Foto: Cátia Toffoletto/ Flickr Creative Commons
Mais e mais pessoas estão encarando o “novo normal” na dimensão em que ele é incontestável: no corpo. Vivenciar um fenômeno extremo, de corpo presente, não é algo que se apague tão facilmente da memória. Fica impregnado no frio na barriga de quem está em perigo e na barriga vazia de quem fica ilhado. Além da experiência da perda, que no ser humano sempre se traduz corporalmente
Por Ricardo Barretto*
Para além dos impactos enormes, com tons de tragédia, as chuvas deste início de 2020 sinalizam mudanças importantes na relação cotidiana que estabelecemos com a mudança climática.
A primeira delas é que a cobertura da mídia sobre o fenômeno saiu da cartilha da previsão do tempo e intempéries do cotidiano para uma espécie de editoria da mudança do clima. No texto, em vídeo, nas entrevistas e podcasts que se multiplicam sobre o tema, está muito mais clara a mensagem de que testemunhamos a ocorrência de fenômenos extremos, de caráter imprevisível mas esperado num contexto de clima desregulado.
A mídia, em geral, afastou-se do tom descontextualizado da cobertura que só renovava a cada ano as cenas de desastres, os questionamentos ao poder público e a lista de impactos dos temporais e enchentes. Justificativas de autoridades dizendo “o problema é que o volume de chuva foi muito maior do que o normal” parecem não ser mais aceitas de bom grado. Há agora uma indagação recorrente: “Este é o novo normal, como vamos dar uma resposta à altura?”
Essa mudança, há muito esperada, na perspectiva da grande imprensa sobre a questão climática vem, possivelmente, como desdobramento de 2019, ano em que a Austrália, Califórnia, Sibéria, Davos e Greta oficializaram a emergência climática como tema do cotidiano planetário. Isto significa que, a partir de agora, as informações nas telas começam a confluir para um mesmo foco. E tornam-se intragáveis os argumentos negacionistas ou relativistas sobre as mudanças do clima.
Outro elemento fundamental, infelizmente, para esse ganho de consciência global sobre o problema é que mais e mais pessoas estão encarando o “novo normal” na dimensão em que ele é incontestável: no corpo. Assistir a cenas de dilúvio pelo cristal líquido das telas é algo impactante, decerto. Mas em seguida aparece um vídeo de bicho, uma fofoca de celebridade, uma mensagem de um amigo, um meme, um sticker, um giphy. E a urgência vai se camuflando na constância do digital.
Já vivenciar um fenômeno extremo, de corpo presente, não é algo que se apague tão fácil da memória. Fica impregnado na sensação da pele molhada, no som insistente da água, no machucado que surge em meio à confusão, no músculo cansado de andar em fuga, no sono perturbado, no frio na barriga de quem está em perigo e na barriga vazia de quem fica ilhado. Além da experiência da perda, que no ser humano sempre se traduz corporalmente.
Como mamíferos, cultivamos o fenômeno involuntário da epimelese, um sentido de apego com as coisas que vem de uma projeção do cuidado que temos com as crias, algo próprio de espécies que amamentam e que cuidam da prole no contato próximo ao corpo. Isso dá outras camadas sensoriais às perdas materiais, que já são um transtorno quando arrasam com o esforço para conquistar a casa, o móvel, o carro, as roupas, o gadget. A perda de bens, para o ser humano, aniquila também referências de presença e pertencimento do corpo no mundo.
E quando as perdas se ampliam para a vida de parentes e amigos, aí a sensação é de faltar mesmo um pedaço de si.
A esperança que fica de tudo isso é que corpos e mídias mantenham esses registros tão presentes que lembrem de questionar os ocupantes e candidatos a cargos públicos o que pensam e o que farão para adaptar cidades, comunidades, toda uma nação ao novo normal que atravessa cada vez mais o cotidiano de todos nós.
Precisamos saber, dos formuladores e executores das políticas públicas, como estão se movendo para essa nova realidade. Quais planos serão apresentados e implementados? Entendem que só falar de piscinão e de verbas de emergência já não basta mais? E quanto às escolas que formam os futuros gestores públicos, estão atentas para a complexidade com a qual têm de dialogar seus formados? E os pais e educadores, estão cientes de que precisam garantir para si e seus filhos conhecimento novo para lidar com o planeta alterado?
Negligenciar o efeito da mudança climáticas nas nossas vidas é ampliar os riscos a que estão submetidos nossos corpos, nossas relações, nossos bens, nossas cidades, nossa economia. No capítulo em que estamos, estar desavisado é quase tão nocivo quanto ser um negacionista. Se vamos escrever um final viável para essa história com contornos de distopia, estes são dois grupos que devem cada vez mais estar afastados da esfera pública, seja ela a midiática, seja a do poder político. Afinal, o futuro já chegou e ele é caótico e frenético. Adaptar-se demanda conhecimento, respiro e ação conjunta.
*Comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)