O potencial agrícola e as condições climáticas podem fazer do Brasil um grande exportador de cânhamo, planta capaz de trazer benefícios para o meio ambiente, a saúde e para vários setores da economia. Enquanto o cultivo é realizado em quase todas as partes do mundo, a oportunidade é desperdiçada no Brasil porque ainda falta uma nova legislação
Imagine um país de dimensões continentais, com disponibilidade de terras agricultáveis e incidência de sol o ano inteiro, além de um belo histórico de desenvolvimento de soluções e tecnologias voltadas à produção agrícola. Com isso, temos logo de partida um lugar com condições extremamente privilegiadas. O que aconteceria se todo o potencial desse conjunto naturalmente favorável pudesse ser transformado em alívio para milhares de pacientes que precisam lidar com epilepsias de difícil controle e outras enfermidades? E se os horizontes fossem muito mais amplos, com possibilidade de criação de um novo setor na economia e o surgimento de novos mercados de trabalho, com geração de emprego e renda, bem como desenvolvimento para várias regiões?
Esse bem poderia ser o sonho de qualquer nação. E poderia ser também realidade no Brasil neste momento, a partir da produção e exploração do cânhamo. Porém, estamos deixando essa chance inigualável literalmente marginalizada.
Atualmente, há uma grande discussão no Brasil sobre o uso da cannabis (a maconha) e das substâncias extraídas dessa planta. Os debates envolvem as muitas variedades de cannabis com índice de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, ou seja, que não possuem qualquer efeito psicoativo.
O canabidiol (CBD), extraído dessas variedades, também conhecidas como cânhamo (hemp), teve a popularidade aumentada graças aos relatos de pacientes de diversos países que usam extratos de cannabis com altas concentrações dessa substância para o tratamento de epilepsias de difícil controle. Os resultados clínicos são comprovados por estudos científicos, abrangendo doenças como esclerose múltipla, mal de Parkinson e esquizofrenia, entre outras.
Um bom parâmetro vem de um estudo da New Frontier Data, autoridade global da indústria de cannabis em relatórios de inteligência de negócios e análise de dados, em parceria com a The Green Hub, aceleradora de startups e uma das primeiras plataformas de pesquisa e informação de cannabis no Brasil. Esse levantamento apresenta estimativas de que somente o mercado de CBD derivado do cânhamo triplicará nos Estados Unidos, passando de US$ 390 milhões, em 2018, para US$ 1,3 bilhão, em 2022.
No entanto, o benefício do cânhamo não se restringe apenas a medicamentos. A planta também é usada na produção de uma grande variedade de produtos, incluindo papel, tecido, alimentos, combustível, plástico e cremes dermatológicos. Há possibilidade de utilização, até mesmo, na construção civil. As fibras da planta do cânhamo, junto com calcário em pó e água, criam um concreto que oferece uma alternativa mais sustentável, podendo ser usado para isolamento e como drywall, entre outras formas de aplicação.
Além disso, na indústria têxtil, o cânhamo pode ser uma ótima opção para substituição do algodão. Do ponto de vista ambiental, esta seria uma das mudanças mais importantes. A transformação do algodão em roupa gera alto impacto para a natureza, pois é o cultivo com maior demanda por agrotóxicos. Em torno de 24% de todos os inseticidas e 11% de todos os pesticidas são utilizados na produção do algodão. Para se fabricar uma camiseta, por exemplo, são consumidos mais de 2,7 mil litros de água. Também é preciso levar em conta que a cultura do cânhamo produz muito mais por área plantada do que, por exemplo, a do algodão e do eucalipto, que também tem suas fibras empregadas na confecção de vestuário.
A indústria da moda já abraça o cânhamo como matéria-prima bem mais sustentável e, ainda, cinco vezes mais resistente que o algodão. Ademais, sem toda a carga de agrotóxicos e com menor impacto nos recursos hídricos. Com isso, ganhamos roupas mais resistentes, duráveis e ecologicamente corretas.
Outro benefício é que o cânhamo pode se tornar o melhor superalimento do mundo. Suas sementes fornecem até 75% mais proteína do que uma quantidade semelhante de sementes de linho ou chia e, ainda, contêm todos os 20 aminoácidos conhecidos, sendo nove deles essenciais para o funcionamento do organismo humano. Essas sementes são preenchidas com ácidos graxos saudáveis, incluindo ômega-3 e ômega-6. Também são ricas em fibras, ferro, fósforo, potássio, cálcio, zinco, vitamina E e magnésio – basicamente tudo que uma pessoa precisa para uma refeição ou lanche nutritivo.
Quer mais? Um crescente corpo de evidências também sugere que as raízes do cânhamo podem remover toxinas do solo e da água, melhor do que praticamente qualquer outra planta.
Por conta dessa polivalência, o cânhamo é cultivado hoje em quase todas as partes do mundo. Atualmente, a China é líder na produção do cânhamo, seguido pela França. Entretanto, mais de trinta países produzem o cânhamo industrial. Entre eles, estão Alemanha, Austrália, Áustria, Canadá, Chile, Coreia do Sul, Dinamarca, Egito, Eslovênia, Espanha, Finlândia, Holanda, Hungria, Índia, Itália, Japão, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Romênia, Rússia, Suécia, Suíça, Tailândia, Turquia e Ucrânia.
Nos Estados Unidos, a produção de cânhamo é feita em 10,2 mil hectares, distribuídos em 19 Estados. No total, 70% da produção são destinadas ao CBD, com 20% direcionadas ao setor de sementes e os 10% restantes vão para a fabricação de fibra.
O cânhamo representa novos horizontes para muitos setores da economia. As oportunidades são imensas, mas o Brasil somente conseguirá prosperar a partir desta vertente se estabelecer uma cultura industrial que possa crescer livremente. O enorme potencial agrícola e as condições climáticas favoráveis para o cultivo podem tornar o País um grande exportador da planta.
Contudo, falta uma regulamentação que separe a maconha psicoativa daquela com baixo teor de THC, que pode servir a uma série de usos industriais. O debate, no momento, gira em torno disso. Com as melhores terras, o Brasil poderia oferecer o artigo pelo menor preço. Entretanto, para que a situação mude, dependemos de uma nova legislação. E acredito que estamos caminhando para isso.
Uma boa notícia foi divulgada recentemente. Em Holambra (SP), uma empresa obteve autorização para cultivar e vender produtos à base de cannabis sem efeitos alucinógenos. Esse empreendimento tem como meta comercializar o insumo de cânhamo para a indústria farmacêutica e também expandir a venda para os setores têxtil e alimentício. A permissão foi dada pela Justiça Federal, em liminar no final do ano passado. Com isso, a produção deve começar já no primeiro semestre de 2020. Essa decisão judiciária saiu no mesmo dia em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) permitiu a venda de produtos à base de cannabis medicinal em farmácias, mas manteve a proibição do cultivo para fins medicinais.
Ainda falta muito para transformar em realidade o sonho de construir um futuro de possibilidades e prosperidade, com avanços na área da saúde e desenvolvimento social e econômico a partir da exploração do cânhamo no Brasil. O País tem em mãos todas as condições para ser protagonista de todo o potencial da cannabis que precisa ser urgentemente repensada de forma coletiva e colaborativa, com base em evidências científicas, sociais, ambientais e econômicas. O primeiro passo foi dado, mas estamos apenas no começo desta jornada e acredito que ainda temos muito a explorar.
[Foto: Ryan Ancill/ Unsplash]
*Marcelo De Vita Grecco é sócio-fundador e diretor de Negócios da The Green Hub, aceleradora de startups com foco específico em cannabis