Desastre de Mariana_ Foto: Léo Rodrigues/ Agência Brasil
O setor de mineração precisará articular-se para manter a sua licença social para operar, assim como fez o setor químico após grandes tragédias nas décadas de 80 e 90
Por Jacques Demajorovic* e Juliana Lopes**
As estruturas fragmentadas e altamente hierarquizadas das organizações acabam por intimidar e até desresponsabilizar os indivíduos de tomar decisões difíceis, mas necessárias para a resiliência dos negócios, da economia e da sociedade. Essa característica leva, em casos mais extremos, a grandes tragédias resultantes de omissões em série.
Isso explica em parte porque em um intervalo de menos de quatro anos, o Brasil testemunhou as duas maiores tragédias ambientais, sociais e econômicas na atividade de mineração. Primeiro com o rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco, que tinha como acionistas a Vale e a BHP Billiton, em 5 de novembro de 2015. Em janeiro de 2019, testemunhamos o rompimento de outra barragem da Vale em Brumadinho, também em Minas Gerais, evidenciando que pouco se absorveu em termos de aprendizados desde a primeira tragédia.
Diante da repetição de episódios assim, o setor de mineração precisará articular-se para manter a sua licença social para operar, ou seja, a legitimidade junto às diferentes partes interessadas para realizar suas atividades. Sem essa licença social, a atividade de mineração fica sujeita a interrupções frequentes e a custos cada vez maiores que podem simplesmente fazer com que o negócio se inviabilize.
Dois importantes desdobramentos recentes dos casos de Mariana e Brumadinho corroboram com essa avaliação. No caso de Mariana, o processo de reparações por danos materiais e morais, movido pelo escritório anglo-americano SPG Law em favor dos atingidos pelo rompimento da Barragem de Fundão, ingressou na corte da Inglaterra e do País de Gales. Conforme noticiado na imprensa, o montante de reparações pode ultrapassar os 5 bilhões de libras (mais de R$ 24 bilhões, na cotação atual) a serem pagos pela BHP Billiton SPL – braço inglês da BHP Billiton, a controladora da mineradora Samarco ao lado da Vale. Aderiram à ação 240 mil pessoas, mil empresas, 24 municípios, representantes de igrejas católicas e evangélicas e a comunidade indígena Krenak. Se não houver acordo, a expectativa é de que o processo seja julgado até 2020 na corte de Liverpool.
Já em Brumadinho, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para investigar as causas da tragédia apresentou no dia 12 de setembro de 2019 seu relatório final e pediu o indiciamento de 13 pessoas por homicídio e lesão corporal com dolo eventual, entre outros crimes. O documento, aprovado por unanimidade pelos sete integrantes da CPI, será entregue à Polícia Civil e ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), autoridades encarregadas das investigações criminais. Entre os 13 apontados pela CPI como responsáveis pela tragédia, 11 são dirigentes ou funcionários da Vale. Também foi pedido indiciamento de dois engenheiros da Tüv Süd, empresa que assinou o laudo de estabilidade de barragem.
O mundo segue sedento por minérios, tendência puxada, sobretudo, pelo aumento do consumo de eletroeletrônicos, especialmente na Ásia. Mas o simples argumento de crescimento econômico e geração de empregos já não se apresenta como contrapartida razoável frente aos altos riscos a que diferentes partes interessadas são submetidas pela atividade de mineração.
O setor precisará repactuar o seu contrato social para assegurar a perenidade dos seus negócios. Portanto, o momento é oportuno para a atividade de mineração se organizar com o intuito de construir protocolos para gestão de riscos, a exemplo do que aconteceu no setor químico na década de 90 após grandes tragédias como Bhopal, na Índia, em 1984. Esse episódio foi marcado pelo vazamento em uma indústria de pesticidas da Union Carbide, matando, oficialmente, mais de 3 mil pessoas e contaminando por décadas o entorno da fábrica.
Os impactos desta tragédia resultaram em maior controle e regulação do setor químico. Bhopal marcou também o nascimento de um movimento mundial da indústria química chamado Responsible Care ou Atuação Responsável no Brasil. Criado em 1984, pela Associação Canadense de Empresas Químicas, hoje se espalha por 53 países, com o objetivo de melhorar voluntariamente o desempenho ambiental, de saúde e segurança, além do diálogo com a comunidade.
Longe de resolver todos os problemas socioambientais da atuação do setor químico, o programa promoveu um grande avanço na gestão de indústrias químicas signatárias desta iniciativa no que se refere à melhoria de segurança e desempenho ambiental nos processos produtivos. Assim, um cenário parecido poderia ser seguido no setor de mineração. Não por coincidência, 20 anos depois do lançamento do Responsible Care no Canadá, a Associação de Mineradoras Canadenses lançou em 2004, o Towards Sustainable Mining, um conjunto de ferramentas e indicadores, auditados por terceira parte, visando assegurar a gestão efetiva de riscos em atividades minerais.
Uma articulação setorial desse tipo, mas em âmbito mundial, ajudaria empresas de mineração a superar as armadilhas do pensamento de curto-prazo, tendo em vista que os principais players do setor são empresas de capital aberto e que, portanto, prestam contas de seu desempenho financeiro trimestralmente. Com a cabeça imersa em planilhas e telas de computador por onde passam transações bilionárias, executivos, conselheiros e investidores se desconectam da realidade sem se dar conta muitas vezes em como elas afetam a vida de milhares de pessoas e podem comprometer a perenidade do próprio negócio.
Naturalmente, não se pode apostar todas as fichas nas iniciativas voluntárias das empresas. A experiência internacional mostra, como no caso do Responsible Care, que quanto mais avançada e rígida a legislação ambiental e a capacidade de punição por parte do Estado de empresas e seus gestores, maior será o aprendizado e alcance das incitavas voluntárias de empresas nas áreas de segurança e meio ambiente.
Hoje, quem ousa subverter a lógica do curto-prazo acaba penalizado. Mas por pior que seja a mensagem, matar o mensageiro nunca é a solução. Os questionamentos dos conselheiros, colaboradores, comunidades, investidores e demais stakeholders precisam ser acolhidos, pois esse rol ampliado de visões contribui com a gestão de riscos e oportunidades, proporcionando maior resiliência ao negócio. Isso nada mais é do que boa gestão e deveria ser o foco do setor de mineração a partir de um amplo debate com a sociedade sobre as tragédias que protagonizou e assim tirar aprendizados para evitar que se repitam, bem como construir uma visão sobre a mineração que se quer para o futuro e como chegar lá.
*Jacques Demajorovic, professor-doutor do programa de pós-graduação em administração do Centro Universitário FEI e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Licença Social para Operar.
**Juliana Lopes, fundadora da PulsarCom, mestre em administração de empresas pelo Centro Universitário FEI e membro do Grupo de Pesquisa em Licença Social para Operar.