#P22Indica
O Observatório do Clima fez uma análise das declarações do novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. E encontrou falas que podem ser enquadradas como meia-verdade, mentira, desinformação, falácia, contradição ou falsa contradição. Confira abaixo, em texto de autoria do próprio OC:
Dada a quantidade de desinformação propagada a todo momento pelo governo Bolsonaro, o OC se vê na obrigação de esclarecer os equívocos das falas do ministro. Convidamos nossos leitores a colaborar com a checagem nos próximos quatro anos. Se você ouvir alguma coisa esquisita nos discursos do ministro, mande para nós no Twitter @obsclima com a hashtag #expliqueaosalles.
“O Brasil é credor no clima, não devedor.” (Bloomberg, 7/1)
MEIA-VERDADE – O Brasil de fato fez um esforço importante para conter emissões entre 2005 e 2012, quando reduziu a taxa de desmatamento da Amazônia em cerca de 70%. Foi um dos países que fizeram mais no clima em menos tempo, e sem prejudicar a economia: o PIB do País teve seu maior crescimento justamente no período em que o desmatamento amazônico teve sua maior redução.
Ai de nós: essa era acabou. De 2012 para cá o desmatamento tem uma tendência de alta, como você pode ver nesse gráfico com os dados oficiais do Inpe. O desmatamento em 2018 foi duas vezes maior do que a meta da lei brasileira de clima para 2020.
Além disso, o Brasil não reduz emissões de fato desde 2009. Como mostram os dados do SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do OC, o Brasil vem patinando ao redor de 2 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente por ano. Com o agravante de que nossa emissão por habitante, de 10 toneladas por ano, é maior que a média mundial, 7 toneladas.
Para completar, a meta brasileira no Acordo de Paris, a chamada NDC, é para lá de insuficiente para cumprir o objetivo do acordo, limitar o aquecimento global a menos de 2oC. Nisso pelo menos o Brasil não está sozinho: apenas sete países têm metas compatíveis com 2oC, e destes somente Índia e Filipinas são grandes emissores.
“Nós fizemos muito, nos comprometemos muito e colhemos pouco.” “Existe uma diferença quando você estabelece obrigações futuras em troca de um benefício futuro, incerto, indeterminado, e quando você recebe uma compensação por algo já feito. Nós fizemos um monte de coisa até aqui. E o que está acontecendo com essas promessas de recursos?” (O Globo, 9/1)
DESINFORMAÇÃO – O ministro parece ignorar a mecânica do Fundo Amazônia, principal compensação financeira internacional que o Brasil recebe na área climática, que acaba de fazer dez anos. Os repasses da Noruega e da Alemanha ao fundo são feitos apenas quando o Brasil relata ter reduzido o desmatamento – portanto, trata-se precisamente de compensação por algo feito. O fundo já captou US$ 1,23 bilhão por desmatamento reduzido. Quando a taxa de desmatamento sobe, o país não recebe, como aprendeu Michel Temer em 2017 na Noruega, a duras penas.
“Há um grande discurso internacional de que tem bilhões e bilhões de dólares à nossa disposição e a gente não usa porque não quer. Não é bem assim” (Eldorado, 11/1)
FALÁCIA – Salles levanta uma premissa falsa ou exagerada para rebatê-la depois. Quem falou que existem bilhões e bilhões de dólares? Salles não explica. Falando em bilhões e bilhões, Carl Sagan, autor de um livro com esse nome, escreveu outro livro, O Mundo Assombrado pelos Demônios, no qual chama essa técnica de argumentação de “espantalho”.
“Dois terços do desmatamento ocorrem em Terras Indígenas e Unidades de Conservação” (Bloomberg, 8/1).
MENTIRA – É difícil dizer de onde Salles tirou essa informação, mas ela é desmentida por vários dados. O próprio Ministério do Meio Ambiente tem em sua página na internet uma análise dos dados de desmatamento do Inpe de 2018. Lá está o desmate detalhado por categoria fundiária. Terras Indígenas e Unidades de Conservação respondem juntas por apenas 15% de tudo o que se destruiu na Amazônia em 2018. Terras privadas e grilagem de áreas públicas (que são vendidas para produtores rurais) respondem por 59% do total. Uma análise independente do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), feita a partir de dados de outro satélite, chegou a conclusão semelhante: 18% do desmatamento de 2018 ocorreu em Terras Indígenas e áreas protegidas estaduais e federais e 65% em áreas públicas griladas e terras privadas.
