É um equívoco tratar a privacidade como uma espécie de virtude burguesa das sociedades modernas e não como um direito democrático básico. Enquanto isso, as fronteiras entre o público e o privado estão sendo redefinidas não por uma discussão pública esclarecida, mas pela ação de empresas privadas
O acesso à internet é uma premissa decisiva para a interação social contemporânea. Esta é a razão pela qual o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável número 9 quer fazer chegar a banda larga aos quase 40% dos habitantes dos países menos avançados que dela estão ainda excluídos. Dezesseis por cento da população mundial não tem acesso à banda larga.
No entanto, se fossem publicados hoje (e não em 2015), os ODS certamente traçariam metas que não se limitariam a ampliar o alcance da internet. Inédita concentração de poder e de riqueza, vícios digitais, invasão sistemática da privacidade, influência sobre a vida dos consumidores e degradação do debate democrático são as principais consequências dos métodos com base nos quais as empresas que dominam hoje a Internet ampliam seu alcance. E na base destes métodos está a sistemática e generalizada invasão da privacidade. Este é o verdadeiro sentido do que se banalizou sob a expressão “economia de dados”.
É impressionante a rapidez e a profundidade da perda de legitimidade do punhado de empresas que dominam a economia de dados. Esta erosão está nas páginas dos mais importantes órgãos da imprensa global, em inúmeros artigos acadêmicos e livros, nas investigações de autoridades norte-americanas e europeias sobre o poder monopolista dos gigantes digitais e, mais recentemente, em um conjunto de propostas legislativas que, nos Estados Unidos, vêm sendo feitas, em caráter bi-partidário, em torno da maneira como os gigantes digitais usam os dados das pessoas. Outdoors pedindo a subdivisão do Facebook (Break-Up Facebook), por exemplo, já podem ser vistos nas ruas de grandes cidades norte-americanas.
O problema está nos incentivos perversos que o capitalismo digital cria para as empresas de mídias sociais e que Jack Balkin, professor de direito constitucional de Yale, chamou de “a grande barganha”, em seminário recentemente realizado pelo Aspen Institute e pelo MIT: em troca do acesso gratuito a inegáveis comodidades, as empresas são estimuladas a vigiar, viciar, manipular seus usuários e a compartilhar seus dados com outras empresas que vão aprofundar esta manipulação.
Os dados abrem caminho ao funcionamento de algoritmos que promovem o engajamento dos usuários e que estão na raiz dos vícios digitais contemporâneos. Estes vícios têm o condão de ampliar ainda mais a magnitude dos dados coletados e, assim, permitem o estabelecimento de perfis capazes não só de conhecer, mas, cada vez mais, de antecipar nossos comportamentos como consumidores e como cidadãos. É por isso que Alessandro Aquisti e seus colaboradores, no seminário do Aspen Institute e do MIT, não hesitam em afirmar: “Se é verdade que estamos na era da informação, então a privacidade é a questão central dos tempos que estamos vivendo”.
O caráter sistemático, pervasivo e massificado da coleta de dados não se limita apenas ao que fazemos em nossos celulares e computadores. A Internet das Coisas vai-se configurando como uma imensa rede de coleta de informações, assim como as TVs que respondem a comandos de voz e os robôs domésticos.
É um equívoco tratar a privacidade como uma espécie de virtude burguesa das sociedades modernas e não como um direito democrático básico.
O que está em jogo não é um luxo ou apenas (como se fosse pouco) o direito individual de não ser incomodado e invadido. Muito mais que isso, trata-se de um dos mais importantes valores do Iluminismo: nossa autodeterminação e nossa capacidade de fazer escolhas.
A privacidade refere-se não só a nossa segurança contra malfeitores, mas, antes de tudo, àquilo que os atores que controlam nossos dados pessoais fazem de nossa vida social. As fronteiras entre o público e o privado estão sendo redefinidas não por uma discussão pública esclarecida, mas pela ação de empresas privadas.
É inegável a contribuição da revolução digital ao desenvolvimento sustentável, que se trate de energias renováveis, da gestão de materiais, dos novos métodos industriais que ela permite, da melhoria das comunicações e de seus potenciais para uma interação social construtiva. Seu rumo atual entretanto está sofrendo, felizmente, imensa contestação social em virtude da lógica que a preside.
Humanizar a internet, colocá-la a serviço da melhoria das condições de vida sob o Antropoceno este é um objetivo que não pode esperar 2030, quando os ODS serão revistos, para ser implantado. Na grande imprensa global, nas melhores revistas científicas do mundo, nas atividades legislativas dos países democráticos e em diversos movimentos sociais o poder dos dadopólios contemporâneos está abalado. A defesa da privacidade vai-se convertendo, assim, em um dos mais importantes pilares do desenvolvimento sustentável.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de A Amazônia precisa de uma economia do conhecimento da natureza, a ser lançado em agosto próximo pelas Edições Terceira Via