Viabilizado por meio de parceria entre governo e iniciativa privada, o Centro de Engajamento Noronha Plástico Zero pretende envolver moradores e turistas, com o objetivo de eliminar o uso de plástico descartável na ilha
Por Mônica C. Ribeiro, de Fernando de Noronha*
Fotos: Divulgação
A ilha de Fernando de Noronha, com aproximadamente 3.500 habitantes e destino turístico que mobiliza milhares de pessoas por ano, tem vários desafios para atender sua população e os visitantes, seja em abastecimento, seja em logística, seja em gerenciamento de resíduos sólidos. Conhecida como Esmeralda do Atlântico por sua beleza e riqueza natural, onde se localiza um Parque Nacional marinho e uma área de proteção ambiental, a ilha se vê às voltas com os desafios e problemas gerados pelo consumo e descarte de resíduos – como todos os lugares onde há presença humana.
Por mês, são recolhidas em média 220 toneladas de lixo na ilha. Mas esse número pode ser ainda maior em meses em que a quantidade de visitantes aumenta, como na época do Natal e do Ano Novo. O plástico e o vidro são matérias primas muito presentes na usina de resíduos sólidos de Noronha, para onde seguem todos os orgânicos e recicláveis gerados na ilha. Os orgânicos são compostados e parte deles segue, junto com o material reciclável, para o continente. O vidro é moído e transformado em areia para a construção civil.
O transporte do material até Recife custa em torno de R$ 2 mil a tonelada. Cerca de 40% do que é arrecadado com a Taxa de Proteção Ambiental (TPA), paga pelos turistas por dia de permanência na ilha, é destinado para limpeza urbana e para o gerenciamento dos resíduos.
Em dezembro de 2018, o Governo Distrital de Noronha publicou o Decreto nº 002/2018, conhecido como plástico zero, que entrou em vigor em abril de 2019. A medida impede o uso e comercialização de recipientes, embalagens e demais utensílios de plástico descartável, tais como canudos, talheres, sacolas, garrafas plásticas de menos de 500 ml, além de isopor e objetos compostos por polietilenos, polipropilenos ou similares.
Quem descumprir a regra – moradores, estabelecimentos comerciais ou turistas –, é autuado e está sujeito a multa. A penalidade é de meio salário mínimo no caso de moradores e visitantes, três salários para estabelecimentos e comerciantes dos descartáveis e cinco salários para pessoas físicas ou jurídicas que adquirirem os itens proibidos por lei.
Os 120 dias decorridos entre a publicação e a entrada em vigor do decreto visaram proporcionar tempo para que os estabelecimentos se adequassem. De acordo com o administrador de Fernando de Noronha, Guilherme Rocha, o diálogo com os comerciantes e moradores da ilha desde a publicação do decreto e a fiscalização têm proporcionado a diminuição dos resíduos de plástico descartável mês a mês.
Mas só a fiscalização não é suficiente para promover mudanças de atitude mais perenes. Dando continuidade ao processo de implementação do projeto foi inaugurado, em 12 de novembro, o Centro de Engajamento Noronha Plástico Zero, espaço constituído em parceria entre a Administração da ilha e as empresas Menos 1 Lixo, Iônica e Grupo Heineken Brasil, cujo objetivo é gerar reflexões sobre descarte consciente e sustentabilidade e promover o engajamento da população.
Com projeto e curadoria da arquiteta e artista visual Magui Kampf, o espaço é constituído por uma exposição externa em painéis rotatórios, auto-explicativos, que abordam a problemática do plástico no mundo e na ilha, apontando a necessidade de endereçar as questões e a importância da participação de cada pessoa no processo. Possui também um espaço maker, onde podem ser realizadas oficinas e outras atividades ‘mão na massa’, além de uma concha em formato de domo geodésico, onde serão realizadas atividades diversificadas propostas pela população, como debates, cinema e apresentações culturais.
Uma sala denominada “Origem”, espaço de conexão com a história da ilha e do visitante consigo mesmo e que tem a ambiência de um útero, proporciona uma experiência de imersão, com exibição de um vídeo-poesia que aborda os diversos momentos de Noronha, desde o surgimento a partir da energia vulcânica até a interação humana ao longo do tempo. É também uma metáfora sobre a situação da vida no planeta e a responsabilidade de cuidar dela.
“Precisávamos de um espaço expositivo e de um espaço ativo, que proporcionasse constante renovação. A gente queria contar uma história que se perpetuasse. O fundamental, desde o início, é que esse espaço seria criado para a comunidade e pela comunidade”, avalia Magui. “Precisamos falar sobre arte, sobre cultura, que é como a gente sensibiliza. Nesses momentos em que vivemos com tanta agressão e censura, fazer um projeto cultural e artístico como esse é uma iniciativa de resistência, de persistência e de luta. ”
Guardiões da ilha
Na parede lateral do Centro é avistado um grande painel com cinco fotos de moradores da ilha, denominados guardiões. Trata-se de uma homenagem a pessoas, ainda vivas, que têm cuidado de Noronha ao longo do tempo. Cada um deles se destaca em ações de valorização e cuidado com a ilha em seus aspectos socioambientais. E foram escolhidos em consulta à comunidade noronhense.