“Mas a moratória da soja diz que não pode desmatar na Amazônia Legal. De 2006 para cá já tem um monitoramento e de 2012 veio o Código Florestal e os percentuais todos, então você tem um problema aí. Quando você impede o livre usufruto da propriedade e do direito de produzir, você tem que automaticamente colocar à disposição da sociedade um instrumento de compensação financeira para esses produtores.” (O Globo, 9/1)
DESINFORMAÇÃO – A moratória da soja é uma exigência do mercado, não uma obrigação imposta pelo governo aos sojicultores. Para poder vender a alguns clientes, os produtores precisam se comprometer a não plantar soja em áreas de novos desmatamentos na Amazônia. O fato de que a produção de soja no Pará subiu 1.068% no período da moratória (dados da Conab) sugere que os produtores estão bem sem recorrer a novos desmatamentos, obrigado.
Sobre o Código Florestal, Salles se equivoca: os percentuais atualmente em vigor (20% de desmatamento permitido em propriedades na Amazônia, 80% no Cerrado e na Mata Atlântica e 65% no Cerrado amazônico) foram dados não em 2012, mas em 1996, pelo Código Florestal. Em 2012 eles foram apenas ratificados – e flexibilizados para fins de recuperação.
“Como é que você vai tratar os resíduos sólidos no Brasil? Os resíduos sólidos são responsáveis por emissões de gases do efeito estufa. Tem que ter um mecanismo para você trazer dinheiro para cuidar disso.” (O Globo, 9/1)
DESINFORMAÇÃO – Tal mecanismo já existe: ele se chama Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, criado em 1997. Ele permite que projetos que reduzam emissões no Brasil possam ser objeto de pagamento externo ao gerar créditos de carbono. Foi assim que o então prefeito de São Paulo Gilberto Kassab levantou R$ 34 milhões de um banco holandês em 2007 para bancar a captura de metano para gerar energia no aterro sanitário Bandeirantes, no bairro de Perus. Mais uma vez, o ministro tinha a informação fácil, se quisesse: o maior especialista do mundo em MDL, o engenheiro José Miguez, trabalhava no Ministério do Meio Ambiente – na secretaria de clima extinta por Salles.
“O percentual de aumento do desmatamento demonstra que a política de fiscalização pirotécnica não funciona. Isso não tem resultado prático, tanto que o desmatamento aumentou”. (O Globo, 9/1)
INVERIFICÁVEL – O desmatamento na Amazônia é influenciado por uma série de fatores: preço de commodities, grau de aquecimento da economia, clima, política local – e fiscalização. Esta última sempre foi determinante para redução do desmatamento: a grande queda de 32% entre 2004 e 2005 se deveu a Exército em campo na Amazônia e às operações da PF contra o crime organizado e a madeira ilegal. Foi exatamente a “pirotecnia” da fiscalização criticada pelo ministro que derrubou o desmatamento quando ele parecia fora de controle e que manteve baixo, com o auxílio de um novo sistema de monitoramento por satélite, o Deter, e da criação de bases operativas do Ibama.
A dinâmica, porém, mudou, e a fiscalização passou a ter eficácia limitada em continuar reduzindo as taxas. Mas segue sendo fundamental para evitar que elas aumentem: quando caiu a verba do Ibama, em 2015, o desmatamento aumentou. Em anos eleitorais, quando políticos locais prometem liberar geral e as PMs dos Estados colaboram menos com o Ibama, o desmatamento costuma subir. Em 2018 não foi diferente.
Aliás, uma análise estatística mostrou que todos os municípios que mais desmataram na Amazônia nos últimos 17 anos elegeram Bolsonaro no primeiro turno em 2018. Correlação ou causa?
“Você pode ter ferrovia passando em unidade de conservação e a compensação econômica por essa ferrovia ser o recurso necessário para cuidar dos outros. Você pode ter uma linha de transmissão numa Unidade de Conservação e o royalty que ela vai pagar para passar ali ser justamente o recurso, e às vezes até o know how, porque você pode embutir monitoramento por sistema de câmera, por satélite, por drone etc. Em vez de olhar o gerador de atividade econômica como inimigo, você pode olhar como um parceiro.” (O Globo, 9/1)
DESINFORMAÇÃO – Existem categorias de Unidade de Conservação que já permitem infraestrutura. E já existe um mecanismo que permite com que áreas protegidas afetadas indiretamente por um empreendimento recebam dinheiro desse empreendimento a título de compensação. O nome do mecanismo é precisamente compensação ambiental, e ela já movimentou R$ 1 bilhão. Em 2017, uma Medida Provisória tornou mais fácil para o Instituto Chico Mendes movimentar o dinheiro da compensação e aplicá-lo nas unidades.
“O que está havendo é que houve um descontrole na aplicação da lei e da fiscalização ambiental e a prova disso é que um percentual muito pequeno dos autos de infração se converte em multas e em punição lá na ponta”. (O Globo, 9/1)
CONTRADIÇÃO – Salles parece desmentir a “indústria da multa” propalada por seu chefe, Jair Bolsonaro. Como pode ser uma indústria se poucos autos viram multa? Como pode haver descontrole na fiscalização se poucos autos viram multa?
