Em vez de ajudar a economia global na transição para o baixo carbono, a digitalização dos setores econômicos pode contribuir para aumentar as emissões e intensificar a mudança do clima. O alerta vem do think tank The Shift Project:
A tecnologia da informação e comunicação (TIC) sempre foi vista como uma aliada importante no esforço global contra a mudança do clima por sua capacidade disruptiva de transformação de processos e práticas em quase todos os setores econômicos. Com a internet e os diversos dispositivos digitais que nos cercam hoje, por exemplo, muitas pessoas conseguem trabalhar de suas próprias casas, sem se locomover para escritórios e, consequentemente, sem emitir gases de efeito estufa que contribuem para o aquecimento global.
No entanto, esse potencial ainda não está sendo aproveitado. Pior: a infraestrutura e os produtos digitais de alto consumo energético estão crescendo além de nosso controle. O consumo de energia de TIC representou em 2018 cerca de 3,7% das emissões globais de gases de efeito estufa e segue aumentando ao ritmo de 9% ao ano. Se isso se mantiver nas próximas décadas, em vez de ajudar a economia global na transição para o baixo carbono, a digitalização dos setores econômicos pode contribuir para aumentar as emissões e intensificar a mudança do clima.
Este é o alerta do relatório Lean ICT – Towards Digital Sobriety (TIC Enxuto – Rumo à Sobriedade Digital, em tradução livre), publicado nesta semana pelo think tank francês The Shift Project. O estudo foi elaborado por um painel de especialistas que avaliou os impactos ambientais das tecnologias digitais, no contexto da digitalização, e o crescimento rápido nos fluxos de dados e nas bases de terminais instaladas.
O setor de TIC é considerado estratégico para viabilizar esforços de mitigação das causas e adaptação aos efeitos da mudança do clima. No entanto, geralmente os impactos ambientais diretos e indiretos relacionados ao uso crescente de equipamentos digitais são constantemente subestimados devido à miniaturização dos dispositivos e a invisibilidade da infraestrutura relacionada.
Os impactos ambientais da digitalização podem ser administráveis se o consumo excessivo que existe em diversos mercados hoje for reduzido, o que ajudaria a limitar o aumento do consumo energético de TIC em 1,5% por ano.
Assim, mudanças nos padrões de consumo rumo a uma sobriedade digital, particularmente nos países desenvolvidos, podem viabilizar uma transição digital em linha com as preocupações globais com a mudança do clima.
Uma transição digital comedida consiste basicamente na compra de equipamentos de baixo consumo energético, que não precisam ser recarregados sucessivas vezes, e reduzir o uso desnecessário de equipamentos de alto consumo energético.
O relatório traz quatro conclusões centrais nessa análise.
A intensidade energética da indústria digital cresce em todo o mundo à taxa de 4% ao ano, em contraste com a tendência global, que declina 1,8% por ano.
O consumo energético direto de cada US$ 1 investido em tecnologias digitais aumentou 37% desde 2010. As emissões de dióxido de carbono equivalente (CO2e) do setor digital aumentaram em cerca de 450 milhões de toneladas desde 2013 nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na medida em que as emissões gerais caíram 250 milhões de toneladas em todo o mundo no mesmo período.
A tendência de um consumismo digital não é sustentável por conta da energia e das matérias-primas necessárias para a produção e operação desses equipamentos.
A transição digital atualmente gera um aumento forte na pegada de carbono do setor de TIC, que inclui a energia necessária para a produção e o uso dos equipamentos (como servidores, redes e terminais), que vem crescendo rapidamente ao ritmo de 9% por ano.
A parcela de emissões de GEE correspondentes às tecnologias digitais aumentou pela metade desde 2013, passando de 2,5% para 3,7% das emissões globais. A demanda por matéria-prima, especialmente metais raros e críticos, para produção de equipamentos também vem crescendo.
O consumo digital atual é altamente desigual.
Em 2018, o consumidor norte-americano médio possuía 10 dispositivos conectados e consumia 140 gigabytes de dados mensalmente; já o indiano contava apenas com um dispositivo e dois gigabytes de dados – uma diferença de 70 vezes entre os dois mercados.
O consumo digital excessivo não é um fenômeno global: ele é causado por países de alta renda, que consomem mais dispositivos digitais e mais energia para sua operação.
O impacto ambiental da transição digital pode ser melhor administrável se o consumo for mais comedido.
Se mudarmos nossa relação com as tecnologias digitais, do consumo excessivo para um uso mais racional, podemos limitar o aumento de consumo de energia de TIC em 1,5% por ano. No entanto, o comedimento apenas previne uma situação mais grave: não é suficiente sozinho para reduzir os impactos ambientais da tecnologia digital.
“Nosso relatório traz evidências para as empresas de que sua transição digital não é automaticamente compatível com suas metas de mitigação da mudança do clima”, explica Hugues Ferreboeuf, diretor do grupo de trabalho responsável pela publicação do The Shift Project.
Para Françoise Berthoud, pesquisadora da Universidade de Grenoble e diretora do grupo EcoInfo do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), devemos nos libertar do mito de que um mundo totalmente digital poderia limitar o aquecimento global e nos conscientizar sobre os impactos ambientais dessas tecnologias “Neste relatório, descrevemos maneiras para limitar o esgotamento de recursos não renováveis, metais em particular, e limitar a enorme quantidade de energia desperdiçada pela digitalização de nossa sociedade”.
“Frequentemente, consideramos que, quando um determinado processo é digitalizado, ele foi ‘desmaterializado’. O problema é que, por trás de cada byte, temos mineração e processamento de metais, extração de petróleo, fabricação e transporte, obras públicas (como enterramento de cabos) e geração de energia com carvão e gás”, aponta Jean-Marc Jancovici, presidente do think tank.
“Por isso, a pegada de carbono do sistema digital global já representa 4% das emissões em todo o mundo e está aumentando no ritmo de 9% ao ano. Precisamos fazer o que for necessário para reverter esse cenário o quanto antes”.
O relatório está disponível na íntegra, acompanhado por um resumo executivo.