Eunice Maria de Oliveira, a Dona Nice, 75 anos, é uma das guardiãs avistadas de longe na parede do Centro. Conselheira Distrital de Fernando de Noronha de 1996 a fevereiro deste ano, ela avalia que o processo de lida com os resíduos sólidos na ilha se encontra hoje em seu melhor momento, e que a informação e a educação são fundamentais nesse processo. “O turismo é a mola da ilha, isso aqui sem turismo é um museu fechado. E as políticas públicas estão na direção de melhorar essa relação do turista com a ilha. Noronha precisa do turismo, mas também do cuidado com o meio ambiente. Percebo que os jovens e os mais velhos aqui estão bem conscientizados. As pessoas acham que o governo tem obrigação de fornecer tudo, mas não é por aí. O governo é mais um ator, que está aqui para administrar. Nós temos que participar, construir com ele.”
Outro guardião da ilha é Marco Aurélio da Silva, 54 anos, educador ambiental do ICMBio, para quem o decreto sobre plástico zero coroa um trabalho iniciado há muito tempo: “Esse projeto [Noronha Plástico Zero] tem demonstrado uma atenção muito especial ao que já vínhamos desenvolvendo dentro da nossa comunidade. Estamos dando continuidade, tentando sensibilizar e convencer outras pessoas a participarem do processo. O visitante que chega em Fernando de Noronha é cobrado em postura, conduta, respeito às normas ambientais, recolhimento de taxa. São pessoas que, a partir do momento em que a gente sensibiliza e orienta, passam a ser colaboradores. Isso é muito positivo.”
Quatro “Rs”
A fim de auxiliar o cumprimento do decreto, ações de educação ambiental e comunicação conferem um caráter de movimento ao projeto – por isso o nome Noronha Plástico Zero. A iniciativa é também um convite à ação da sociedade, considerando, principalmente, quatro Rs da sustentabilidade: repensar, regenerar, reutilizar e ressignificar.
O Centro de Engajamento é o repensar, concentrando atividades que visam oferecer aos visitantes experiências imersivas, articulação e participação. Agentes de Transformação locais se conectam com o regenerar. A formação desses agentes, moradores locais, busca promover o engajamento da população em cursos e atividades dentro e fora do Centro. Serão responsáveis pela comunicação direta com a população, apoiando eventos e atividades e mapeando necessidades locais e interesses da comunidade por meio de abordagem direta e escuta ativa.
“Os agentes têm como importante papel a humanização do projeto. Sem eles, o elo entre o Centro de Engajamento e a comunidade não seria possível. Por isso, acreditamos que sua presença é o que garantirá que todo o conhecimento produzido e compartilhado seja absorvido pela comunidade e perpetuado dentro e fora da ilha”, comenta Wagner Andrade, diretor de inovação da Menos 1 Lixo.
Um kit composto por uma ecobag produzida a partir do reaproveitamento de lonas, um copo plástico reutilizável e um canudo de inox se conecta ao reutilizar. Foram produzidos seis mil desses kits, a serem utilizados nas ações de engajamento e no contato direto com os habitantes da ilha.
O quarto erre, ressignificar, liga-se com a transformação do vidro em areia para a construção civil na ilha, processo que já era realizado e que ganha agora mais agilidade e ampliação da capacidade técnica com novo maquinário e dinâmicas. Também foram distribuídos pelas ruas Postos de Entrega Voluntária (PEVs) para a população descartar as garrafas.
“Temos de mudar nossa forma de pensar, para construir uma nova economia, novos materiais, para fazer a gestão de resíduos. Entender a responsabilidade de nossos atos e a força que temos para mudar as coisas. Todos os turistas que vem para a ilha tem contato com os moradores. Imagine o poder que esses moradores têm na mão para influenciar essas pessoas e elas saírem daqui tocadas, com o coração modificado, levando esse exemplo para suas cidades e quem sabe atuar para implementar políticas semelhantes”, afirma Fê Cortez, da Menos 1 Lixo.
Inovação
A elaboração do programa Noronha Plástico Zero veio a partir de um processo de cocriação entre a Administração da ilha, Menos 1 Lixo, Iônica e Grupo Heineken, que com o envolvimento da população idealizaram a estrutura e o movimento. “É um desafio empreender em rede, com organizações com aspectos culturais e legislação tão diferentes. Unir o poder público, empresas e a sociedade civil é o único caminho possível. É muito importante que a gente tenha capacidade de construir uma nova economia que seja justa, inclusiva e sustentável. E esse tipo de projeto é um exemplo vivo de que de fato nós podemos dialogar, seguir juntos e convergir os interesses para construir o mundo que a gente quer”, avalia João Bernardo Casali, da Iônica.