“Não levantei suspeita sobre o contrato, apenas destaquei seu valor elevado, conforme meus esclarecimentos na própria postagem. O valor elevado também foi questionado pelo TCU desde abril e, portanto, não precisava ser assinado a dez dias da troca de governo”. (Twitter, 6/1)
“Vamos fazer paralelamente uma (investigação) informal, interna, e outra formal na CGU.” (O Globo, 8/1)
CONTRADIÇÃO – Perguntado nas redes sociais sobre o tuíte em que aparentemente questiona o contrato de R$ 30 milhões por aluguel de carros pelo Ibama (e que motivou uma gafe de Jair Bolsonaro na rede social), Salles negou ter levantado suspeita sobre o valor. Ato contínuo, mandou a Controladoria-Geral da União investigar o contrato. A declaração do dia 8 ao jornal O Globo – o jornal afirma que a razão do pedido de investigação foi, sim, o valor do contrato – desmente o tuíte da antevéspera.
“Estamos procurando diversas fontes, o Inpe, a Embrapa e vários outros bancos de dados para que possamos ter, junto com a informação do deflorestamento, que é a supressão de vegetação, que é o desmatamento, ter embaixo ter toda uma linha de informação sobre onde efetivamente estão sendo feitos esses desmatamentos.” (Eldorado, 11/1)
DESINFORMAÇÃO – O Ibama já sabe onde são feitos os desmatamentos, se são legais ou ilegais e em que categoria fundiária eles estão. É exatamente por isso que ele multa. Se não soubesse onde é, não tinha como mandar fiscal lá, talkey?
“Há uma pressão internacional com fundamento comercial. Então nós achamos que muitas dessas manifestações de entidades internacionais, às vezes de organismos multilaterais, são despretensiosas, não têm conexão com relações comerciais, mas na verdade são longa manus, são atividades disfarçadas de barreiras comerciais.”(Eldorado, 11/01)
INVERIFICÁVEL – Salles levanta suspeitas sobre ONGs e organismos multilaterais sem citar um caso concreto e nem sequer fornecer uma evidência. Quando encontrar avise a gente.
“Nós precisamos de fato ter uma visão de defesa do meio ambiente, que é um valor importantíssimo, inegociável, como eu sempre digo, mas com responsabilidade e com a noção de que o Brasil e os brasileiros têm de ser os principais beneficiários do nosso esforço governamental. Não é uma agenda global que deve pautar o nosso trabalho, mas o interesse legítimo do brasileiro, pagador de impostos, do brasileiro contribuinte, que vive aqui.” (Eldorado, 11/1)
FALSA CONTRADIÇÃO – Não existe uma “agenda global” que “pauta” o País. O que existe são problemas mundiais (só para ficar claro, “mundiais” significa “que afetam o mundo inteiro) que não podem ser atacados por países individualmente. Como disse um ex-presidente brasileiro, o problema da poluição é que o mundo é redondo. Como o Brasil faz parte do mundo, a poluição também o afeta. O esforço do Brasil para combater a mudança climática deriva justamente do entendimento de que isso é de interesse direto dos brasileiros: por exemplo, o País gastou em média R$ 270 bilhões entre 2002 e 2012 com extremos climáticos, segundo estudo do Grupo de Economia do Meio Ambiente da UFRJ. Segundo o IBGE, somente entre 2013 e 2017, mais de 2.700 municípios brasileiros sofreram com secas severas, enquanto outros mais de 1.700 sofreram com enchentes. Combater o aquecimento global, restaurar ecossistemas e mudar a matriz energética é de interesse da segurança de todos, e ainda deixa muita gente mais rica no caminho: um exemplo é o setor de etanol, que ganhou mercados com os esforços dos países para reduzir o uso de petróleo.
“Nós precisamos ter muito cuidado de saber identificar as boas oportunidades para o Brasil do ponto de vista de avanço tecnológico, de parcerias e recursos que decorram dessa agenda do acordo do clima e por outro lado, ao mesmo tempo, saber identificar riscos que nós temos de evitar de ingerência internacional sobre o nosso território, sobre políticas brasileiras de produção agropecuária, de gestão do nosso patrimônio genético, cuidado com a biodiversidade.” (Eldorado, 11/1)
DESINFORMAÇÃO – Você já sabe, mas não custa repetir: não existe risco nenhum de ingerência internacional advindo da agenda do acordo do clima. Afinal, o acordo do clima só pôde ser assinado porque 196 países analisaram linha a linha o texto e concluíram que não havia risco nenhum de ingerência. No Acordo de Paris, as metas são nacionalmente determinadas, o que significa que cada país propõe o que bem entender. Todas as metas climáticas adotadas pelo Brasil foram voluntárias.
Acesse aqui a publicação original.
Leia aqui a Parte II, a respeito da entrevista concedida pelo ministro no Roda Viva.