Empreendedorismo negro e de periferia promove cidadania ao unir os resultados financeiros à geração de benefícios para as suas comunidades
Por um longo período de tempo, empreendedores negros e de periferia iniciavam seus negócios majoritariamente por necessidade. Onde isso começa? Na libertação dos escravos há 130 anos, quando uma abolição inacabada não incluiu qualquer tipo de reparação social e apoio na transição para a sonhada liberdade.
Esse ponto de partida traz muitos desafios sociais e econômicos que continuam a impactar a comunidade negra e periférica no Brasil. A pesquisa A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo, estudo inédito encomendado ao Instituto Locomotiva pelo Instituto Feira Preta, com apoio do Itaú, revelou o perfil dos empreendedores negros no País: 29% dos que trabalham têm o seu próprio negócio, totalizando 14 milhões de empreendedores que movimentam, aproximadamente, R$ 359 bilhões em renda por ano.
No entanto, 82% dos empreendedores negros não têm CNPJ (frente a 60% dos empreendedores não negros) e 57% deles acreditam que pessoas negras sofrem preconceito quando tentam abrir seu próprio negócio no Brasil.
Esses indicadores trazem um retrato de escassez do ponto de vista de oportunidades para todos, mas também é preciso celebrar a abundância das transformações nos últimos 20 anos.
Em meados dos anos 1990, a pauta do empreendedorismo negro tornou-se relevante e começou a tomar forma, à medida que as lideranças negras apontaram o poder de consumo dessa imensa parte da população no Brasil, pouco atendida pelas empresas. Com isso, nasceu a discussão em torno de empreendedores da base da pirâmide que oferecessem produtos e serviços à população negra e de periferia.
Muita gente ainda acredita que as pessoas da periferia não têm poder aquisitivo para comprar determinados produtos. Mas, segundo pesquisa A Voz e a Vez, os negros do País já movimentam anualmente R$ 1,7 trilhão em renda própria. Quase 18 milhões de empreendedores das classes C, D e E movimentam mais de R$ 228 bilhões de consumo por ano. Cerca de 168 milhões de pessoas integram as camadas com faixas de renda mais baixas, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O maior fenômeno nesse contexto é que o público negro pesquisado em A Voz e a Vez, em sua maioria formado por jovens, não sonha mais com emprego público ou carteira assinada, mas em ter o próprio negócio e fazê-lo prosperar.
Os empreendedores negros e da periferia desafiam cotidianamente as barreiras da exclusão para inovar e crescer. Têm promovido a cidadania ao resolverem problemas de exclusão social e racial, ao unir os resultados financeiros à geração de benefícios para as suas comunidades e territórios carentes de serviços básicos, mas abundantes de oportunidades para novos negócios criativos e inovadores liderados pelo B2B: da base da pirâmide para a base.
Reinvenção pessoal
O empreendedorismo alavancou minha própria história de reinvenção. Cresci em um ambiente escasso de recursos financeiros, mas extremamente abundante na criatividade e no afeto. Venho de uma família liderada por mulheres negras, fui educada por um trio ancestral: bisavó, avó e mãe. O matriarcado define o que sou. Lembro ainda hoje das soluções inventivas de minha bisavó, que abria nossa despensa, pegava o que tinha disponível, cozinhava e colocava para vender. O legado dessa herança feminina foi um estilo de vida bastante empreendedor.
Aprendi a me virar vendendo peças de roupas usadas nas ruas de São Paulo e, com pouco mais de 20 anos de idade, criei a Plataforma Feira Preta. Trata-se de um negócio de impacto social que fortalece artistas e empreendedores negros por meio de um processo sistêmico que possibilita o match entre quem produz e quem consome, com serviços e produtos voltados para atender as especificidades da população negra.
A Feira Preta já mobilizou mais de 200 mil visitantes ao longo de suas 17 edições e mais de 300 empreendimentos passaram durante as imersões do Afrolab, um laboratório itinerante pra lá de criativo de pré-aceleração para afroempreendedores, que dá suporte em criação, produção, distribuição e consumo. Além de São Paulo, o programa já passou por Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Maceió, Recife e São Luís. E mais de R$ 5 milhões já foram movimentados entre os empreendedores e consumidores.
Assim como na minha trajetória e na de minha bisavó semianalfabeta, a história se repete, em renovados cenários, para driblar a escassez e criar estratégias de abundância – este, sim, o nosso real talento.
*Empreendedora e fundadora da Feira Preta. Foi considerada pelo Most Influential People of African Descent uma das 100 pessoas afrodescendentes (e com menos de 40 anos) mais influentes do planeta