O Administrador da ilha, Guilherme Rocha, lembra que, a partir da criação do decreto, as empresas Menos 1 Lixo e Iônica foram acionadas para ajudar na elaboração de um plano de ação que também engajasse a comunidade e os turistas, prevendo peças publicitárias, campanhas educativas, infraestrutura e contratação de pessoal. Na ponta do lápis, isso representaria gastos com os quais a administração não poderia arcar. A aproximação com o Grupo Heineken possibilitou o patrocínio e a implementação das ações.
“Houve uma certa dificuldade burocrática, porque inovação junto ao poder público traz desafios jurídicos. Mas estudamos a legislação e conseguimos. Fizemos um chamamento público para detectar outras empresas que poderiam se interessar em estar conosco no projeto, mas não apareceu nenhuma, e então a Heineken entrou com 100% do apoio, ” diz Guilherme. O investimento no projeto foi de R$ 1,5 milhão.
Ornella Vilardo, gerente de sustentabilidade do Grupo Heineken no Brasil, aponta que a cervejaria tem compromissos muito fortes com a economia brasileira, mas também compromissos ainda mais fortes em relação à sociedade brasileira: “A gente entende que o chamado é maior. E Noronha representa um pouco disso. A Heineken tem seis pilares de negócio, entre eles o “crescendo com comunidades“. Queremos fortalecer a comunidade onde a gente atua. Outro pilar é o de zelar pela sustentabilidade da cadeia, desde a produção até o destino final das nossas embalagens. Então faz todo sentido estarmos aqui em Noronha, em um projeto que fala de plástico, de resíduos e de ressignificar tudo isso. Mudanças reais de comportamento positivo na sociedade se dão por uma base de conhecimento e educação”.
O plástico é o começo
Ainda segundo o administrador da ilha, o plástico descartável foi escolhido como ponto de partida, mas a intenção é tornar Noronha exemplo para o mundo em termos de gestão de resíduos.
Garrafas plásticas com capacidade para 500 ml ou mais estão liberadas na ilha. O armazenamento e comercialização de líquidos em maior quantidade são um desafio: “Uma ideia é trabalhar com alternativas de alumínio, por exemplo, na substituição de recipientes plásticos com mais de 500 ml, ainda permitidos. O alumínio seria uma maneira mais sustentável para isso, e a lata, depois de descartada, já está de volta à prateleira em 45 dias. Mas ainda é uma coisa que estamos estudando. Para casos de recipientes plásticos de mais de 1 litro ainda não temos alternativas plausíveis para substituição”, diz Rocha.
A transformação do vidro, cujo circuito já é fechado na própria ilha, ganha potência com novo maquinário, que amplia a capacidade de produção de areia. O moinho antigo, de alimentação manual, dava conta de transformar 30% das garrafas, e o restante era levado ao continente. Com o upgrade no processo, as novas máquinas deverão dar conta da totalidade. A areia é cedida à população noronhense para a construção civil.
Bruno Temer, da MateriaBrasil, parceiro na implementação da melhoria do maquinário, avalia que a transformação de 100% do vidro em areia, sem necessidade de envio ao continente, representa ganho ambiental e economia de recursos. O moinho que funciona desde 2014 na usina de resíduos de Noronha e que faz a transformação do vidro tem capacidade para produzir 700 kg por hora, mas produz uma tonelada e meia por dia, porque sua alimentação é manual. O novo maquinário, em fase final de instalação, promove a automação de parte do processo, instala esteiras e moderniza o ciclo, com capacidade total de produção de oito toneladas de areia por hora. O antigo moinho manual terá novo uso: a fabricação de brita, também para a construção civil.
Outra novidade trazida pelo processo é uma ensacadeira, que terá tanto capacidade para encher bags de uma tonelada – modo de estocagem da areia que vigorava com o maquinário anterior – como sacos de 25 kg, que lembram muito sacos de cimento, só que são 100% biodegradáveis. Construir em Noronha é processo delicado, que demanda muitas avaliações ambientais. E a cessão da areia só acontece em caso de apresentação de todas as autorizações. Muitas vezes o noronhense precisa de areia apenas para pequenos reparos – que também demandam autorização. A otimização das embalagens facilita também o transporte do material nesses casos.
“As ações que estão sendo implementadas para gerenciar o plástico e o vidro são simultâneas. No caso do vidro, conseguimos fechar o ciclo na própria ilha. E no caso do plástico, trabalhamos com conscientização para reduzir o consumo. O maior desafio é pensar na hora de consumir. Pensar no resíduo que o consumo vai gerar e na destinação final dele”, diz Bruno Temer.
*A jornalista viajou a convite do Grupo Heineken Brasil