Antes de perder toda e qualquer esperança sobre o futuro, vale conhecer seu notável acervo e exposições temporárias
Há quem diga que “elogios adormecem, enquanto críticas ensinam”. Nem sempre é verdade, mas essa tirada é bem melhor do que a praxe da cultura brasileira de sempre considerar os elogios como positivos e as críticas como negativas. Na verdade, entre os melhores elogios estão as críticas razoáveis. Aliás, como formular boas críticas é imensamente mais trabalhoso do que disparar elogios, o melhor é desconfiar dos que preferem estes a aquelas.
O parágrafo acima seria até dispensável se o restante do texto não comportasse o risco de ser interpretado como depreciativo de uma das melhores coisas que existem neste país: o Museu do Amanhã, localizado no Rio de Janeiro. Afinal, de todos os ciclópicos problemas que condicionam o persistente subdesenvolvimento da sociedade brasileira, no topo está, com certeza, o analfabetismo científico que atinge uns 99% de sua população escolarizada (com ínfima margem de erro). Mesmo a grande maioria dos formados no Ensino Superior é portadora de similar deficiência, já que formada por professores universitários cuja cultura é assustadoramente pré e/ou anti-científica.
Exagero? Infelizmente não. Muito mais do que em outras sociedades de nações também emergentes, a brasileira jamais chegou a priorizar a educação científica, ao menos a partir do Ensino Médio.
Então, se o leitor acha excessiva a “avaliação” dos dois parágrafos acima, por favor, comece por dar mais atenção à formação em ciências naturais e humanidades que as melhores escolas oferecem às elites nacionais. Depois, compare com o conteúdo oferecido em High Schools ou Liceus dos EUA, Europa, Japão ou China. E nem faça o mesmo com os programas de graduação e pós-graduação, pois correrá sério risco de cometer suicídio.
Todavia, antes de chegar ao ponto de perder toda e qualquer esperança sobre o futuro dos que nascem e crescem por aqui, não deixe de dar ao menos um pulinho até o Rio para conferir, com calma, o Museu do Amanhã.
A excelência e abrangência desse museu científico – um dos melhores do mundo – recomenda visitas periódicas, ou mesmo verdadeiros “estágios”. Contato sistemático com seu notável acervo e com suas exposições temporárias, seria uma maneira de compensar a já enfatizada tragédia do ensino de ciências. Só que tal privilégio só é desfrutável, além dos cariocas ou fluminenses, pela ínfima minoria de ricos e remediados que pode ir ao Rio com alguma frequência.
A saída seria criar uma série de réplicas do Museu do Amanhã nas várias centenas de grandes cidades brasileiras. Claro, sem tentar imitar a suntuosidade da belíssima e funcional arquitetura de Santiago Calatrava, mas com o grosso do acervo, quase integralmente digital.
Parece que essa ideia até surgiu em passado recente, mas não vingou. E não será agora que tão promissor projeto possa vir a ser levado a sério pelo obscurantista executivo federal. O que não impede que a iniciativa seja assumida pelos governos estaduais, que certamente contariam com o apoio do Congresso Nacional.
Se o leitor tem alguma dúvida sobre a necessidade de se engajar numa campanha desse tipo, por favor, visite o site do museu. Se possível, também leia a brochura intitulada Proposta para a Construção de um Brasil Menos Desigual e Mais Sustentável para as Próximas Gerações.
Um dos 12 grandes temas dessa “Plataforma Brasil do Amanhã” é justamente o que realça o nexo entre Ciência, Inovação e Empreendedorismo. E no evento a ele dedicado há um ano (7 de maio de 2018), aflorou um decálogo que merece a máxima atenção dos professores do Ensino Médio e universitário.
Ao mesmo tempo, o cerne da narrativa curatorial da exposição permanente é um convite a se refletir sobre uma séria limitação teórica da própria comunidade científica brasileira: o conhecimento muito parcial e precário do que significou a revolução darwiniana. Algo que – se merecer a atenção dos leitores da Página22 – contribuirá para um bom começo de conversa.
