, deixaram germinar tipo cuscutas, parasitas.
O futuro do jornalismo não é um só, serão vários caminhos, isso é certo.
A Abril foi uma escola onde coloquei em prática vários conceitos que eu tinha aprendido na faculdade e onde aprendi muitos mais, alguns com meus editores e alguns na marra, fazendo, experimentando, reformulando, sonhando e tornando os sonhos possíveis. Sem romantizar, tinha muito editor abusador lá também, gente maluca que queria que a gente não tivesse vida fora da editora, que usava drogas em horário de trabalho, que glorificava fechamento que virava noite, que assediava mulheres. Tinha de tudo. A Editora Abril era um microcosmo.
Acredito que ainda é possível fazer jornalismo com sangue na boca, mesmo com o fim desse laboratório gigante que reunia tanta gente com vontade de fazer.
Eu quero acreditar que ainda tem lugar nessa sociedade pra bons jornalistas. Agora, nesse contexto de loucura que vivemos, precisamos de gente defendendo direitos humanos, democracia, denunciando corrupção, calculando e recalculando porcentagens de comunicados públicos pra achar erro e denunciar. O jornalismo tem que ser pedra no sapato e, se não incomodar, tá fazendo errado. É por isso que tantos jornalistas morrem no México. É por isso que o Sakamoto recebe ameaças de morte por denunciar trabalho escravo. É por isso que não existe imposto brasileiro que financie uma empresa de comunicação pública como é a BBC.
São ideais apenas, eu sei. Eles, os sonhos, fizeram que nos preparássemos para uma carreira que até os professores das universidades alertam que é furada. É furada. Eu falo isso pra todo mundo que estuda jornalismo hoje: faça outro curso. Já tem jornalista desempregado demais no mercado. Deixa essa profissão pra lá, vai fazer letras, publicidade, radialismo, medicina, sei lá.
Quem formar forma por teimosia e já sai avisado que vai dar merda, como eu me formei. Dez anos depois, eu sou frila morando com meus pais, volto a lembrar. Mas ainda acredito que o jornalismo tem uma função social. E que um dia, quem sabe, voltarei a conseguir pagar boletos e ser jornalista ao mesmo tempo.
Nosso trabalho bem feito incomoda e não podemos deixar que o mercado nos vença. Uma sociedade sem imprensa livre é confortável demais pro status quo. A gente precisa de mais pedras em mais sapatos. Vida longa ao jornalismo.
—
Escrevi esse texto depois de uma chuva de granizo estranhíssima que caiu sobre Belo Horizonte. Estamos em agosto e não deveria estar chovendo granizo — as pedras de gelo geralmente caem no verão — mas o aquecimento global está aí (winter has come) e a gente vai precisar se acostumar a não entender mais o tempo como antigamente.
Lívia Aguiar é jornalista, escritora, mochileira e autora de um blog sobre viagens, eusouatoa.com. Este artigo foi publicado originalmente em sua página no Medium.
Quer ler mais sobre o assunto? Acesse esta edição de Página22 que publicamos em julho de 2013 (“Jornalismo é Achado Vivo”), que antecipou muita coisa. Aqui, a reportagem de capa, “Imprensa Sem Papel”.