Dizer que choveu mais que a série histórica, como prefeitos vêm fazendo, não é surpresa ou desculpa para a inação diante das tragédias. Estamos frente a um novo paradigma a ser enfrentado pela humanidade, onde as áreas de risco foram ampliadas e passaram a ser exponencialmente inseguras
Por Carlos Bocuhy*
[Foto: Rodrigo Clemente/ Fotos Públicas]
No início deste ano dezenas de pessoas perderam suas vidas no Espírito Santo e em Minas Gerais. As chuvas, que ainda devem continuar em fevereiro, trouxeram à população e aos cofres públicos prejuízos milionários, que exigirão sacrifícios econômicos para a reconstrução de habitações, sistemas viários e infraestrutura em geral.
Era um fato inesperado? Talvez na intensidade, mas não na probabilidade.
Pesquisa da Universidade da Califórnia, com base no Earth System Research Laboratory, Colorado, EUA, aponta para a “intensificação de eventos extremos, com precipitações concentradas e tempestades mais frequentes no Sudeste brasileiro”. O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas afirma que “deverão ocorrer intensificações dos eventos severos, ocasionando impactos em cidades e áreas vulneráveis às mudanças climáticas” (PBMC, 2013b). Tese de doutorado apresentada em 2018 na Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de pesquisa de modelagem hidrológica, apontava “risco de aumento, até o ano de 2040, de 48% do volume nas chuvas subsidiárias”.
Ainda segundo o Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC), “as alterações climáticas terão impactos profundos sobre o amplo espectro das funções, infraestruturas, serviços e edificações urbanas” (IPCC, 2014a).
Isso faz pairar sobre a cabeça de todos os cidadãos uma dura realidade: estamos vulneráveis. Se sua casa for segura, assim mesmo você poderá ser apanhado nas armadilhas do tráfego, o que ocorre com frequência em São Paulo, quase em situação de normalidade durante as chuvas de verão. E se as chuvas que desabaram sobre Belo Horizonte tivessem ocorrido também na cidade de São Paulo?
Kerstin Klellenberg, renomada cientista do Departamento de Urbanismo e Sociologia Ambiental do Helmholtz Centre, de Leipzig, afirma: “O conceito de vulnerabilidade refere-se às condições sociais, ambientais, econômicas e institucionais que determinam se uma sociedade tem a capacidade de evitar danos ou se está condenada a sofrer as consequências” (Krellenberg et al., 2014).
Uma vez condenados à adaptação neste cenário, é imperativo impedir o agravamento das alterações climáticas contendo as emissões de gases efeito estufa – e pleitear a imediata moratória do desmatamento da Amazônia, o grande elemento de regulação hídrica continental. É preciso mudar o comportamento dos governos e da economia. O jornal britânico The Guardian nos dá um magnífico exemplo: deixou de aceitar anúncios de empresas de combustíveis fósseis, rompendo com o business as usual.
Uma das características da mudança climática nas regiões Sul e Sudeste é que a série histórica de pluviometria não representa mais um referencial seguro. Isso já foi dito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 2014, por ocasião da elaboração das previsões climáticas para a metrópole de São Paulo.
Nos dias de hoje, dizer que choveu mais que a série histórica, como prefeitos vêm fazendo, não é surpresa ou desculpa para a inação diante das tragédias. Estamos frente a um novo paradigma a ser enfrentado pela humanidade, onde as áreas de risco foram ampliadas e passaram a ser exponencialmente inseguras.
A humanidade terá que repensar os assentamentos humanos e a ocupação do território, o que inclui ações efetivas e o mapeamento da nova amplitude para as áreas de risco. Há responsabilidades governamentais a considerar. Em 2019 a área federal dedicou-se a negar a vulnerabilidade climática. Despreparado e sem atender linhas prioritárias de atuação, o Ministério do Meio Ambiente deveria, por dever de ofício, trabalhar firmemente nesta agenda, assim como os governos estaduais e municipais.
No Governo Federal a verba para ações de prevenção de desastres naturais em 2019 era de R$ 306,2 milhões, valor bastante inferior ao patamar de anos anteriores. Em 2012, o montante equivalia a R$ 4,2 bilhões em valores corrigidos pela inflação. Do total reservado para 2019, só R$ 99 milhões foram liquidados (quando há execução do serviço contratado). Trata-se de um erro grave no planejamento e na priorização das ações para evitar tragédias.
Estamos falando de vidas humanas e de uma inércia governamental – da falta de informação à sociedade que alimenta uma falsa segurança. Como em uma armadilha, a sociedade deixa de se defender dos riscos iminentes. Tenho dito sempre que a falsa segurança é muito pior do que nenhuma segurança, pois na falta desta a sociedade passa a reivindicar e a se defender.
Neste cenário, a vulnerabilidade da população é evidente, e vem piorando. A concentração populacional continua a ocupar o território nas cidades e metrópoles com urbanização desregrada, acelerada, desordenada, movida à especulação, com edificações sem critérios técnicos em áreas de risco, em fundos de vale — e encostas com mais de 70 graus de declividade. Os planos diretores, a fiscalização e os sistemas de drenagem são ineficientes.
Já em 2010, o Inpe afirmava: “O defasado sistema de drenagem frente ao crescimento acelerado das cidades configura-se ainda como causa principal das enchentes, em especial na região central do município de São Paulo”.
Estratégias de adaptação se fazem necessárias para promover a resiliência das populações afetadas, prevenir danos e proteger sua integridade física. As iniciativas não partirão espontaneamente do governo federal, de verve negacionista, nem de outras esferas estaduais populistas e preocupadas com a próxima eleição.
A responsabilidade recairá sobre a própria sociedade, que deve reivindicar as políticas públicas necessárias para a adequação às mudanças climáticas. Recai também sobre os organismos fiscalizadores dos princípios que regem a administração pública e que devem zelar pela proteção da vida dos brasileiros, como os ministérios públicos estaduais e federais, as defensorias públicas, os tribunais de contas dos estados e a Controladoria-Geral da União.
Geralmente os governos tendem a dizer que está tudo bem, para manter uma aparente governabilidade. No dito popular, o pior cego é o que não quer ver, mas governos não podem continuar a simular meias medidas e surpresa diante dessas tragédias anunciadas.
A séria histórica da pluviometria já não socorre mais projetos irresponsáveis. São novos tempos que só serão superados com decisões de alto nível, com capacidade técnica, com a eficácia de diagnósticos preventivos, planejamento e políticas públicas que envolvam a sociedade por meio da comunicação, clara e eficiente, sobre os riscos envolvidos.
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)