O mais comum é que se associe a contribuição científica de Darwin apenas à sua obra prima de 1859, A Origem das Espécies (que, diga-se de passagem, ganhou primorosa nova tradução e apresentação do professor do Departamento de Filosofia da USP Pedro Paulo Pimenta, com lindas ilustrações de Alex Ceverny: Editora Ubu, 2018).
O problema é que Darwin preferiu não incluir nesse livro tudo o que já tinha descoberto, até 1859, sobre a espécie humana. Em vez disso preferiu, por diversas razões, consagrar a esse tema sua segunda grande obra – The descent of man, só publicada em 1871, e aqui batizada A Origem do Homem.
Sem combinar os conhecimentos expostos nessas duas grandes obras, é simplesmente impossível entender o materialismo darwiniano. E bastam três afirmações sintetizadas na conclusão da segunda para que se perceba a precariedade desse suposto “darwinismo” que só dá bola para a primeira, publicada 12 anos antes:
- No que diz respeito à natureza do homem, outros fatores superaram a luta pela existência, por mais que ela tenha sido importante e ainda o seja.
- As qualidades morais avançaram muito mais devido às consequências dos hábitos, dos poderes de raciocínio, da instrução, da religião etc., do que aos efeitos da seleção natural.
- Foram instintos sociais que proporcionaram o desenvolvimento moral.
Estas três afirmações são suficientes para constatar que – para Darwin – a parte não humana da natureza é absolutamente regida pela lei da seleção natural, mas sua parte humana só o é de forma relativa, pois o processo civilizador generaliza e institucionaliza condutas que se opõem à livre operação de tal lei.
Ou seja: a seleção natural seleciona a propensão civilizadora que, por sua vez, se opõe à seleção natural. Em vez de eliminação dos menos aptos, aparecem no processo civilizador deveres como os de assistência, socorro e reabilitação. Em vez da extinção natural de enfermo, doentes e portadores de deficiências, eles passam a ser protegidos e tratados, graças a avanços de saberes nos âmbitos da higiene e da medicina, com o objetivo de reduzir ou compensar déficits orgânicos. Em vez da aceitação das consequências destrutivas das hierarquias naturais decorrentes da força, do número e de outras aptidões vitais, surge um intervencionismo que se opõe à desqualificação social.
Em outras palavras: foi assim – sem salto nem ruptura – que a seleção natural selecionou seu contrário: um conjunto de normas e comportamentos anti-eliminatórios e, portanto, anti-seletivos, no sentido que o termo “seleção” foi usado na obra prima A Origem das Espécies. Para uma explicação didática dessa “reversão”, nada melhor do que se recorrer à imagem da fita (ou faixa) de Möbius.
Decorre desse entendimento da conjectura de Darwin a ideia de que o conhecimento científico deve deslindar os mistérios de quatro grandes processos evolucionários: os 4,5 bilhões de anos do planeta Terra; os 3,8 bilhões da vida; os milhões de anos de ascendência da natureza humana; e os poucos milênios do processo civilizador. Aliás, são eles que tenderão a organizar as duas novas ciências transdisciplinares: a do “Sistema Terra” e a “da Sustentabilidade”.
O que isso tudo teria a ver com o Museu do Amanhã? Muito, porque, lamentavelmente, organiza os saberes em apenas um tripé: matéria, vida e “pensamento”. Esse terceiro é uma estranha fusão da natureza humana com o processo civilizador, viés talvez explicado pelas idiossincrasias dos renomados consultores que mais influenciaram a chamada “opção museográfica”.
Mas o leitor deve ficar atento para não tomar essa crítica como algo negativo, que desaconselharia um mergulho na maravilha que é o Museu do Amanhã. Muito pelo contrário, além de tal crítica não diminuir qualquer de seus inúmeros méritos, refletir sobre ela poderá ser a melhor “tática” para se preparar e tirar mais proveito da visita à parte central da exposição permanente.
[Leia mais sobre Darwin e o processo civilizador aqui.]
*Professor sênior de sustentabilidade na USP (IEE), é autor de O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra (Ed. 34, 2019) e mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br